Efeitos da revisão do Novo Caged sobre o mercado formal de trabalho em Santa Catarina

12/11/2021 10:06

Por: Lauro Mattei[1]

No mês de dezembro de 1965 o Governo Federal promulgou a Lei n.º 4.923, de 23.12.1965, tornando obrigatório o registro, por parte das empresas, de todas as admissões e desligamentos de trabalhadores regidos pela CLT. Essa obrigatoriedade é mensal e se estende a todos os municípios do país, sendo que as informações precisam estar no Ministério do Trabalho até o 7º dia do mês subsequente. A partir de então o governo passou a divulgar mensalmente um conjunto de informações naquilo que ficou conhecido como o “mercado formal de trabalho” do país, o qual é mensurado pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED).

Esse sistema foi sendo aprimorado ao longo do tempo, especialmente a partir do advento das novas tecnologias, as quais propiciaram que a divulgação atingisse o sistema online atual. Mas o próprio sistema de declaração das empresas também passou por processos constantes de aprimoramento, particularmente quando o Ministério do Trabalho ampliou seu sistema de acompanhamento e controle nesta parte específica do mercado de trabalho brasileiro.

A mais recente alteração desse sistema de registros de empregos e desligamentos ocorreu na passagem de 2019 para 2020, momento em que o governo atual resolveu implantar uma nova forma de captação das informações, conforme discutiremos a seguir. Finalmente, no mês de outubro/21 o governo fez uma primeira revisão das informações coletadas pelo novo sistema desde o mês de janeiro de 2020, assunto que merecerá atenção específica para o caso de Santa Catarina.

Breve síntese das alterações promovidas no CAGED a partir de 2019-2020

Em 11.12.2014 foi instituído – por meio do Decreto nº 8373 – o Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas, sistema popularmente conhecido como eSocial. E em 14.10.2019, a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (SEPRT), do Ministério da Economia, emitiu a Portaria nº 1.127 SEPRT-ME, definindo datas e condições pelas quais as informações até então prestadas pelo CAGED e pela Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) seriam substituídas pelo eSocial, cujo objetivo era simplificar e unificar informações sobre empresas e trabalhadores. Destaca-se que, diferentemente do CAGED e da RAIS, o eSocial tem uma gestão compartilhada entre a SEPRT e a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).

A transição para o eSocial obedeceu a um calendário oriundo de uma divisão dos trabalhadores em seis grupos com prazos distintos a partir de dezembro de 2019, sendo que o sexto grupo composto por ente públicos de âmbito municipal, comissões polinacionais e consórcios públicos teria a transição encerrada em 31.12.2021. Ou seja, a transição da mudança na base de dados iniciada ainda em 2019 deverá ser encerrada ao final de 2021.

Do ponto de vista metodológico, destacam-se diversos aspectos. Em primeiro lugar é importante mencionar que o CAGED foi criado com a finalidade de registrar as relações trabalhistas, enquanto o eSocial possui um caráter mais amplo, ou seja, é tributário, previdenciário e trabalhista. Outro aspecto diz respeito à cobertura de cada indicador, uma vez que os registros temporários no CAGED são opcionais, enquanto no eSocial são obrigatórios, fato que pode alterar o volume de movimentação dos Vínculos Formais de Trabalho (VFT) porque o eSocial geralmente  possui um volume bem maior desse tipos de vínculos. Além disso, a captação de declarações fora de prazo obedece a calendários distintos entre o CAGED (12 meses) e o eSocial (sem limite de tempo). Por fim, a mudança metodológica que consideramos uma das mais relevantes diz respeito aos segmentos dos trabalhadores que devem ou não ser declarados. No eSocial todos os trabalhadores são declarados, enquanto no CAGED existe uma vasta lista de trabalhadores que não devem ser computados, destacando-se os trabalhadores avulsos, sem vínculos empregatícios, eventuais, dirigentes sindicais, autônomos, estagiários, trabalhadores por contratos com prazos determinados, etc.

Do ponto de vista da opção metodológico, verifica-se que o “Novo Caged” optou pelo método da imputação de dados de outras fontes visando atacar problemas relativos à falta de informação ou da inconsistência das mesmas. Todavia, tal método poderá causar alguns problemas, especialmente em termos de duplicidade de informações, em retificações de informações com períodos diferentes, falta de compatibilidade entre variáveis, etc. Por fim, os responsáveis pelas mudanças admitiram que a natureza distinta de captação das informações entre o CAGED e o eSocial apresenta implicações sobre as análises estatísticas, bem como sobre a comparabilidade das séries históricas, fato esse que foi desprezado por muitos analistas quando das divulgações mensais das informações.

A equipe técnica da SEPRT, ao exercitar essa nova metodologia com base nos dados de 2019 do CAGED antigo e do eSocial, percebeu que os indicadores do eSocial foram muito superiores no quesito admissões e praticamente idênticos no quesito desligamentos, ficando óbvio desde então os resultados que foram constatados na revisão realizada recentemente.

Em janeiro de 2020 teve início a transição para o chamado “Novo CAGED”. Mas já nos dois primeiros meses desse ano ocorreram sérios problemas com o novo sistema, uma vez que a SEPRT-ME constatou que muitas empresas deixaram de informar os desligamentos no eSOCIAL, comprometendo as transferências da base de dados. Esse problema, somado às dificuldades decorrentes das consequências da pandemia sobre as empresas (muitas estavam sem operação e outras estavam operando apenas com trabalho remoto), levou a SEPRT-ME a suspender a divulgação mensal do CAGED até o mês de abril/20 para readequar as duas bases de dados (CAGED e eSOCIAL). Com isso, as informações relativas aos meses de janeiro a abril desse ano foram divulgadas somente no final do mês de maio de 2020, ao passo que as informações relativas ao mês de maio foram divulgadas somente ao final de junho/20. Daí em diante as divulgações voltaram a seguir os cronogramas estabelecidos pelos órgãos responsáveis.

Notas sobre a primeira revisão do “Novo CAGED” divulgada em novembro/21

No início de novembro/21 o Ministério do Trabalho e Previdência divulgou os novos dados relativos ao Mercado Formal do Trabalho do país. Nessa oportunidade foi apresentada uma revisão da metodologia do “Novo Caged” relativa aos dados do exercício de 2020. Tal revisão revelou que efetivamente foi gerado um saldo de apenas 75.883 vínculos formais de trabalho no referido ano, contrariamente ao que tinha sido divulgado em janeiro de 2021 (142.690 VFT). Isso significa um percentual de 46,82% inferior ao que havia sido computado no primeiro ano de pandemia e divulgado no início do corrente ano. Registre-se que naquele momento o Ministro da Economia celebrou esse fato como um dos grandes feitos de suas ações, indicando que os resultados eram um bom sinal de recuperação das atividades econômicas, enquanto o Presidente da República afirmou que, apesar do período terrível da pandemia, o país fechou o ano de 2020 com saldos bastante positivos de empregos.

Pelo Painel de Informações do “Novo Caged” agora é possível verificar que no exercício de 2020 ocorreram 15.437.117 admissões e 15.361.234 desligamentos, resultando num saldo positivo de 75.883 de vínculos formais de trabalho. Todavia, ainda assim não é possível se saber quanto desse montante é efetivamente “emprego formal” e quantos são contratos via Carteira Verde Amarela, instrumento que oficializa um vínculo de trabalho sem garantias dos direitos trabalhistas (INSS, FGTS, Férias, 13º salário, etc.) e que, na prática, está formalizando os famosos “bicos”.

Sem dúvidas, a metodologia utilizada pelo “Novo Caged” permite que ocorra esse distanciamento da realidade[2], uma vez que a ampliação das informações decorre, em grande medida, do fato de que os dados sobre vínculos temporários de trabalho passaram a ser considerados como VFT, tendo em vista que o sistema eSocial assim os considera.

Mesmo assim, o Governo Federal – em nota divulgada em 03.11.2021 – fez uma ginástica para tentar explicar tamanha diferença, procurando justificá-la apenas à luz do fato de que as contratações e demissões foram informadas, por parte das empresas, fora dos prazos. Acontece que o eSocial não tem um prazo definido, como ocorria com o antigo Caged, cujo prazo era de 12 meses. Portanto, entendemos que esse não é o fator essencial capaz de explicar a expressiva diferença verificada na revisão recente para o conjunto do país.

Efeitos das revisões recentes no CAGED do estado de Santa Catarina

Ao longo do período considerado na revisão dos dados do “Novo Caged” (janeiro de 2020 a setembro de 2021) realizada pela equipe técnica do Ministério do Trabalho e Previdência são observadas diferenças consideráveis dentre as diversas unidades da federação. Para isso, apresenta-se a Tabela 1 com informações relativas ao estado de Santa Catarina no mesmo período.

Uma maneira mais fácil para entender essas alterações é estratificando as diferenças encontradas por alguns períodos, conforme apresentaremos na sequência:

            1º)Nos meses anteriores ao início da pandemia (janeiro e fevereiro/20) nota-se que houve uma subnotificação de 8.162 VFT, ou seja, foram gerados 8.162 vínculos formais de trabalho a mais do que havia sido registrado;

            2º)No período de grande incidência da pandemia (meses de março a julho/20) verifica-se que ocorreu uma minimização das perdas de VFT no estado, uma vez que os 99.134 vínculos perdidos, após a revisão, se transformaram em 109.515 vínculos formais no período;

Tabela 1: Diferenças entre os valores registrados entre janeiro/20 a setembro/21 e os valores revisados no mesmo período

 T1

Fonte: CAGED, diversos meses.

         3º)O total de vínculos formais de trabalho recuperado entre os meses de julho e dezembro/20 (107.484), na verdade era 108.062 VFT, indicando que nesse período houve uma notificação a menos de apenas 578 VFT;

            4º)O total de vínculos formais de trabalho registrado entre janeiro e setembro/21 (178.011) após a revisão ficou em 176.289, ou seja, no ano de 2021 ocorreu uma notificação a mais de 1.722 vínculos formais, correspondendo a apenas 1% a mais;

            5º)O saldo acumulado no período completo (janeiro/20 a setembro/21) após a revisão apresentou uma diferença de -2.863, correspondendo a 1,5%, patamar que pode ser considerado perfeitamente factível com a evolução do mercado formal de trabalho do estado catarinense.

Considerações Finais

No mês de maio de 2020, em plena pandemia e de forma atrasada o governo atual divulgou as primeiras informações sobre o “Novo CAGED”, enaltecendo suas virtudes e minimizando os impactos da pandemia sobre o mercado formal do país que, naquele momento, já eram extremamente preocupantes. Isto porque a PNAD Contínua do IBGE revelava, no mesmo instante, um cenário de desemprego em massa decorrente da nova situação econômica e social do país devido à COVID-19.

O que se viu na sequência, tanto por parte do Presidente da República como do Ministro da Economia, foi um comportamento efusivo a cada mês quando eram divulgados os resultados do Novo Caged. Não vamos repetir aqui um conjunto de impropérios proferidos sobre a realidade do mercado formal de trabalho do país nestes dois últimos anos, uma vez que os dados revistos recentemente falam por si mesmo. Todavia, fica evidente que tais intervenções públicas tinham o objetivo claro de esconder a realidade do mercado de trabalho, que desde o início da pandemia vem convivendo com uma das maiores crises de sua história. Tal suposição ficou escancarada recentemente quando da divulgação dos dados corrigidos, que sofreram uma redução de mais de 46% para o conjunto do país. Diante de tal cenário totalmente adverso ao que vinha sendo propalado nos dois últimos anos, o que se viu foi um silêncio sepulcral por parte das autoridades governamentais, especialmente dos dois sujeitos anteriormente mencionados.

No caso do conjunto do país, dados das pesquisas PNAD Contínua revelaram seguidamente os elevados índices de desemprego, bem como a precarização das relações de trabalho, considerando-se que grande parte dos postos de trabalho recuperados após a diminuição dos impactos da pandemia está concentrada em níveis salariais bastante inferiores aos praticados anteriormente.

No caso de Santa Catarina as revisões recentes na base de dados do “Novo Caged” realizadas pelo Ministério do Trabalho e Previdência não são expressivas quantitativamente, porém são bastante relevantes no sentido de se compreender melhor os impactos da pandemia sobre o mercado formal de trabalho, especialmente nos meses iniciais de incidência da Covid-19 no estado, bem como as reações nos momentos posteriores. Neste caso, deve-se registrar que após algumas oscilações no final do ano de 2020, a retomada mais ampla das atividades econômicas ao longo do ano de 2021, especialmente dos diversos subsetores da área de serviços, fez com que os vínculos formais de trabalho retornassem a patamares superiores àqueles verificados anteriormente ao início da pandemia. Em grande medida, essa situação revela uma tendência histórica do mercado formal de trabalho catarinense que, ao longo das duas últimas décadas, sempre apresentou as maiores taxas de formalização do país.

Referências

Ministério da Economia. Secretaria Especial de Previdência e do Trabalho. Secretaria do Trabalho. Nota Técnica 01. Substituição da captação dos dados do CAGED pelo eSocial. Brasília, 27.05.2020.

IPEA. Boletim Mercado de Trabalho. Conjuntura e análise Nº 69. Substituição da captação de dados do CAGED pelo eSocial: implicações para as estatísticas do emprego formal. Brasília, 24.07.2020.


[1] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do Necat/UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br. Agradecimentos ao bolsista do NECAT Victor Hugo Azevedo Nass que gerou a tabela de dados de Santa Catarina.

[2] Agora ficaram mais evidentes as discrepâncias entre as informações desse instrumento estatístico do Ministério do Trabalho e as PNAD Contínuas realizadas mensalmente pelo IBGE, que apontavam problemas de desemprego bem mais expressivos, comparativamente ao Novo Caged.