Educação e política de financiamento: reflexões pontuais sobre o custeio da educação pública de Santa Catarina

01/10/2021 09:55

Por: Juliano Giassi Goularti[1] e Luciane Carminatti[2]

“Esperança, almas antes proibidas simplesmente de falar gritam e cantam; corpos proibidos de pensar discursam e arrebentam as amarras que os prendiam.”

Paulo Freire, Pedagogia da Esperança

Primeiras palavras: Paulo Freire, patrono da educação brasileira

Na Pedagogia da Autonomia, Paulo Freire fala que “ensinar exige reflexão crítica sobre a prática” como também “ensinar exige consciência do inacabamento”. Na Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire também fala que “alfabetizar é conscientizar” e na Pedagogia da Esperança que é “preciso conscientizar e lutar” contra a concepção autoritária das elites dominantes. Na Ação cultural para a liberdade e outros escritos, que se entrelaça com as demais obras, Paulo Freire fala que o ponto de partida para uma análise deve ser a “compreensão critica dos seres humanos como existentes no mundo e com o mundo.”

Desta forma, por questionar a ditadura militar e por defender a educação como meio de transformação social do homem, Paulo Freire foi preso e logo depois exilado pelos militares, não apenas por suas ideias, mas porque estava empenhado na libertação do homem enquanto sujeito do processo de transformação.

No ano do centenário de Paulo Freire, é impossível não recordar todo seu empenho de mobilização para que um novo país pudesse se levantar diante de uma formação socioeconômica e cultural comandado por uma elite superposta e assistencialista, que sequer considera a educação como prática da liberdade do homem, mas sim como um negócio no qual a qualificação deve estar a serviço do mercado.

Não obstante, atribuir que a educação é para formação de “capital humano”, significa vê-las de maneira instrumental comandada pelo capital físico e financeiro. É também defini-las de forma passiva, sem autonomia, sem aspirações. Ou seja, a educação deixa de ser vista como um direito. Os benefícios da escolarização não se devem dar somente em relação aos melhores salários e progressão na carreira, mas sim para a qualificação da vida do homem enquanto sujeito transformador de sua realidade social.

O direito à educação, segundo Claude (2005),[3] é um direito de múltiplas faces: social (promove o pleno desenvolvimento da personalidade humana), econômica (favorece a autossuficiência econômica por meio do trabalho) e cultural (contribui para a construção de uma cultura universal de direitos humanos). Portanto, uma das tarefas essenciais é trabalhar criticamente a inteligibilidade dos eventos, das coisas e dos fatos reconhecendo que a educação nos tempos da globalização, dos avanços tecnológicos e da radicalidade fascista ameaçam direitos e garantias da educação pública como prática libertadora do homem.

Plano Estadual de Educação de Santa Catarina

Pensando na importância estratégica da educação e buscando romper os limites da universalização, no ano de 2015 foi aprovado o Plano Estadual de Educação, importante lei que estabeleceu metas, estratégias e prioridades para garantir o avanço da educação de qualidade no estado de Santa Catarina no decorrer dos anos de 2015 até 2024. Nunca é demais salientar que educação pública, universal e de qualidade se faz com política de financiamento que vai desde a valorização do professor até a oferta de instalações físicas socialmente adequadas. De todo modo, a educação é um dos pilares centrais de uma sociedade, seja ela desenvolvida ou subdesenvolvida.

Com 19 metas e 312 estratégicas, a discussão acerca da qualidade da educação pública catarinense remete à definição de como estado e sociedade entendam a educação pública. A priori não se trata simplesmente de dizer que a educação é prioridade, isso todo governo faz. A questão é mais profunda e envolve aquilo que Paulo Freire chama de “práxis”. Isto é, ações concretas na erradicação do analfabetismo, superação das desigualdades sociais, universalização do atendimento escolar em todas as etapas, erradicação do abandono/evasão escolar, educação em tempo integral, valorização dos profissionais do magistério e ampliação do investimento público.

Não obstante, o art. 212, § 3º, da Constituição Federal, prevê que “a distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório no que se refere à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do Plano Nacional de Educação”.[4] No ano em que nossa Constituição completa 33 anos, deve-se exigir que os recursos públicos sejam adequados, suficientes e em prol da emancipação das crianças e dos jovens por meio do direito à educação.

Todavia, se, por um lado, a Constituição assegurou como direito fundamental a aplicação mínima em educação, por outro, o Plano Nacional de Educação norteou os gestores educacionais em todas as esferas de governo. À vista disso, fica a seguinte indagação: os mecanismos de financiamento existentes e sua base de cálculo são suficientes e adequados para atender às necessidades de financiamento do sistema de educação básica?

Relativo ao cumprimento das metas, estratégias e prioridades do Plano Estadual de Educação, chama a atenção para, até agora, o não cumprimento da meta 19 que prevê ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do estado no quinto ano de vigência deste Plano e, no mínimo, o equivalente a 10% ao final do decênio.

Por ora, o gasto público em educação dos três entes federativos foi de 4,58% do PIB, em 2018, faltando 2,42% para chegar a 7% e 5,42% para alcançar 10% do PIB, com destaque para a aplicação de 1,62% do estado, 2,09% dos 295 municípios e 0,80% da União através dos Institutos Federais e das Universidades. Relativo ao gasto público per capita: UFSC R$ 36.848,24 mil, IFSC R$ 30.013,65 mil, UFFS R$ 28.812,98 mil, municípios R$ 8.136,07 mil e estado R$ 9.494,71 mil.

Em 2020, vivenciamos uma importante melhoria do financiamento da educação básica brasileira que, certamente, terá efeitos na qualidade da educação nacional, monitorada e estudada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e que tem grande relação com o e Custo-Aluno Qualidade (CAQ). Trata-se do Novo Fundeb – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.[5]

Desfinanciamento da educação pública catarinense

Historicamente três ações estruturaram o financiamento da educação no país: i) vinculação de recursos; ii) fundos de educação; iii) padrão mínimo de qualidade. Mesmo com um piso constitucional mínimo, há sistemáticos ataques que contribuem para desidratar sua base de financiamento, impedindo assim que a totalidade das metas, estratégias e prioridades sejam alcançadas ao final do decênio.

No âmbito nacional, podemos citar a Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 2016 (Teto dos Gastos), a recente reforma do Imposto de Renda (IR), os generosos privilégios tributários a título de renúncia de receita para o setor produtivo (R$ 350 bilhões) e o extraordinário estoque da dívida ativa federal (R$ 2,5 trilhões, sendo R$ 2 trilhões dívidas podres, com expectativa de recuperação de R$ 485 bilhões dentro dos próximos 15 anos). Em suma, todas estas ações articuladas por uma “práxis” política geram desfinanciamento do Fundeb.[6]

Em Santa Catarina, por exemplo, os fundos públicos que compõem o Sistema Estadual de Incentivo à Cultura, ao Turismo e ao Esporte (Seitec) e o Fundo de Desenvolvimento Social (Fundo Social), que recebem recursos provenientes da receita tributária do ICMS, mas que não são contabilizados como receita tributária, diminuíram a base de cálculo da pasta e, consequentemente, a aplicação de recursos na educação. Entre 2005/2014, foram desvinculados o total de R$ 1,21 bilhão (valores corrigidos pelo IPCA), sendo R$ 501,6 milhões relativos ao fundo do Seitec e R$ 717,92 milhões do Fundo Social, segundo relatório do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC).

Correlato a isso, a inclusão dos inativos da educação no cômputo do mínimo constitucional também contribui para desidratar a base de financiamento da educação. Somente em 2020 R$ 210,5 milhões deixaram de ser aplicados na pasta. No acumulado 2015/2020 temos a cifra de R$ 1,81 bilhão e entre 2010/2020 R$ 7,05 bilhões, conforme relatório do TCE/SC. Ainda contribuem para rebaixar o financiamento da educação as políticas de incentivos fiscais, que entre 2010/2020 desvincularam R$ 14,01 bilhões da manutenção dos serviços de educação pública estadual e, desde a aprovação do Plano Estadual de Educação, em 2015, cerca de R$ 7,21 bilhões. Por isso a “denúncia e o anúncio” destas informações não são palavras vazias, mas sim um compromisso histórico com a educação pública.

O relatório final da Comissão Mista da Assembleia legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc), com o propósito de elaborar proposta de alterações e melhorias no plano de cargos e carreira do magistério, e encaminhar ao Poder Executivo estadual, sugeriu como encaminhamento, que o Poder Executivo envie, o mais breve possível, à Alesc, uma proposta de legislação complementar preservando o financiamento socialmente necessário da educação, de modo que o governo, ao promover uma política de renúncia de receita tributária, preserve a garantia integral do mínimo constitucional e não mais desvincule recursos garantidos na Constituição Federal de 1988 e Estadual de 1989. Mantendo recursos necessários a para concretização do Plano Estadual de Educação.

À vista disto, as demandas por efetividade de direitos sociais e garantias fundamentais não podem ser tratadas como fatores de perturbação social. O governo financia os seus gastos orçamentários predominantemente pela cobrança de tributos. Porém, a dívida ativa do estado que está avaliada em R$ 21,52 bilhões, subtraídas as provisões de perdas de R$ 21,07 bilhões e resultando numa dívida ativa líquida de R$ 448,63 milhões, implica numa perda estimada irreparável de R$ 5,26 bilhões e R$ 112,15 milhões.

A motivação e a aprovação de políticas de desfinanciamento são uma violação às garantias constitucionais e uma afronta aos direitos da criança e do adolescente. O ato de desidratar o financiamento da educação necessita da compreensão crítica como “práxis” educativa, uma fez que estes fundos, a renúncia de receita e a dívida ativa interferem no cumprimento das metas, estratégias e prioridades estabelecidas pelo Plano Estadual de Educação.

Dívida histórica com a educação e oportunidade de superação

A dívida histórica do país para com a educação pública em todas as etapas do ensino não pode ser contraposta à suposta restrição fiscal, a ineficiência alocativa e a desvinculação por mecanismos de renúncia de receita, dívida ativa e demais fundos públicos como, por exemplo, os dois citados acima. Isso corrobora para que a dívida histórica com a educação não seja suprida. É preciso esclarecer que os direitos sociais são direitos fundamentais e integram o rol de direitos intangíveis. A Constituição Federal é clara: não pode haver retrocesso social, tampouco as alterações no manejo orçamentário das receitas e despesas vinculadas à educação.

Como exemplo, a educação na Coréia do Sul foi motor do desenvolvimento do país. Desde o fim da guerra da Coréia o país procurou coordenar a política educacional com a estratégia de desenvolvimento nacional. Primeiro o estado priorizou a educação primária e só quando universalizou, passou a destinar recursos para as demais etapas. Gradativamente, o governo foi elevando o investimento na pasta e, por duas décadas, foram investidos cerca de 10% do PIB do país em educação. Como resultado, em 1989, a Coréia do Sul foi considerada oficialmente um país desenvolvido, superando a sua dívida histórica com a educação. Hoje o modelo de educação implantado na Coréia do Sul conta com um investimento governamental em educação de 7,6% do PIB, tanto que lidera o ranking de países com a melhor educação mundial, segundo o Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA).

No Brasil, discutir a dívida estrutural com a educação pública brasileira implica, em primeiro lugar, considerar os excluídos dos direitos básicos: os pobres e miseráveis. O Brasil apresenta, de forma agravada, características de país subdesenvolvido, com enorme desigualdade na distribuição da renda e imensas deficiências no sistema educacional. A educação sempre foi considerada pelos sucessivos governos um bem em si, pelas inúmeras oportunidades que pode oferecer ao homem. Mas isso, por si só, não cria as condições para a universalização do acesso à escola, a democratização do ensino e para a superação da dívida histórica do país com a educação. É preciso a “práxis”, como já alertou Paulo Freire, o mestre de todos nós educadores!

Embora a dívida educacional do estado de Santa Catarina seja menor quando comparado com as demais unidades da federação – a taxa de analfabetismo em Santa Catarina caiu para 2,3%, em 2019, ante 2,5%, em 2018, sendo a segunda menor taxa do país – ela não pode ser minimizada. Não por menos, uma ação para a superação desta dívida é a descompactação da tabela de vencimentos do magistério, estabelecendo uma diferença de 50% entre o nível de ensino médio e o nível de licenciatura plena e 100% entre o nível médio e o nível de doutorado.

Destarte, a EC nº 108/2020 – originária da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 15/2015, na Câmara dos Deputados, e a PEC nº 26/2020, no Senado Federal – estabeleceu novas regras de financiamento da educação básica a serem implementadas a partir de 2021 – consolidando um novo critério de distribuição de recursos com base no parâmetro do Valor Aluno Ano Total (VAAT), na qual sua adoção terá como instrumento de implantação o Custo Aluno Qualidade (CAQ), constituindo uma oportunidade histórica de o estado de Santa Catarina trilhar caminhos de superação desta dívida.

Em resumo, a PEC estadual 004.2/2021,[7] resultado da EC nº 108/2010, pode ofertar as condições necessárias para a oferta do ensino com qualidade no estado, que incluem suprir as necessidades de pessoal, condições adequadas de remuneração e instalações que propiciam a participação democrática no projeto da instituição educativa além de auxiliar no combate evasão e/ou abandono escolar que está entre os maiores desafios da educação brasileira e de Santa Catarina.

Palavras finais

Como um país federativo, o Brasil apresenta muita desigualdade nos investimentos por aluno entre seus estados e municípios – como, por exemplo, o gasto per capita da união, estado e municípios em Santa Catarina. Muito embora a Constituição Federal estabelecesse entre os princípios do ensino a “garantia de padrão de qualidade”,[8] e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e o Plano Nacional de Educação tenham alterado a política de financiamento educacional, é preciso ter uma análise crítica, pois segundo Paulo Freire, “A experiência nos ensina que nem todo óbvio é tão óbvio quanto parece.”


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Economia Catarinense (NECAT) da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC)

[2] Professora, deputada estadual e presidenta da Comissão de Educação da ALESC

[3] CLAUDE, Richard Pierre. Direito à Educação e Educação para os Direitos Humanos. Sur, Rev. int. direitos human. [on line]. 2005, vol.2, nº 2, pp. 36-63.

[4] Plano Nacional de Educação estabeleceu 20 metas e 254 estratégias destinadas a universalizar a educação básica, ampliar a escolaridade média, reduzir as desigualdades, respeitar a diversidade, valorizar os profissionais da educação e incrementar o acesso ao ensino superior, elevando os seus padrões.

[5] O Fundeb é composto por 27 fundos no âmbito dos estados e do Distrito Federal (DF). Esses fundos recolhem parte das receitas, que são subvinculações das aplicações mínimas de estados, do DF e de municípios, na manutenção e no desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212, caput, da Constituição Federal.

[6] Com a transformação do Fundeb em fundo permanente, ele foi regulamentado com a sanção da Lei n° 14.113, de 2020. Vale registrar que o Custo Aluno Qualidade (CAQ) é a ferramenta normativa que já se encontra prevista nas estratégias 7.21 e 20.6 a 20.8 do Plano Nacional de Educação. Portanto, o direito à educação não se limita apenas ao acesso e permanência do aluno na escola, mas também envolve equidade e a qualidade.

[7] Disponível em: http://visualizador.alesc.sc.gov.br/VisualizadorDocumentos/paginas/visualizadorDocumentos.jsf?token=5ee05096fff7078f4fc32111aa18418ce0b889d0f149fc1a4b4a0b64e8fde7fb422e20fe715b0d392a65dfd43853598e

[8] A garantia de “padrões mínimos de qualidade de ensino” também está normatizada na Lei de Diretrizes de Base, especificamente no art. 4º, como um dever do estado, “definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.”