Karl Marx e a financeirização: a categoria juros como fenômeno geral
Renildo Souza*
Neste segundo artigo da série, voltamos a discutir as possíveis pistas, os começos de elaboração, acerca da finança da lavra de Karl Marx na Seção V do livro III de O capital.
Capitalistas monetários e produtivos
A separação de capitalistas monetários e capitalistas industriais deu materialidade à criação da categoria dos juros, observava Karl Marx. O capitalista monetário e o capitalista produtivo “representam papéis diferentes no processo de reprodução”,1 argumentava Marx. Essa separação entre os capitalistas não era um entendimento subjetivo desses personagens do capital. Havia o fato objetivo da destinação dos juros para o capitalista monetário e do ganho empresarial para o capitalista ativo. Tratava-se de uma divisão quantitativa e qualitativa, ao mesmo tempo.
A separação qualitativa consistia na autonomia dos juros em face do ganho empresarial. Isso era percebido por toda a classe capitalista, como um fenômeno geral, independentemente de o lucro ter decorrido da operação real com capital próprio ou emprestado. Dessa explicação de Marx, o mais importante para o capitalismo financeirizado do século XXI é a normalização do caráter qualitativo da autonomização da parcela dos juros, como se fosse fruto exclusivo da mera propriedade do capital, fora do processo de produção.
Desde a época de Marx, “a maioria dos capitalistas industriais, ainda que em proporções distintas, trabalha com capital próprio e emprestado”, com um e outro, gêmeos.2 Isso mantém-se, mas aprofundou-se no capitalismo financeirizado do século XXI, com a escalada das dívidas das corporações. Houve uma mudança profunda, qualitativa: a corporação industrial tornou-se em parte uma instituição financeira. Ela opera na produção de mercadorias e no mercado financeiro, mesmo que sua atividade principal seja na esfera produtiva. Seus resultados financeiros, não-operacionais, tornaram-se uma necessidade normal para sua existência como capital.
No século XIX, na Inglaterra, havia clara demarcação entre os capitalistas industriais, comerciais e monetários. Era o tempo de Marx. Desde o início do século XX, os bancos se imiscuíram organicamente na vida da indústria, sobretudo na Alemanha, dando lugar à categoria do capital financeiro. Era o tempo de Rudolf Hilferding, Nikolai Bukharin, Vladímir Lênin.3
E agora? Agora, desde as duas últimas décadas do século XX, impõe-se, globalmente, o capitalismo financeirizado, com a interpenetração entre bancos comerciais, bancos de investimentos, fundos de pensão e de aplicação mútua, fundo de hedge e de private equity, seguradoras e corporações produtivas e comerciais. Entre todos eles há convergência no sentido da financeirização estrutural, sem perda das características e funções principais de cada um e sem supressão das suas contradições recíprocas.
Algumas supostas vantagens e desvantagens do lado produtivo (financeiro) foram internalizadas pelo lado financeiro (produtivo). Nesse sentido, não há só liquidez nem só imobilização de capital. Juros e ganho empresarial precisam ser unidos e separados ao mesmo tempo.
Neste âmbito, José Carlos Souza Braga afirma que já não faz sentido distinguir empresa financeira e empresa não-financeira, considerando-se a qualidade da interpenetração da finança e da produção na nova forma de configuração e gestão da riqueza em geral. Não há mais o “corte capital produtivo versus capital bancário”, afirma Braga.4 A corporação “produtiva”, de grande porte, tem um comportamento ativo, agressivo e permanente nos mais diversos tipos de atividade monetária e financeira.
A corporação busca ganhos financeiros e, ao mesmo tempo, aprofunda estratégias de marketing de marcas e produtos. Promove inovações tecnológicas. Disputa posicionamento na cadeia global de valor contando com outsourcing e subcontratações de produção, além do financiamento de seus fornecedores.
Marx falava que o capitalista industrial tinha que “enfrentar a classe dos capitalistas monetários como uma categoria particular de capitalistas”. 5Na estrutura da sociedade do capitalismo financeirizado, persistem, em certo sentido, as identidades das distintas frações sociais de capitalistas ao lado de embaralhamento de interesses.
Aliás, hoje, as contradições entre os grupos de capitalistas tornaram-se mais agudas, como demonstram as falências, reestruturações e os episódios de take-over. As fusões e aquisições, cada vez mais amplas, em movimento permanente, constituem oportunidades para a centralização da riqueza financeira.
Um exemplo no Brasil das consequências dessas novas relações foi a utilização de crédito como adiantamento para contratos de exportação por grandes empresas, como a Sadia, para a especulação com derivativos. Contudo, o grupo Sadia foi golpeado pela frustração de suas apostas especulativas no mercado de derivativos de câmbio, com a desvalorização da moeda brasileira, por conta da crise global de 2008. Em determinado momento, na crise, a Sadia foi “engolida” pelo concorrente grupo Perdigão, constituindo a Brasil Foods S.A. (BRF).
Em 2018 a gigante BRF foi abalada pela escalada de conflitos no interior da sua pluralidade de poderosos sócios, oriundos de diversas esferas, inclusive fundos de pensão. Vale notar que a BRF é a maior empresa de alimentos do Brasil, tem 50 fábricas em 50 países e vendas em 127 nações.
De um lado, há algumas interpretações sobre a financeirização que resvalam para ignorar completamente essas importantes contradições sociais intercapitalistas, subestimando o desenvolvimento produtivo, no afã de enfatizar a dominância financeira no século XXI. E, de outro lado, há abordagens, com idealização produtiva, que também não compreendem o significado dessas contradições. Além disso, subestima-se na prática a luta de classes entre a burguesia e a classe trabalhadora, enfraquecendo o combate à exploração do trabalho, em crescente agravamento, nas mãos do capital ativo na produção. Wall Street e Main Street ou Febraban e Fiesp estão unidos quando se trata de promover o ataque e a precarização do trabalho, que é um aspecto crucial do capitalismo contemporâneo.
Como disse Marx, “os juros e o ganho empresarial só existem em antítese mútua. Nenhuma das duas se refere, portanto, ao mais-valor, do qual elas não são mais partes fixadas em categorias, rubricas ou nomes distintos”6. Ademais, “o trabalhador, é absolutamente indiferente se o capitalista procede desse modo [com capital próprio, embolsando todo o lucro] ou se é obrigado a ceder uma parte a um terceiro como proprietário legal do capital”.7
Ganho empresarial e juros no comportamento de países e empresas
Os capitalistas produtivos se dispõem a pagar juros mais elevados “em proporção direta ao nível da taxa de lucro”. Entretanto, no longo prazo, surge uma tendência à queda da taxa de lucro, em razão do aumento da composição orgânica do capital. Tende a se manifestar uma relação inversa entre a taxa de lucro e a produção capitalista desenvolvida e madura. Considerando essa tendência em termos comparativos entre países, haverá taxas de juros distintas ao se contrastar formações relativamente atrasadas e avançadas, do ponto de vista econômico. A condição para esse resultado, inalterados os demais fatores hipoteticamente, é que a diferença entre os juros represente os graus distintos da lucratividade entre os países comparados, avaliava Marx.
A financeirização, porém, alterou qualitativamente as relações entre produção e finança no mundo. Esse tipo de comparação entre países, a partir diversidade e interação entre lucros, o todo, e os juros, a parte, tornou-se muito mais complexa. Constituíram-se novas formas de assimetria entre o centro e a periferia. Os diferentes mercados financeiros tornaram-se, em maior ou menor grau, integrados no interior dos países.
Essa integração também ocorreu globalmente, a despeito das particularidades produtivas e financeiras nacionais e da acentuação da hierarquia de riqueza entre os países. As políticas dos principais bancos centrais e, sobretudo, as estratégias dos fundos de centralização e gestão de massas gigantescas de riqueza financeira determinam a dinâmica dos mercados, com arbitragem entre os mais diversos instrumentos, a exemplo dos swaps de juros e os derivativos de câmbio.
De qualquer modo, conforme as variações das circunstâncias monetárias e financeiras no curso da produção capitalista, como ficou provado na crise de 2008, continua válida a conclusão de Marx de que as empresas, pelo capital industrial ou comercial, demandam dinheiro como meio de pagamento, em um cenário de expectativa de disparada das taxas de juros. Para confirmar isso, basta mencionar o caso das grandes empresas automobilísticas dos Estados Unidos, salvas da falência pelo dinheiro público.
Foi preciso reduzir as rupturas das cadeias de pagamentos e abortar a esperada alta dos juros. Por isso, os bancos centrais dos países desenvolvidos, liderados pelo Federal Reserve System (FED, banco central dos Estados Unidos), tiveram de intervir com massiva liquidez de dinheiro de crédito e forçaram as taxas de juros, pela negociação dos títulos, à quase nulidade.
Cabe ressalvar que se a taxa de juros é muito baixa, então a empresa devedora atua quase como se fosse dependente apenas de capital próprio, o que não tem cabimento na governança das instituições financeiras sobre a corporação produtiva, hoje. Mesmo em sua época, Marx observava que o capitalista que utiliza apenas capital próprio já fazia a contabilidade separada dos juros, como parte do lucro. Assim, Marx concluía que a repartição do lucro, com o cálculo separado dos juros, nem sempre convertia essa divisão quantitativa numa divisão qualitativa. Obviamente, não era sempre forçosamente necessária aquela separação entre os capitalistas monetários e industriais.
A flutuação dos juros
Marx se refere ao ciclo industrial, identificando as fases de estabilidade, animação crescente, prosperidade, superprodução, crash, estagnação e retomada do movimento cíclico. Assim, o movimento da indústria moderna percorria a fase de prosperidade a juros baixos e, depois de dificuldades da produção, era acompanhada por elevação dos juros. “Mas um aumento dos juros até o ponto de extrema usura corresponde ao período da crise”. Marx, porém, também reconhece a possibilidade ainda de em algumas circunstâncias ocorrer a coincidência de juros baixos com estagnação produtiva e juros moderadamente elevados com uma retomada expressiva dos negócios.8
O patamar das taxas de juros era também influenciado tanto pelo surgimento de numeroso grupo social de rentistas, a partir do aumento da riqueza do país, quanto pelo desenvolvimento do sistema de crédito, com a concentração das poupanças nos bancos. No Brasil, o descenso da produção industrial, a hiperconcentração bancária e o gigantesco rentismo sobre a dívida pública combinaram-se para gerar taxas absurdamente elevadas, fora de qualquer comparação internacional. Tal estado de coisas em termos da taxa de juros tem sido um atributo central, duradouro, da financeirização no Brasil.
Ademais, há uma conexão internacional, porque a finança desde a origem contou com a arbitragem de taxas de juros entre países. Neste sentido, Marx menciona a nota do Rio de Janeiro Prices Current, publicada em 10 de maio de 1847, mostrando que ingleses venderam no Brasil títulos públicos em massa, que tinham sido comprados quando a taxa de juros era baixa na Inglaterra.9 Quando os juros ingleses subiram, foi feito o caminho de volta, com remessas incrementadas pelos rendimentos. Os juros estratosféricos no Brasil, persistentemente desde a década de 1980, são do interesse direto da finança internacional, como já foi no passado.
Após Marx, desde o final do século XIX, o ciclo econômico tem passado por grandes alterações, associadas aos monopólios, ao capital financeiro, à intervenção estatal. As paralisações são mais frequentes e as recuperações mais fracas. Há ainda o caso excepcional do crescimento de mais duas décadas no período pós-Segunda Guerra Mundial, em um cenário de reconstrução econômica, modernização tecnológica e consumo de massas.
Com a financeirização, têm sido recorrentes os episódios de bolhas financeiras, como as recentes do setor de tecnologia da informação (TI, ponto com) em 1997-1999 e imobiliária em 2003-2007.
O capital monetário na sociedade
A economia vulgar, desde Marx até hoje, iguala a parte e o todo. Por exemplo, hoje, na defesa da austeridade fiscal sempre é igualada a natureza e a gestão dos orçamentos de uma família e do Estado. Marx chama a atenção de que um indivíduo pode manter seu capital fora do investimento produtivo, convertendo-o em capital portador de juros. Para o indivíduo, os juros aparecem como se fosse renda gerada pelo capital por si só. Mas é claro que não faz sentido a generalização desse comportamento para todo o capital da sociedade e para a explicação da origem do lucro. Isso é um disparate dos economistas vulgares, aponta Marx.
O resultado seria desvalorização do capital monetário e colapso da taxa de juros. Ele denuncia que há “uma ideia ainda mais absurda, a de que com base no modo de produção capitalista, o capital poderia gerar juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valor, do qual os juros não são mais que uma parte; a ideia de que o modo de produção capitalista poderia mover-se sem a produção capitalista”.10 Pois bem, parece que essa “ideia ainda mais absurda” foi normalizada hoje.
A financeirização, que, claro, não exclui o desenvolvimento industrial, exacerbou o caráter supérfluo do capitalista como funcionário da produção. O desenvolvimento das empresas por ações, acompanhando o avanço do sistema de crédito, foi saudado positivamente, por Marx, como socialização da produção, apesar das ressalvas. Ele destacou o aspecto da separação do trabalho de administração, como função, da propriedade do capital. Por isso, “(…) o lucro revelou ser também na prática aquilo que ele já era indiscutivelmente na teoria: simples mais-valor (…)”.11
Para Marx, essa forma de empresas, com o descarte do capitalista ativo, era um prenúncio de transição sistêmica, apesar de seu sentido negativo por causa da persistência da exploração do trabalho.
Karl Marx criticava duramente as profecias de alguns discípulos de Saint Simon, com base em ilusões no “poder miraculoso do sistema de crédito e bancário”.12 Eles estavam embevecidos com as perspectivas de evolução da sociedade, por meio da produção das grandes empresas industriais, propulsoras do avanço tecnológico, com o apoio e estímulo do crédito e da bolsa. A pioneira e mais poderosa experiência desse impulso financeiro para a aceleração da transformação produtiva capitalista foi o banco Crédit Mobilier de Isac Pereire, egresso das fileiras de Saint Simon. Esse banco é uma espécie de antepassado na família dos bancos de desenvolvimento, a exemplo do BNDES.
Financeirização como lógica dominante
Para Alfredo Saad Filho, “O processo de financeirização sob o neoliberalismo não foi uma distorção do ‘capitalismo puro’, ou um ‘golpe’ do setor financeiro contra o capital produtivo. Ele acrescenta que as finanças não são apenas uma estrutura parasitária simplesmente “sugando” o capital industrial e/ou os rendimentos dos trabalhadores. Ao contrário, a financeirização é uma característica estrutural da reprodução social no neoliberalismo”.13
O capitalismo financeirizado alterou profundamente os termos da distribuição do capital total na sociedade. Em sua época, Marx constatava que totalidade do capital existia sob a forma de meios de produção, “com exceção de uma porção relativamente pequena existente em dinheiro”. No capitalismo, desde as últimas décadas do século XX, o fenômeno da financeirização não decorreu da conversão de capital, por um número gigantesco de capitalistas, em capital monetário.
Não se trata de uma aproximação do disparate da generalização do capital monetário. Obviamente, mantém-se em níveis muito elevados o capital produtivo. A exploração do trabalho produtivo atingiu mais trabalhadores e recrudesceu, preservando a fonte do mais-valor. A novidade é a extensão, as formas, as funções e implicações do capital monetário, como polo dominante ou mesmo estado geral e normal do conjunto da economia, agudizando as contradições e a instabilidade na dinâmica turbulenta do capitalismo contemporâneo.14
O primeiro artigo está republicado no Informativo NECAT n.30, Agosto de 2024 (www.necat.ufsc.br)
* Professor de economia e de relações internacionais na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor entre outros livros, de A China de Mao e Xi Jinping (Editora da UFBA).
1 MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
2 Idem.
3 HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Coleção Os Economistas).
4 BRAGA, José Carlos. Qual conceito de financeirização compreende o capitalismo contemporâneo? In: BARROSO, Aloísio Sérgio; SOUZA, Renildo. A grande crise capitalista global 2007-2013: gênese, conexões e tendências. São Paulo: Anita Garibaldi, 2013, p. 117-135.
5 MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
6 Idem.
7 Ibidem.
8 MARX, K. Capítulo 22, Livro III, versão Kindle.
9 MARX, K. Capítulo 35, Livro III, versão Kindle.
10 MARX, K. Capítulo 23, Livro III, versão Kindle.
11 Idem.
12 MARX, K. Capítulo 36, Livro III, versão Kindle.
13 SAAD FILHO, Alfredo. Reflexões sobre a crise do neoliberalismo. Revista Versus Acadêmicas, agosto de 2009, p. 37.
14 Este artigo é uma versão modificada de um capítulo do livro Karl Marx: desbravar um mundo novo no século XXI, coletânea organizada por Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore, pela editora Anita Garibaldi, em 2018.