971 mil catarinenses estavam em situação de pobreza ao final de 2021

22/09/2022 14:45

Lauro Mattei*

Uma das heranças históricas que ainda marca o conjunto da sociedade brasileira contemporânea é a existência de níveis elevados de pobreza e de desigualdade social, fenômenos sociais que se explicitam distintamente em todo o território nacional e que exigem novas estratégias de desenvolvimento para que os objetivos sustentáveis do milênio possam ser efetivamente atingidos. Tal meta é essencial para que seja garantida a sobrevivência das gerações futuras em condições adequadas. De natureza histórico-estrutural, tal problema nem sempre é tratado adequadamente pelos gestores públicos, particularmente quando se fixam metas e objetivos de políticas públicas voltadas à erradicação desse flagelo social.

Há mais de um século estão sendo usadas diversas concepções sobre pobreza nas discussões internacionais e nos trabalhos comparativos que se expandiram à medida que a compreensão desse fenômeno social também foi evoluindo. Neste caso, destaca-se a concepção das privações relativas desenvolvida no início do século XXI, a qual sugere que a pobreza não se refere apenas à privação da renda, mas também à privação de outros recursos materiais, além da privação de acesso aos serviços sociais, especialmente nas áreas de saúde, educação, alimentação, nutrição e saneamento básico. Decorrente desse processo surgiu o Index da Pobreza Multidimensional (MPI em Inglês) desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010, o qual procura captar as diversas dimensões que compõem esse fenômeno social. São esses avanços metodológicos que colocaram a erradicação da pobreza como tema central dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável integrante da Agenda 2030.

As principais concepções de pobreza em voga atualmente

Segundo Townsend (2006), desde 1880 estão sendo usadas três concepções sobre pobreza nas discussões internacionais e nos trabalhos comparativos. A concepção de subsistência tem origem nos trabalhos de nutricionistas da era Vitoriana, tendo influenciado as políticas e práticas científicas por mais de 100 anos, sendo que ainda faz parte das mensurações oficiais da pobreza em diversos países. De um modo geral, esta concepção diz que as famílias podem ser consideradas como pobres quando suas rendas não sejam suficientes para obter os bens materiais necessários para manter somente a sobrevivência física.

Ainda de acordo com esse autor, nas décadas de 1960 e 1970 emergiu a concepção das necessidades básicas agregando dois elementos centrais: o primeiro diz respeito às necessidades mínimas de consumo das famílias relacionadas aos alimentos, vestimentas e habitação, bem como aos equipamentos das casas; enquanto o segundo elemento está relacionado aos serviços essenciais disponíveis às comunidades, especialmente, água, saneamento básico, educação, saúde, transportes e acesso aos serviços culturais.

Finalmente, registra-se a concepção das privações relativas desenvolvida ao final do século XX sugerindo que a pobreza não se refere apenas à privação da renda, mas também à privação de outros recursos materiais, além da privação aos serviços sociais, especialmente nas áreas de saúde, educação, alimentação, nutrição e saneamento básico. Em função desses aspectos inter-relacionados, o autor considera como pobres as pessoas que são desprovidas de renda e de outros recursos necessários para se manter em condições de vida adequadas – em termos de dieta alimentar, de acesso aos bens materiais e aos serviços sociais básicos, além de outras comodidades – as quais permitem a essas mesmas pessoas participar das sociedades, cumprir suas obrigações e estabelecer relações sociais de acordo com os costumes vigentes em cada local.

Essas distintas concepções impulsionaram o desenvolvimento de diferentes métodos para mensurar a pobreza e realizar comparações em escala internacional. Neste caso destaca-se o método desenvolvido pelo Banco Mundial que instituiu a linha de pobreza “1 dólar ao dia”, o qual agrega ao valor da cesta de alimentos os custos das despesas não alimentares (vestuário, moradia, saúde, educação), calculadas como proporção dos gastos alimentares. A partir daí faz-se uma atualização monetária dos valores e calcula-se a proporção de pessoas que fica abaixo destas linhas de renda. Este método ganhou relevância a partir de 1990 quando foi adotado pela primeira vez pelo Banco Mundial em seu relatório sobre Desenvolvimento Humano. De um modo geral, essa mensuração da pobreza passou a ser disseminada como a “pobreza monetária”, uma vez que ela se refere unicamente à insuficiência de renda para provisão do bem-estar das famílias.

Entretanto, a partir de 2010 passou a vigorar uma nova metodologia de mensuração da pobreza em escala mundial. Trata-se do Index da Pobreza Multidimensional (MPI em Inglês) desenvolvido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Por esse método busca-se mensurar todos os tipos de privações que as pessoas e famílias estão sofrendo, desde a falta de um nível adequado de renda a um conjunto de outras privações relativas aos direitos básicos, destacadamente nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento básico e lazer. Ou seja, o MPI procura captar as diversas dimensões que compõem esse fenômeno social. Neste caso, fazem parte, tanto os indicadores monetários como também um conjunto de outros indicadores relativos ao acesso a bens e serviços que são essenciais para promover melhorias na qualidade de vida dos cidadãos.

As linhas de pobreza adotadas no Brasil

No Brasil não existe uma única linha oficial de mensuração da pobreza, persistindo diversas delas como é mostrado na tabela 1. Mas o fato comum é que todas elas partem da concepção de “pobreza monetária”, a qual se refere unicamente à insuficiência de renda domiciliar para o atendimento do conjunto das necessidades familiares. A partir dessa noção, são consideradas pobres as pessoas que não conseguem obter um nível de rendimento mensal suficiente para manter um determinado padrão de vida aceitável. A partir daí foram construídas as diversas linhas de pobreza que separam as pessoas pobres daquelas consideradas como não pobres. Essa forma de classificação explica a existência de importantes diferenças quantitativas quando se discute o assunto pobreza apenas sob a premissa monetária exclusivamente.

No geral, observa-se que as políticas e programas sociais assumem metodologias muito distintas, resultando num atendimento diferenciado do público. E essa diversidade de atendimento decorre, em grande medida, dos critérios de elegibilidade que cada política ou programa define a priori. Por exemplo, o critério para a inscrição das famílias no Cadastro Único do Governo Federal (CadÚnico) é ter uma renda domiciliar per capita de até ½ salário mínimo.  Já o programa Bolsa Família adota dois critérios monetários para atender as pessoas que demandam os benefícios do referido programa: a)renda familiar per capita de até R$ 178,00; b)renda familiar per capita de até R$ 89,00. No primeiro caso as pessoas classificadas nesse intervalo de renda são consideradas pobres, enquanto as famílias com renda de até R$ 89,00 são consideradas extremamente pobres.

            A Tabela 1 apresenta uma breve síntese das distintas linhas de pobreza monetária existentes atualmente no Brasil.

p1

Fonte: IBGE, SIS, 2020.

Nota: A taxa de conversão da Paridade do Poder de Compra (PPC) para consumo privado foi de R$ 1,66

para cada US$ 1,00 do PPC de 2011. Os valores diários foram tornados mensais e inflacionados pelo IPCA

para o ano de 2020. 

O avanço da pobreza em Santa Catarina após o início da pandemia

Ao longo da pandemia, pesquisadores do NECAT realizaram diversas análises sobre o comportamento da renda dos catarinenses. Para tanto, foram elaborados estudos específicos para cada ano com base no comportamento da renda do trabalho disponibilizada pela PNAD Contínua do IBGE. Todavia, esses estudos não são suficientes para analisar a pobreza no estado sob a ótica da pobreza monetária, uma vez que eles não contêm uma análise mais ampla que contemple todas as fontes de rendimentos das pessoas.

Tal lacuna só foi possível de ser coberta por meio da definição de “pobreza monetária” contida na Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE relativas aos anos de 2020 e 2021. Desta forma, a tabela 2 apresenta a evolução percentual e numérica da pobreza monetária em Santa Catarina entre os anos de 2019 e 2021, conforme as linhas de pobreza estabelecidas anteriormente.  Tais valores foram atualizados monetariamente pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) para cada ano, considerando-se a taxa de conversão da Paridade do Poder de Compra (PPC) para consumo privado de R$ 1,66 para US$ 1,00 do PPC de 2011.

Tomando-se o ano de 2019 como referência, nota-se que a pobreza extrema era de 1,5% no referido ano, um dos mais baixos percentuais do país. Em termos absolutos, representava aproximadamente 107 mil pessoas. Já a pobreza geral atingia 7,5% da população catarinense, ou seja, em termos absolutos mais de 536 mil pessoas se encontravam nesta condição social.

       Tabela 2: Evolução % e numérica da pobreza monetária em SC entre 2019 e 2021

p2

Fonte: SIS-IBGE (2019 e 2020) e FGV Social (2021) * Valor nominal per capita mensal (R$)

** Total de pessoas

Esse cenário começou a se agravar no primeiro ano da pandemia em ambas as linhas de pobreza consideradas. No caso da pobreza extrema, o seu percentual subiu para 1,9%, representando 137.500 pessoas. Isso significa que no primeiro ano da pandemia mais 30 mil catarinenses adentraram a essa condição social. Já a pobreza geral aumentou em um ponto percentual, significando que mais de 78 mil catarinenses passaram a conviver em estado de pobreza no primeiro ano da pandemia.

Em 2021 a situação se agravou ainda mais, uma vez que o percentual de pessoas extremamente pobres subiu para 3,1%, representando um acrescimento de mais 89 mil pessoas em relação ao ano anterior.  Mas o avanço da condição de pobreza geral foi ainda maior, uma vez que mais de 129 mil pessoas adentraram a condição de pobreza, implicando em um percentual acima de 10% da população total.

Conclusão

Nos dois primeiros anos de pandemia (2020 e 2021) aproximadamente 119 mil pessoas passaram a ser classificadas como extremamente pobres e 208 mil como pobres. Com isso, nesse pequeno período mais de 327 mil catarinenses adentraram a condição de pobreza. Mesmo que esses percentuais sejam inferiores aos das demais unidades da federação, eles não devem ser minimizados pelas autoridades governamentais, uma vez que quando são consideradas as duas dimensões da pobreza (extrema e geral) se chega a cifra de 971 mil pessoas, o que significa que ao redor de 13% da população catarinense se encontrava em situação de pobreza ao final de 2021.

Todavia, a expansão elevada da pobreza no estado não pode ser explicada apenas pela pandemia, uma vez que a crise sanitária acabou dando maior visibilidade aos graves problemas sociais já existentes no estado e que foram fortemente agravados após a crise econômica e política entre 2015-2017. Portanto, entende-se que o fenômeno social da pobreza e da fome precisa ser enfrentado numa perspectiva mais ampla, de maneira a ser capaz de atacar as necessidades imediatas causadas pela pandemia, ao mesmo tempo em que enfrente também os problemas estruturais que promovem todas as formas de vulnerabilidades e exclusão social.

REFERÊNCIAS

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Síntese das Informações Sociais. Rio de Janeiro (RJ), IBGE, 2019, 2020 e 2021.

NERI, M. Bem-estar trabalhista, felicidades e pandemia. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Social, 2021.

NERI, M. Mapa da Nova Pobreza. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Social, 2022.

TOWNSEND, P. What is Poverty? An historical perspective. UNDP: International Poverty Centre, Poverti in Focus, December 2006.


* -Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós[1]Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br