É precipitado flexibilizar o uso de máscaras neste momento da pandemia: notas sobre os casos do RJ e DF

02/11/2021 11:17

Por: Lauro Mattei[1]

Desde o mês de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a COVID-19 como pandemia e elencou algumas medidas preventivas para controlá-la, o tema do uso de máscaras se tornou um ponto controverso nos debates sobre a pandemia no Brasil. Em grande medida, o presidente do país se tornou um dos principais responsáveis por essa controvérsia, uma vez que cotidianamente vem se manifestando contrariamente ao uso desse equipamento que continua sendo eficaz na prevenção da doença, conforme mostraremos mais adiante com base no conhecimento científico e não em fake news.

Assim, ao longo de toda a pandemia o Presidente da República – no cume de toda sua ignorância sanitária – sempre se manifestou publicamente contra o uso de máscaras, chegando ao despropério de afirmar que as máscaras somente são úteis para as pessoas que estiverem infectadas, não sendo necessárias para aquelas pessoas que já foram contaminadas ou que já foram vacinadas. Para tanto, há tempos vem pressionando subordinados para apresentarem estudos visando desobrigar o uso de máscaras como medida preventiva ao novo coronavírus.

Tal “conhecimento” vem sendo seguido por diversas autoridades da República. Em manifestação recente a um site bolsonarista especializado em propagar mentiras, o senhor Marcelo Queiroga – atual Ministro da Saúde – se posicionou contra o uso de máscara em locais públicos porque, segundo ele, tal uso somente deveria ocorrer se o indivíduo fosse consciente.

Já em parecer recente encaminhado ao Supremo Tribunal Federal (STF) – que solicitava investigação sobre crime cometido pelo Presidente da República após aparecer em público por diversas vezes não usando máscara – a senhora Lindôra Araújo, Subprocuradora da República, afirmou categoricamente que o presidente não cometeu crime porque não é possível realizar testes rigorosos que comprovem a eficácia da máscara de proteção como um mecanismo que inibe a propagação do novo coronavírus[2].

Em contraposição ao negacionismo que tomou conta do país nessa matéria específica, apresentamos na sequência uma breve síntese de diversos estudos científicos que comprovam a eficácia do uso de máscara enquanto mecanismo de proteção ao novo coronavírus. Isto porque, desde o início da atual pandemia, cientistas de diversas áreas do conhecimento alertaram que medidas não farmacológicas (uso de máscaras, evitar aglomerações e respeitar o distanciamento social) eram essenciais para se controlar a pandemia. Vários estudos em diversas partes do mundo já comprovaram que as máscaras são eficazes para reduzir a transmissão do novo coronavírus porque ele é um vírus transmitido pelo ar. Assim, o processo de contaminação ocorre ao se inalar aerossóis produzidos quando uma pessoa contaminada tossir, espirrar, falar, etc. Neste caso, a máscara é essencial para evitar a inalação desses aerossóis. Por isso, esse equipamento, aliado ao distanciamento social e à ventilação de ambientes fechados, é fundamental para evitar a contaminação generalizada da população.

Estudo publicado no mês de junho de 2021 na Revista Science mostrou que as máscaras são capazes de prevenir a doença de duas formas: se a pessoa estiver em contato com alguém contaminado, a máscara atua como uma barreira impedindo a inalação de aerossóis, mas se a pessoa estiver infectada, a máscara auxilia na redução da disseminação do vírus na sociedade. Já estudo publicado na Revista Lancet no mês de janeiro de 2021 – analisando a transmissão do coronavírus em 350 mil pessoas nos EUA – constatou que um aumento de 10% no uso da máscara aumentou em 3 vezes as chances de manter a taxa de transmissão (Rt) abaixo de 1, fazendo com que a disseminação do vírus se reduzisse.

Além disso, estudo realizado pela UFRGS, UFPEL, UFCSPA e Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre e divulgado em março/21, revelou que o uso de máscara reduziu em 87% as chances das pessoas de serem infectadas pelo novo coronavírus. Tal resultado foi obtido a partir de um questionário aplicado em 271 pessoas presentes em uma lista de 3.437 pacientes positivas para a Covid-19. Mais uma vez a mensagem foi clara: enquanto menos de 70% da população não estiver imunizada, as medidas preventivas devem ser mantidas.

Portanto, o recado da ciência é claro: mesmo depois de vacinadas, as pessoas precisam manter as medidas preventivas, especialmente usar máscara e evitar aglomerações sociais, porque a vacina por si só não é capaz de impedir a contaminação uma vez que ela atua mais no sentido de evitar que as pessoas tenham um quadro grave da doença.

A precipitação das medidas de flexibilização do uso de máscara no RJ e DF

Ao longo da pandemia da Covid-19 diversos indicadores, além da taxa de transmissão do vírus, estão sendo considerados nas análises relativas à evolução da doença em um determinado espaço geográfico. Neste sentido destacamos dois deles: o Coeficiente de Incidência da doença a cada 100 mil habitantes e o Coeficiente de Mortalidade para o mesmo patamar populacional. No primeiro caso, tal coeficiente indica o número de pessoas doentes para cada 100 mil pessoas em um determinado período. Na essência, tal indicador mede a frequência de uma doença em um determinado local, auxiliando na adoção de medidas necessárias para o controle da mesma. Quanto maior for esse coeficiente, maior é o número de pessoas contaminadas na localidade. Já o Coeficiente de Mortalidade estabelece a relação entre o total de óbitos de um determinado local pela população total exposta ao risco de morrer em função de um determinado evento, como é o caso atual da Covid-19. Neste caso, esse coeficiente expressa a intensidade da ocorrência de mortes da população de um determinado espaço geográfico diante da pandemia do novo coronavírus.

Vejamos o comportamento desses dois coeficientes em cada uma das unidades da federação consideradas.  Quanto ao Coeficiente de Incidência, nota-se que o Distrito Federal (DF) apresentou ao longo do ano de 2021 o segundo maior coeficiente do país, ficando atrás apenas do estado de Roraima e logo à frente do estado de Santa Catarina. Ao final do mês de outubro o coeficiente do DF (17.090,9) era 1,65 vezes o coeficiente do país (10.370,5) e 3,35 vezes o coeficiente do Maranhão (5.102,3), o menor dentre todas as unidades da federação (UFs). Ao longo de todo o mês de outubro/21 o DF se manteve dentre as dez UFs com os maiores números de novos casos, com patamares semanais acima de 3 mil novos casos. Quanto ao Coeficiente de Mortalidade, o DF apresenta o 4º maior coeficiente do país, perdendo apenas para os estados do Mato Grosso, Rondônia e Rio de Janeiro. Ao final do mês de outubro esse coeficiente do DF (360,1) era 1,25 vezes o coeficiente do país (289,1) e 2,49 vezes o coeficiente do Maranhão (144,7) o menor dentre todas as unidades da federação (UFs).

Quanto ao Coeficiente de Incidência do estado do Rio de Janeiro (RJ), nota-se que ao longo do ano de 2021 o RJ apresentou o quinto menor coeficiente do país, ficando à frente dos estado de Alagoas, Pará, Pernambuco e Maranhão. Ao final do mês de outubro o coeficiente do RJ (7.650,0) era 0,74 vezes o coeficiente do país (10.370,5) e 1,50 vezes o coeficiente do Maranhão (5.102,3), o menor dentre todas as unidades da federação (UFs). Ao longo de todo o mês de outubro/21 o RJ se manteve dentre as cinco UFs com os maiores números de novos casos, com patamares semanais acima de 7 mil novos casos. Quanto ao Coeficiente de Mortalidade, o RJ apresenta o  maior coeficiente do país (395,7), sendo esse coeficiente  1,37 vezes o coeficiente do país (289,1) e 2,73 vezes o coeficiente do Maranhão (144,7) o menor dentre todas as unidades da federação (UFs).

O conjunto dessas informações revela que, tanto no DF como no RJ, a contaminação da população continua num estágio ainda acelerado e recomendando a manutenção de medidas preventivas até que a imunidade da população atinja percentuais recomendados internacionalmente, o que não é o caso atual em nenhuma das duas unidades da federação, as quais nas últimas semanas aboliram o uso de máscara em ambientes públicos.

É importante registrar que desde o início da pandemia estava claro que a imunidade social era obtida no patamar acima de 70%, quando então o vírus não coseguiria mais se propagar de forma pandêmica. Todavia, agora as autoridades dessas duas unidades federativas estão justificando suas decisões de flexibilização do uso de máscara a partir do patamar de 65% de imunizados. Na verdade, dados sistematizados até 31.10.2021 revelaram que a população imunizada do DF era de 54,05%, enquanto a do RJ não ultrapassou 51,33%.

Portanto, o número de novos casos diários e o número de mortes (RJ registrou 416 óbitos na última semana de outubro enquanto o DF teve 101 ocorrências no mesmo período) recomendam cautela neste momento, deixando claro que ainda não é hora de relaxar com as medidas preventivas essenciais, especialmente flexibilizando o uso de máscaras em qualquer ambiente.

Além disso, deve-se registrar que o processo de controle da pandemia está sendo bastante custoso para todos, porém não se pode perder tudo o que foi conquistado até o momento pela simples pressa de se abandonar medidas preventivas muito eficazes, como é o caso do uso de máscaras.


[1] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br

[2] Esse é um posicionamento que contraria manifestação de um ano antes da mesma autoridade no caso do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo que se negava a usar máscara em público. Naquele momento, tal atitude foi considerada um crime pela douta procuradora.