A Covid-19 em SC: o discurso da governadora interina e a realidade da pandemia no estado

04/05/2021 09:06

Por: Lauro Mattei[1]

“Parece que a vida humana não vale nada em Santa Catarina”. Miguel Nicolelis

A falsa dicotomia entre saúde e economia

Uma das questões que mais marcou o debate sobre a pandemia no Brasil foi a falsa discussão entre Saúde e Economia. Tal discussão, que também tem adeptos em Santa Catarina, foi fortemente impulsionada pelo atual presidente da república que menosprezou, desde o início, a gravidade da Covid-19.

É neste contexto que precisamos compreender as ações recentes da governadora em exercício nesta esfera. Ainda no dia 26.03.21, quando foi confirmado o segundo afastamento do governador Carlos Moisés, ela assim se manifestou: “vou trabalhar para que Santa Catarina supere o momento crítico da segunda onda da pandemia, assim como darei a mesma atenção para com a economia, evitando danos ainda maiores”. Já no dia de sua posse como governadora interina (30.03.21) afirmou que “não somente o combate à pandemia é prioritário, mas também não nos descuidaremos do desenvolvimento econômico porque precisamos garantir a empregabilidade e a estabilidade de nosso estado”.

Após a Procuradoria Geral do Estado (PGE) reverter a decisão judicial que destinava ao Centro de Operações de Emergência em Saúde (Coes) as deliberações sobre as medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia, a governadora em exercício iniciou um processo de flexibilização das normas que estavam em vigor sempre afirmando que “buscaria um equilíbrio entre a segurança sanitária e a economia do estado”, isto porque “além da Covid-19 há de se cuidar do todo para minimizar o sofrimento das pessoas diante dos impactos da pandemia em outros setores”.

Em 23.04.2021 promulgou o Decreto 1.255/21 que, dentre diversas diretrizes, autorizou a permanência de pessoas em parques, praças e praias, bem como ampliou os horários de funcionamento de bares, restaurantes, pizzarias, etc. Justificou tais medidas afirmando que as ações adotadas por seu governo já têm efetividade, destacando que houve redução do número de pessoas que esperavam por leitos de UTI e que tinha ocorrido uma ampliação de 75% na vacinação nas últimas três semanas. Argumentos que têm uma consistência de uma pena de galinha diante da dura realidade em que se encontrava a pandemia naquele momento.

Entre os dias 27.04 e 30.04.21 foram lançadas as portarias 441, 453 e 455, além do decreto 1.267/21. Todos esses documentos flexibilizaram as regras de funcionamento de setores de alimentação (cafés, casas de chás, lanchonetes, confeitarias, sorveterias, etc), de atividades esportivas (competições, treinamentos e práticas esportivas) e de atividades sociais (casamentos, jantares, aniversários, confraternizações, formaturas, festas infantis, bares, boates e casas noturnas, etc.).  Tudo isso sendo feito sob a justificativa de que “nos últimos 30 dias houve uma melhora significativa dos indicadores relacionados à pandemia” e com o objetivo de “retomar a vida com a maior normalidade possível”.

De forma muito idêntica ao que vem sendo feito e dito no país, essas afirmações da governadora interina revelam seu verdadeiro compromisso, o qual pode ser visto por meio de várias imagens divulgadas nas últimas semanas, uma vez que a pandemia, conforme mostraremos na sequência, segue ceifando vidas dos catarinenses.

A dura realidade da pandemia em Santa Catarina

Todos sabemos que a COVID-19 apresentou dois grandes surtos contaminatórios no estado. O primeiro deles, com temporalidade entre os meses de junho e agosto de 2020, foi bem menos agressivo comparativamente ao segundo surto, que teve início no mês de novembro de 2020 e se perpetua até os dias atuais. Para entender melhor a dinâmica atual da doença no estado e sua gravidade, apresentamos a seguir um quadro-síntese sobre o comportamento de alguns indicadores durante esses dois surtos epidêmicos.

No primeiro grande surto a média semanal móvel de casos nunca ultrapassou a marca de 2.700 casos, porém com uma estabilização abaixo de mil casos, o que pode ser considerado como um bom patamar, uma vez que naquele momento (meses de setembro e outubro de 2020) não havia sobrecarga no sistema estadual de saúde. Já a média semanal móvel de óbitos não ultrapassou a marca de 50 óbitos ao dia, com posterior estabilização em 9 ocorrências diárias, o que pode ser considerado um número bastante confortável diante do cenário atual. Finalmente, o número de casos ativos nunca ultrapassou a barreira de 13 mil pessoas com a doença simultaneamente, não causando o colapso no sistema de saúde como vimos recentemente no estado.

Deve-se registrar que esses resultados foram obtidos em um cenário que não apresentava um conjunto de medidas restritivas mais duras como aquelas adotadas nos meses de março e abril de 2020, quando a pandemia teve início no estado.

Quadro 1: Comportamento de alguns indicadores da pandemia durante o primeiro e segundo grandes surtos da doença no estado de Santa Catarina

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Fonte: Boletins NECAT-UFSC sobre a Covid-19 em SC

No segundo grande surto a média semanal móvel de casos atingiu a marca de 5.204 casos diários, porém sem atingir uma estabilização abaixo de mil casos como ocorreu no surto anterior, quando não havia sobrecarga no sistema estadual de saúde. O fato é que o patamar atual (2.761 casos diários na última semana de abril de 2021) indica uma situação ainda muito grave da pandemia no estado. Já a média semanal móvel de óbitos atingiu a marca de 134 óbitos ao dia no final de março de 2021, estabilizando-se atualmente em 74 mortes diárias, o que pode ser considerado um número pouco confortável diante dos milhares de óbitos verificados nos dois últimos meses. Finalmente, o número de casos ativos ultrapassou a barreira de 34 mil pessoas com a doença simultaneamente em meados de março, o que provocou o colapso no sistema de saúde. Tal indicador se estabilizou nas últimas semanas no patamar de 19 mil casos ativos, o que pode ser considerado um nível ainda muito grave, considerando-se que no dia 02.05.2021 ainda existiam 43 pessoas na lista de espera por um leito de UTI e 25 pessoas esperando por leitos Covid-19.

Além desses indicadores, há diversas outras informações que revelam a gravidade da pandemia no estado, conforme revelou a matriz de risco do próprio governo estadual no dia 01.05.2021. Neste caso, verificou-se que em apenas uma das 16 regiões o risco é grave, sendo que em todas as demais é gravíssimo.

Por fim, nota-se que a transmissibilidade da virose não estava encontrando barreiras efetivas de contenção, de tal forma que a propagação da doença em todas as regiões do estado continua num nível bastante elevado e sem ter apresentado qualquer tendência sustentada de queda nas últimas semanas.

Conclusões

Todas as informações sistematizadas e analisadas até o momento (02.05.2021) revelam que a pandemia ainda se encontra em uma situação extremamente grave no estado, inclusive indicando a baixa efetividade das medidas restritivas no sentido de impedir a continuidade do contágio. Isto porque uma média móvel de 2.721 casos diários é um patamar extremamente elevado, não permitindo nenhuma flexibilização das frágeis medidas que estavam em curso. Soma-se a isso o patamar ainda elevadíssimo de óbitos que estão ocorrendo diariamente.

Portanto, o cenário comparativo entre os dois surtos epidêmicos apresentado anteriormente poderia ser utilizado como um referencial para a adoção de medidas para controlar a pandemia, destacando-se que um patamar com casos diários inferiores a mil seria a situação mais recomendável para ser flexibilizar regras restritivas em curso.

Por fim, justificar seus atos em uma informação falsa de que “nos últimos 30 dias houve uma melhora significativa dos indicadores relacionados à pandemia” como faz a governadora interina, é uma atitude, no mínimo, coerente com as inverdades que diariamente são proferidas por integrantes do atual governo federal, a quem ela tanto se identifica.


[1] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de PósGraduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br. Artigo escrito em 03.05.21.