As políticas públicas do Governo Federal e a melhoria da renda das famílias promoveram redução do trabalho infantil em Santa Catarina em 2023
Vicente Loeblein Heinen*
O IBGE divulgou recentemente a edição temática da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) sobre o trabalho infantil, com dados referentes a 2023. De acordo com o levantamento, no último ano havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil no Brasil e 41 mil em Santa Catarina. Em ambos os casos, trata-se do menor número da série histórica, iniciada em 2016.
O objetivo deste texto é apresentar os números do trabalho infantil no estado catarinense, discutindo a melhora do indicador em 20231. Embora o IBGE não costume divulgar os resultados dessa edição temática da PNADC de forma desagregada para todas as unidades da federação, as entrevistas realizadas em Santa Catarina fornecem amostra suficiente para estimar, com níveis de confiança seguros, alguns indicadores a nível estadual.
Sobre o conceito de trabalho infantil
O conceito de “trabalho infantil” foi forjado pela OIT para tratar de um conjunto específico de atividades laborais que comprometem o desenvolvimento humano de crianças e adolescentes2. Em síntese, o conceito designa pessoas de 5 a 17 anos que realizam trabalhos perigosos do ponto de vista mental, físico, social ou moral, bem como os que interferem diretamente no processo de escolarização.
No Brasil, o IBGE define as “pessoas em situação de trabalho infantil” a partir de grupos etários, conforme os seguintes critérios3:
● 5 a 13 anos de idade: todos que trabalham, seja para obter renda ou para autoconsumo4;
● 14 e 15 anos de idade: a) trabalham em ocupações informais, com jornadas superiores a 30 horas semanais (ou acima de 40 horas, caso tenham ensino fundamental completo); b) trabalham em empregos formais, mas não frequentam a escola; c) trabalham para o autoconsumo; ou d) trabalham em ocupações previstas na “Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil” (Lista TIP5);
● 16 e 17 anos de idade: a) trabalham mais de 44 horas semanais; b) trabalham em ocupações da Lista TIP; c) trabalham para o autoconsumo; ou d) trabalham em situação de informalidade.
Importante destacar que esses critérios não abrangem todas as formas de trabalho realizadas por crianças e adolescentes. Trabalhos realizados no âmbito do programa Jovem
Aprendiz ou intermediados por agências (CIEE, IEL, etc), bem como estágios e uma ampla gama de ocupações regulares, mesmo que possuam jornadas integrais em muitos casos, não entram nessa classificação.
Trabalho infantil cai para menor patamar da série histórica, mas ainda atinge 41 mil crianças e adolescentes em Santa Catarina
O trabalho infantil em Santa Catarina vinha apresentando uma tendência de piora nos últimos anos. O cenário de abandono das políticas sociais em âmbito nacional e de forte deterioração da renda das famílias mais pobres, observado particularmente até 2021, forçou a entrada de mais crianças e adolescentes no mercado de trabalho, em condições ainda mais precárias que o habitual.
Embora o questionário referente ao trabalho de crianças e adolescentes da PNADC não tenha sido aplicado nos dois primeiros anos da pandemia, os dados de 2022 permitiram um balanço parcial do estrago. Naquele ano, 60 mil catarinenses com idades entre 5 e 17 anos estavam submetidos a condições de trabalho infantil.
Já em 2023, esse número caiu para 41 mil, representando um recuo de 31,8% em relação ao ano anterior. O trabalho infantil acometeu 3,2% das crianças e adolescentes catarinenses em 2023, menor patamar da série histórica, iniciada em 2016. A taxa estadual foi inferior à média do Brasil, que ficou em 4,2%6.
Os dados sugerem que a necessidade de complementar a renda da família é a principal causa do trabalho infantil no estado. Conforme dados do Gráfico 2, a renda per capita das famílias entre as 10% mais pobres em Santa Catarina cresceu 13% em 2023, finalmente superando o patamar pré-pandemia.
Ainda que esse aumento esteja longe de garantir condições dignas de sobrevivência para as famílias, ele já foi suficiente para reduzir em cerca de 60% a incidência de trabalho infantil para crianças e adolescentes que residiam em domicílios com renda per capita de até 1/2 salário mínimo 2022. Chama a atenção que a queda foi mais intensa nas áreas rurais, onde é comum o trabalho de crianças vulneráveis em lavouras.
Um dos principais fatores que explicam essa melhoria na base da pirâmide de renda é o aumento do repasse de benefícios assistenciais para as famílias mais carentes. De acordo com os dados da PNADC, a massa de valores recebidos por programas sociais em Santa Catarina cresceu 21% em 2023. Se considerarmos somente as famílias com renda de até 1 salário mínimo per capita, o aumento chega a 33%.
Dois fatores principais explicam esse salto: o aumento do número de beneficiários e do valor médio pago pelo Programa Bolsa Família; e a redução da fila do INSS, que ampliou o acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC). Embora os dados sejam pouco representativos, nota-se que a incidência de trabalho infantil cai drasticamente entre as famílias que recebem auxílios sociais, em particular o Bolsa Família7.
Outro fator que pode estar contribuindo para a melhoria relativa do cenário é a retomada de políticas públicas federais de combate ao trabalho infantil. Em 2021, o Brasil contou com o menor número de auditores fiscais do trabalho em atividade desde 20098. Além disso, a Comissão Nacional de Erradicação de Trabalho Infantil, com atuação importante sobre o tema, foi extinta em 2019, sendo recriada no ano seguinte sem a participação do Ministério Público do Trabalho e da sociedade civil9.
A despeito da precariedade do sistema de autoria do trabalho brasileiro, sem concurso há mais de dez anos, houve uma importante reestruturação da área em 2023. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego, o órgão tem fortalecido sua atuação regional e intensificou, a partir de 2023, as fiscalizações sobre empresas que promoviam o trabalho infantil10.
Perfil do trabalho infantil em Santa Catarina
Dos 41 mil trabalhadores infantis catarinenses, quase 90% possuem de 14 a 17 anos. Nessa faixa etária, a proporção das pessoas em situação de trabalho infantil chega a 10%. Embora as estatísticas não sejam tão precisas quanto a isto, é seguro afirmar que, nesta faixa etária, mais da metade de todos aqueles que estão trabalhando estão em atividades degradantes e/ou que comprometem a escolarização.
A taxa de trabalho infantil também é maior entre meninos, atingindo 4,1%, e jovens autodeclarados pardos, com 3,8%. Como era de se esperar, a taxa de escolarização das crianças e adolescentes submetidos ao trabalho infantil é baixa, de apenas 87%, contra 98% da média estadual.
Em mais de 40% dos casos o trabalho infantil é realizado para um “empregador”, muitas vezes um membro da família. Comparativamente a 2022, os tipos de trabalho que mais diminuíram foram as atividades para consumo próprio (vide nota 4); e o “trabalho familiar auxiliar”, que ocorre quando a criança ou adolescente trabalha de ajudante a um membro de seu domicílio, sem ser diretamente remunerado por isso.
A lista das atividades econômicas mais associadas ao trabalho infantil em Santa Catarina é liderada pela confecção doméstica de artigos de vestuário, seguida pelas oficinas mecânicas, pela construção civil e pela agropecuária, com destaque para a criação de gado e o cultivo de fumo. Outras atividades de alto risco são os serviços domésticos e o comércio ambulante de alimentos.
Ao contrário do que poderia se imaginar, em geral não se tratam de trabalhos leves. Metade dos trabalhadores infantis estão ocupados em atividades prejudiciais à saúde, presentes na Lista TIP (vide nota 5) e cerca de 30% deles trabalham 40 horas por semana ou mais. A jornada de trabalho média é de 28 horas semanais, o que equivale a quase 6 horas por dia útil.
Considerações finais
O trabalho infantil, chaga histórica da sociedade brasileira, vinha em alta até 2022, refletindo o empobrecimento das famílias e o afrouxamento das políticas de fiscalização sobre as empresas. Os dados mais recentes da PNAD Contínua revelam uma inflexão importante nesse cenário em 2023, quando o índice de trabalho infantil atingiu seu menor patamar da série histórica no Brasil e em Santa Catarina.
A melhoria nos indicadores pode ser atribuída à recuperação da renda das famílias e à retomada da fiscalização. Por um lado, a valorização do salário mínimo, a redução do desemprego e, principalmente, o aumento das transferências de renda do Governo Federal diminuíram a pressão pela entrada prematura de crianças e adolescentes no mercado de trabalho. Por outro lado, o Ministério do Trabalho tem promovido alguns esforços no sentido de intensificar a fiscalização sobre as empresas, o que também pode ter reflexos sobre o cenário regional.
Apesar disso, Santa Catarina ainda conta com 41 mil crianças e adolescentes em atividades laborais degradantes e/ou que comprometem a escolarização. O problema se manifesta de forma mais aguda entre os adolescentes de 14 a 17 anos, representando mais da metade das pessoas dessa faixa etária que já estão ativas no mercado de trabalho. Isso revela que, ao contrário da ideia que se tem do jovem trabalhador como um aprendiz formalizado ou um estagiário em trabalho parcial, o cenário mais comum no estado ainda é o do subemprego, majoritariamente em atividades degradantes ou com elevadas jornadas de trabalho.
Os dados da PNADC também elucidam o perfil sociodemográfico e econômico do trabalho infantil no estado. Nesse sentido, destaque para a elevada participação de jovens do sexo masculino e moradores de zonas rurais. Entre as atividades econômicas, chama a atenção o uso indevido de força de trabalho infantil nas atividades domésticas de confecção (não raramente integradas a cadeias produtivas maiores), na construção civil, na agropecuária, em oficinas mecânicas e no comércio ambulante.
*Economista pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestrando em Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador colaborador do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.
1 Os dados de 2022 foram discutidos em texto publicado no Blog do Necat em dez/23.
2 Para mais detalhes, ver a seção What is child labour, no site da OIT.
3 O detalhamento completo dos critérios de trabalho infantil no Brasil pode ser conferido na Nota Técnica 01/2020 do IBGE.
4 O trabalho na produção para o autoconsumo é aquele realizado para o uso exclusivo da família/moradores do domicílio. Trata-se de atividades como as de pesca, criação de animais, corte ou coleta de lenha, costura, produção de alimentos ou atividades de construção doméstica.
5 A Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), prevista no Decreto nº 6481 de 2008, tipifica atividades proibidas para pessoas menores de 18 anos, por serem muito perigosas ou degradantes. Entre as ocupações mais comuns da lista, encontram-se atividades pesadas na agricultura (pulverização, cultivo de fumo, cana-de-açúcar, abacaxi, etc) e na construção civil (pedreiros, serventes, carregadores, etc), além da venda de bebidas alcoólicas, operação de veículos, máquinas cortantes ou outras atividades perigosas.
6 Os principais resultados para o Brasil podem ser conferidos no site da Agência de Notícias do IBGE. Já os dados agregados podem ser consultados na plataforma Sidra.
7 Vale lembrar que os condicionantes do Bolsa Família, como a matrícula e a frequência escolar, ajudam a combater o trabalho infantil.
8 Jornal USP. IBGE mostra que aumento do trabalho infantil pode estar ligado à falta de fiscalização. 2024.
9 BdF. Governo retira MPT, OIT e sociedade civil de comissão contra trabalho infantil. 2020.
10 Agência Gov. MTE afastou 2.564 crianças e adolescentes do trabalho infantil em 2023. 2024.