A política de incentivos fiscais do governo Carlos Moisés (ex-PSL)

23/11/2021 20:04

Por: Juliano Giassi Goularti[1]

Política de incentivos fiscais: breve contextualização

Desde o nascimento da Economia como “ciência autônoma” do conhecimento, a formação da riqueza é centro de investigações por economistas das mais diferentes vertentes teóricas e ideológicas. Há um profícuo debate sobre a origem, a causa, a geração, a distribuição, os ciclos e a reprodução da riqueza social. A tributação não é apenas uma forma de extrair recursos do contribuinte, pela qual o estado financia projetos e programas com dotações orçamentárias. O sistema tributário é ferramenta política que influencia o comportamento da sociedade, estabelece os rumos da economia e define as relações sociais de poder. Ainda que a tributação se refira a uma extração de certa quantia de recursos da pessoa física ou jurídica, a competência para tributar e isentar é definida por uma relação social de poder político e econômico.

Ao longo do tempo, multiplicaram-se as formas de acumulação e valorização do valor pela via tributária. Uma parte do processo de metamorfose da riqueza social é constituída das múltiplas estruturas fiscais de incentivos – anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo. No caso dos governos estaduais, isso se dá, particularmente, pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).

Os incentivos fiscais do ICMS praticado pelos estados brasileiros são uma prerrogativa do ente federativo, conforme dispõe a Constituição Federal de 1988. Dentro da autonomia relativa e independência fiscal dos estados, a política de renúncia do ICMS passou a ser utilizada pelos governadores como instrumento de desenvolvimento regional ou para desenvolver determinada atividade econômica – ampliar o parque fabril, construir nova planta industrial, adquirir novo maquinário, investir em produto e processo de inovação, atrair novas indústrias ou manter aquelas já existentes.

A Carta de 1988, ao permitir o aumento das competências tributárias dos estados, favoreceu o desencadeamento da guerra fiscal entre as Unidades da Federação. A heterogeneidade de interesses dentro do sistema federativo que já carregava dificuldades na construção de interesses comuns tornou-se ainda pior, pois gradativamente os estados foram alterando suas alíquotas de ICMS, sem o consentimento do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e do Senado Federal. Alguns benefícios visam a equiparar a competitividade da indústria paraense à do restante do país, especialmente nos casos em que a vantagem decorra da concessão de benefícios típicos de guerra fiscal, muitas vezes ao arrepio da lei.

Nos últimos anos, o debate sobre a política de incentivos fiscais passou a ter maior centralidade em função da expansão desenfreada e desordenada da renúncia de receita, fato gerador da chamada guerra fiscal. Num cenário de incerteza econômica e instabilidade política, as decisões empresariais, voltadas para a valorização do capital, procuram reduzir riscos. Porém, o incentivo usufruído pelo capital pode ficar retido e não se converter em investimento privado, porque o lucro derivado do investimento é incerto. Mesmo assim, utilizando a isenção do ICMS como parâmetro para a decisão de investir (ou não), o incentivo fiscal é componente fundamental para a formação da taxa de lucro.

Política de incentivo fiscal do governo Carlos Moisés

O estado de Santa Catarina, por meio da renúncia de impostos, em particular do ICMS, propicia a mobilização de recursos socialmente necessários para a realização do investimento através da intermediação da política de fiscal. De forma direta e explícita, desde a criação do Fundo de Desenvolvimento de Santa Catarina (Fundesc), em 1963, a política de incentivos executada pelo governo estadual tratou de fornecer recursos para o setor industrial, comercial e agroindustrial com o objetivo de ampliar o progresso técnico. Desde então foram constituídas múltiplas estruturas fiscais concretizadas em distintas linhas de financiamento impulsionando a realização de negócios empresariais.

Após a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, a renúncia de receita passou a compor o anexo de metas fiscais da Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO). Com isso, a apuração dos valores renunciados para fins do desenvolvimento do Estado passou a ser publicado em lei específica. Anteriormente era possível apurar os valores renunciados pelo Programa Especial de Apoio a Capitalização de Empresas (Procape), que foi extinto em 1984, e pelo Programa de Desenvolvimento da Empresa Catarinense (Prodec), que ainda se encontra em vigor (GOULARTI, 2014).

É importante observar que o governo catarinense passou a conceder benefícios sem a aprovação do Confaz. Muitos dos benefícios regulamentados pelo Anexo II da Lei n.º 10.297, de 1996, passaram a ser concedidos por decreto, ou mesmo por contratos de “gaveta”, ignorando-se por completo o dispositivo constitucional. Além disso, registre-se que os Convênios aprovados no âmbito do Confaz eram homologados tacitamente pela Assembleia Legislativa. A homologação tácita daria maior agilidade na concessão do incentivo, evitando-se, deste modo, “entraves desnecessários” para a realização dos Convênios.

Destarte a isso, a estimativa da concessão de incentivos pelas múltiplas estruturas fiscais pelo governo de Santa Catarina passou de R$ 5,17 bilhões, em 2015, para R$ 6,34 bilhões, em 2021, e R$ 14,01 bilhões, em 2022, distribuídos em dez setores. Isso equivale a dizer que, em 2022, a projeção da renúncia de receita representa 61,48% da receita tributária própria e 42,08% da receita total, conforme Tabela 1.[2]

Tabela 1: Projeção das perdas de receitas com a política de renúncia tributária (ICMS, IPVA e ITCMD)

                                                                                             R$ 1,00 (preços constantes)

T1

Fonte: LDO, vários anos – Elaboração do autor.

Em dezembro de 2018 foram publicados os Decretos nº 1.866, de 2018, e nº 1.867, de 2018, com a revogação de benefícios fiscais concedidos a diversos produtos, com efeitos a partir de 1º de abril de 2019. Ainda, a LDO/2018, aprovada em agosto, definiu uma redução gradual da renúncia fiscal de 2019 até 2022, fixando o limite máximo de 16% da receita bruta de impostos. Para atender à determinação, o estado iniciou a revisão de benefícios fiscais, revogando alguns itens que recebiam tratamento tributário diferenciado. Todavia, em 2020, esse dispositivo que limitava o valor dos incentivos em 16% da receita tributária foi revogado pelo Parlamento.

No Gráfico 1, em 13 anos, a estimativa da participação dos incentivos fiscais da receita total prevista saltou de 23,93%, em 2010, para 42,08%, em 2022. Entre janeiro de 2011 até dezembro de 2018, no governo Raimundo Colombo, a estimativa da média dos incentivos fiscais na receita foi de 24,79%. Já entre janeiro de 2019 até dezembro de 2022, período governado por Carlos Moisés, a média subiu para 25,72%, com destaque para 2022. No triênio 2018/2020 houve uma redução gradual, de 22,02% para 19,10%. Em 2021 um leve crescimento, de 19,10% para 20,60%. Já, em 2022, resultado de sucessivos projetos de leis, foi para 42,08%, crescimento de 104,27%.

Gráfico 1: Estimativa da participação dos incentivos fiscais da receita total prevista entre 2010 e 2022

G1

Fonte: LDO, vários anos – Elaboração do autor.

Em 2019, o governo catarinense cortou benefícios de segmentos justificando que perdia grande parte da arrecadação em troca de isenções de impostos. Do outro lado, parlamentares defendiam que muitas empresas não conseguiriam sobreviver com a elevação da carga tributária ou sairiam de Santa Catarina, gerando desemprego. Com a participação de representantes de federações estaduais ligadas à indústria, ao comércio e à agropecuária, em reunião extraordinária da Comissão de Finanças e Tributação da Alesc, os deputados regulamentaram um conjunto de leis que tratam sobre benefícios fiscais, aprovadas pelos deputados no biênio 2019/2020.

Quanto às mudanças legislativas realizadas nos anos de 2019 e 2020, as quais passaram a ter impactos econômicos a partir de 2021 e 2022, de acordo com o Secretário da Fazenda, senhor Paulo Eli, das “(…) 23 leis sobre benefícios fiscais que entregaram em vigor entre o ano passado [2019] e este ano [2020], 16 já foram regulamentadas, três foram parcialmente regulamentadas e outras quatro ainda estão com a regulamentação pendente” (ALESC, 2020, p. 1). Quanto a isso, a Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (FIESC) justifica que “(…) a verdade é que sem o incentivo certas atividades seriam inexistentes ou pouco relevantes. Por óbvio, a inexistência da atividade teria efeito igual a zero na arrecadação” (FIESC, 2019, p. 28).

Dentre as principais mudanças na política de incentivos fiscais no biênio 2019/2020, destacam-se a aprovação do projeto de lei governamental nº 364.4, de 2020, e daqueles, também de origem governamental, aprovados no exercício de 2019; projetos de lei nº 28.2, de 2019, nº 29.3, de 2019, nº 55.5, de 2019, nº 81.7, de 2019, nº 170.7, de 2019, nº 174.0, de 2019, nº 435.2, de 2019, e nº 458.9, de 2019. Destes projetos, destaca-se o de nº 458.9, de 2019, que reduziu de 17% para 12% a alíquota do ICMS destinada ao contribuinte para a comercialização, a industrialização e a prestação de serviços dentro do estado de Santa Catarina.

Na LDO/2021, como também no relatório técnico do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina, que deu parecer pela aprovação das contas do governador Carlos Moisés, não fazem menção ao conjunto de projetos aprovados no Parlamento nos últimos dois anos, que diretamente corroboram para o crescimento de 120%, entre 2021 e 2022, dos incentivos fiscais. Quanto a isso, o governo do estado justifica: “Tamanho crescimento se deu basicamente por três fatores: mudança da metodologia de cálculo, desenvolvimento de novas ferramentas para cálculo da renúncia e a crise cambial” (SANTA CATARINA, 2021, p. 72).

Ao que indica a Exposição de Motivos destes projetos, esses benefícios são concedidos com vistas a atrair investimentos privados ou para a manutenção de grandes empresas ou clusters no território catarinense, pois a eventual migração das empresas para outros estados que oferecem uma carga tributária mais vantajosa resultaria em exclusão de arrecadação dessas empresas. O capitalista, ao transformar o incentivo fiscal em investimento privado, está gerando a possibilidade de incrementar a produtividade, elevando o nível quantitativo e qualitativo do produto. Mas ao incrementar o lucro sem transformar o incentivo em política de investimento, a renúncia pode não apenas ser ineficiente para promover uma melhoria no mercado de trabalho, como pode estar acentuando as desigualdades sociais.

Os incentivos fiscais concedidos aos diversos setores podem não gerar nenhum ganho efetivo para a economia do estado, mas evitam – pelo menos na teoria – eventual perda causada pela migração das empresas para outras unidades federadas. Na prática, é provável que as respostas das empresas aos incentivos sejam diferenciadas, dependendo das características de cada mercado (mais ou menos competitivo) e da evolução da demanda doméstica e exterior de cada setor. É importante avaliar a estrutura empresarial por trás de cada setor, o grau de concentração, as barreiras à entrada, além das condições estruturais e conjunturais da economia e da política, que podem ser mais ou menos favoráveis às condições para expansão da capacidade produtiva (GOULARTI, 2021).

Considerações finais

A questão dos incentivos fiscais não está, apenas, em definir os instrumentos e parâmetros de controle social da política fiscal, mas, também, em examinar os desdobramentos das diferentes estruturas fiscais que se situam muito além do simples fato de o contribuinte estar isento da tributação. A falta de controle e avaliação socioeconômica escondem as contradições dos privilégios concedidos em favor dos agentes econômicos com elevado grau de influência política. Ao contrário da doutrina neoliberal que dissemina a crença de que os incentivos fomentam crescimento e desenvolvimento, em última instância, o incentivo fiscal assegura o desenvolvimento desigual em suas múltiplas escalas sociais e econômicas.

Nesse debate, podemos entender que o incentivo fiscal concedido pelo poder executivo ou pelo legislativo irá diminuir o montante de receitas constitucionalmente vinculadas para setores sociais básicos, além de trazer graves implicações para as receitas dos municípios. Este é particularmente o caso do desenvolvimento de ações e serviços públicos de saúde que integram Sistema Único de Saúde (SUS) em nível do estado, na manutenção e desenvolvimento do ensino público estadual e no pacto federativo.

Por fim, a concessão de benefícios fiscais sem qualquer critério de contrapartida ao aumento do faturamento da empresa, apresentação de plano de investimento e dos impactos na geração ou manutenção de emprego, na distribuição de renda, no desenvolvimento econômico, regional e social e na sustentabilidade ambiental, é nada além de irresponsabilidade fiscal e social.

Referências

ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SANTA CATARINA (ALESC). Ata da 002ª sessão especial da 1ª sessão legislativa da 19ª legislatura realizada em 19 de fevereiro de 2019. Convoca para esclarecimentos do Secretário da fazenda Paulo Eli. Florianópolis, SC – ALESC, 2020. 24p.

FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SANTA CATARINA (FIESC). Mitos e Verdades. Florianópolis, SC: FIESC, 2019. 73p.

GOULARTI, Juliano Giassi. Política fiscal e desoneração tributária no Brasil. [4º edição] Florianópolis, SC ; Criciúma, SC : Insular ; UNESC, 2021. 240p.

Goularti, Juliano Giassi. Desenvolvimento desigual, incentivos fiscais e acumulação em Santa Catarina. Florianópolis, SC ; Insular, 2014. 192p.

SANTA CATARINA. Projeto de Lei nº 0123.0/2021: Dispõe sobre as diretrizes orçamentárias para o exercício financeiro de 2022 e estabelece outras providências. Florianópolis, SC. 2021, 96 p.


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do NECAT/UFSC.

[2] Nem todos os contribuintes, empresas e indivíduos, são privilegiados com incentivos fiscais; nem todas as empresas, grupos ou setores econômicos recebem incentivos na mesma proporção; nem todas as empresas fazem uso do recurso administrativo e judicial para postergar ou inviabilizar a realização pública do tributo; nem todas as empresas se financiam com a disponibilidade de recursos não recolhidos ao erário público.