A queda dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina durante a pandemia da Covid-19

20/10/2020 19:09

Por: Vicente Loeblein Heinen [1] e Lauro Mattei [2]

A perda de rendimentos do trabalho é um dos aspectos mais críticos da crise associada à pandemia do novo coronavírus no Brasil. Com a queda abrupta do número de horas trabalhadas e o fechamento massivo de postos de trabalho em diversos setores, houve um aumento rápido da população sem renda do trabalho, ao mesmo tempo em que os trabalhadores que conseguiram se manter ocupados tiveram seus rendimentos efetivos reduzidos. No conjunto do país, esses movimentos provocaram uma queda da massa salarial da ordem de 20%, com resultados negativos em todas as unidades da federação.

Embora essa queda tenha sido parcialmente compensada por rendimentos de outras fontes (com destaque para o Auxílio Emergencial), ela acabou agravando ainda mais a situação do mercado de trabalho de Santa Catarina, onde os rendimentos do trabalho representam aproximadamente 75% da renda total das famílias[3], uma vez que esses rendimentos já se encontravam praticamente estagnados desde 2014[4].

Dando sequência às análises realizadas anteriormente, disponíveis no Blog do Necat, o objetivo deste texto é verificar os impactos da atual crise sobre os rendimentos do trabalho no estado de Santa Catarina. Para tanto, utilizaremos as séries sem ajustes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNADC/T), analisando o nível e a variação do rendimento médio e da massa de rendimento no 2º trimestre de 2020, além de indicadores de desigualdade de renda.

Queda na massa salarial e aumento da desigualdade de renda em Santa Catarina

De acordo com os dados contidos na Tabela 1, a massa de rendimentos reais efetivamente recebida em todos os trabalhos em Santa Catarina caiu para 12,1% no 2º trimestre de 2020, em comparação com o trimestre anterior, e 2,5%, quando comparada com o mesmo trimestre do ano anterior. Devido ao caráter extraordinário desse impacto, ele ainda não provocou uma retração na massa de rendimentos habitualmente recebida[5], que permaneceu em patamar semelhante ao registrado no início do ano.

Tabela 1 – Rendimento médio e massa de rendimento reais de todos os trabalhos em Santa Catarina (2º trim/2019 a 2º trim/2020, em R$).

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Fonte: Microdados da PNADC/T (2020); Elaboração: Necat/UFSC.

Além do evidente impacto decorrente do aumento do desemprego, a queda na massa salarial também é explicada pela redução das jornadas de trabalho. No 2º trimestre de 2020 o número médio de horas efetivamente trabalhadas em Santa Catarina ficou 13% abaixo das jornadas habituais, o que certamente foi acompanhado por reduções nos rendimentos, destacadamente naqueles de caráter variável, como é o caso dos trabalhadores por conta própria.

Esse processo também ajuda a explicar o comportamento do rendimento real médio efetivamente recebido, que diminuiu 8,5% em relação ao 1º trimestre de 2020, mesmo diante de um pequeno crescimento comparativamente ao 2º trimestre de 2019. Quanto aos rendimentos reais habituais, houve um aumento tanto na comparação com o trimestre anterior (4,7%), quanto na comparação com o mesmo trimestre do ano anterior (6,2%).

O Gráfico 1 contém elementos que ajudam a explicar esse fenômeno. Entre o 1º e 2º trimestre de 2020, as classes de renda mais baixa foram aquelas que mais perderam ocupações, com destaque para as localizadas entre 1 e 2 salários mínimos (-10,7%) e de até meio salário mínimo (-10,3%). Em grande medida, isso se deve ao fechamento de vagas entre os empregados sem carteira (tanto no setor público, quanto no privado), juntamente com a intensa queda dos rendimentos dos trabalhadores por conta própria[6]. Por outro lado, houve aumento principalmente nas faixas de rendimentos superiores a 3 salários mínimos (9,5% até 5 salários mínimos, e 4,5% acima disso), o que pode ser explicado, basicamente, pelas novas contratações de funcionários públicos e de trabalhadores nos serviços de informação e comunicação[7].

Gráfico 1 – Taxa de crescimento trimestral da população ocupada por faixa de rendimento médio real habitualmente recebido em todos os trabalhos, Santa Catarina (2º trimestre de 2020, em %)

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Fonte: Microdados da PNADC/T (2020); Elaboração: Necat/UFSC.

Ainda que a transição dos trabalhadores entre as classes de renda possa explicar parte desses resultados, o fato deles estarem associados a uma redução abrupta da massa salarial evidencia que a principal razão para o aumento do rendimento médio habitual no período foi que as demissões se concentraram nas classes de renda mais baixas.

Com isso, a desigualdade de renda, analisada sob a óptica dos rendimentos do trabalho, aumentou consideravelmente no período[8]. De acordo com os dados contidos no Gráfico 2, o índice de Gini da distribuição dos rendimentos reais efetivamente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina subiu de 0,414 para 0,428 entre o 2º trimestre de 2019 e mesmo período de 2020. Ainda que seu patamar siga muito inferior à média nacional, esse é o maior índice de desigualdade já registrado no estado desde o início da série histórica da PNAD Contínua, em 2012[9].

Gráfico 2 – Índice de Gini da distribuição dos rendimentos reais efetivamente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina (2º trimestre de 2019 a 2º trimestre de 2020, em %).

g2

Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração: Necat/UFSC.

Com a retomada das atividades econômicas, a manutenção ou a redução desse grau de desigualdade dependerá da intensidade das (re)contratações e do nível salarial pago a esses trabalhadores. Independente disso, o comportamento desse indicador já revela a existência de graves problemas no mercado de trabalho catarinense, especialmente após a redução do valor do programa de auxílio emergencial do governo federal e seu término previsto para o final de 2020. Além disso, cabe ressaltar que as desigualdades decorrentes dos impactos da atual crise são ainda maiores quando são considerados fatores demográficos, com destaque para indicadores de sexo e de cor dos trabalhadores, os quais, por limitações empíricas, não puderam ser contemplados neste artigo[10].


[1] Vicente Loeblein Heinen é estudante de Economia na UFSC e bolsista do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[2] Lauro Mattei é professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do Necat e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail:l.mattei@ufsc.br.

[3] PNADC/A. Rendimento de todas as fontes. 2019.

[4] A renda do trabalho Santa Catarina caiu substancialmente no período mais intenso da crise econômica que atingiu o mercado de trabalho nacional a partir de 2015. As perdas acumuladas nesse período foram recuperadas somente no ano de 2019. Assim, de acordo com os dados da PNAD Contínua, o rendimento médio real efetivamente recebido pela população ocupada em Santa Catarina cresceu apenas 0,4% ao ano no período entre 2014 e 2019.

[5] De acordo com a metodologia da PNADC, o rendimento habitual é o valor médio que o trabalhador normalmente receberia no período em sua atual ocupação, sem descontos ou acréscimos extraordinários; já o rendimento efetivo diz respeito à remuneração de fato recebida no mês anterior à coleta, considerando descontos ou acréscimos extraordinários e/ou sazonais. Cf. PNADC. Notas técnicas versão 1.8. 2020.

[6] Além dos muitos trabalhadores por conta própria que tiveram suas ocupações inviabilizadas pela pandemia, os que permaneceram ocupados no 2º trimestre de 2020 trabalharam, em média, 17% horas a menos do que normalmente trabalhariam. Com isso, o rendimento efetivo desses trabalhadores ficou 13% abaixo do habitual.

[7] Essas categorias figuram dentre aquelas com as melhores remunerações no estado. O crescimento de suas ocupações está relacionado com o combate à pandemia e com a implementação do trabalho remoto, respectivamente. Cf. HEINEN, V. L.; MATTEI, L. Quem foram os trabalhadores mais atingidos pela crise associada à pandemia da Covid-19 em Santa Catarina? 2020.

[8] De acordo com estudo publicado pelo IPEA, o aumento dos rendimentos decorrente de outras fontes (MP 936 e, principalmente, Auxílio Emergencial) tende a compensar o aumento da desigualdade de renda provocado pela queda no nível de ocupação nos rendimentos do trabalho em geral. Cf. BARBOSA, R. J.; PRATES, I. Efeitos do desemprego, do Auxílio Emergencial e do Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (MP nº 936/2020) sobre a renda, a pobreza e a desigualdade durante e depois da pandemia. 2020.

[9] Antes da recente crise econômica, em 2014, o índice de Gini dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina era de 0,403, cerca de 6% abaixo do índice atual.

[10] Com a pandemia, o IBGE passou a coletar os dados da PNAD Contínua por telefone. Em razão disso, o Instituto avaliou a necessidade de suprimir alguns domínios de divulgação, em que houve perda considerável na qualidade da informação, dentre os quais se incluem os rendimentos por sexo e por cor. Cf. IBGE. Informações referentes à divulgação dos dados do 2° trimestre de 2020 – Nota técnica. 2020.