Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível?

05/04/2021 19:50

Por: Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]

De acordo com resultados da PNAD Contínua divulgados recentemente pelo IBGE, Santa Catarina finalizou 2020 com o menor nível de desemprego do país. No 4º trimestre do referido ano, a taxa de desemprego estadual foi de 5,3%, registrando queda em relação ao trimestre anterior (6,6%) e estabilidade na comparação com o mesmo período de 2019. Ao contrário das divulgações anteriores, que demonstravam o crescimento do desemprego no estado, esse resultado foi amplamente repercutido pela imprensa e pelo governo. No entanto, o mesmo destaque não foi dado para outro aspecto fundamental presente na pesquisa do IBGE: o de que Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho ao longo de 2020. Neste texto será explorada essa aparente contradição, demonstrando como a pandemia tem distorcido os indicadores tradicionalmente utilizados para analisar o mercado de trabalho do estado e do país.

Para entender a dinâmica da taxa de desemprego, em primeiro lugar deve-se ter clareza de como ela é constituída. Na metodologia da PNAD Contínua, essa taxa é dada pela razão entre a população desocupada e a força de trabalho. A força de trabalho equivale à soma dos trabalhadores ocupados, ou seja, os trabalhadores que efetivamente estavam trabalhando, e dos desocupados (que na terminologia comum são os desempregados). Já a população desocupada consiste nas pessoas que não estavam trabalhando e que, obrigatoriamente, cumprem dois requisitos: a) ter realizado busca efetiva por trabalho no mês de referência da pesquisa; e b) estar disponível para assumir um emprego, caso o mesmo fosse encontrado.

Conforme demonstramos em diversos textos anteriores, a pandemia dificultou enormemente o cumprimento dessas condições, fazendo com que o indicador usual de desemprego não reflita completamente o nível de degradação do mercado de trabalho catarinense[3]. Esse fato pode ser melhor compreendido em uma comparação com a crise econômica anterior, cujos efeitos concentraram-se entre os anos de 2015 e 2016. Ainda que intensidade menor do que em 2020, naquele período também houve uma forte perda de empregos no estado e no país. Como era de se esperar, os trabalhadores atingidos por essa perda permaneceram na força de trabalho, pois passaram a procurar novas ocupações no período seguinte. Em outras palavras, a queda no emprego foi seguida por um rápido aumento da procura por trabalho, implicando em elevação da taxa de desemprego.

O que diversos analistas têm ocultado ou não se dado conta é que tal movimento não se repetiu em 2020. Ao contrário do que ocorreria em um cenário de crise econômica “normal”, os catarinenses que perderam suas ocupações durante a pandemia não se tornaram desempregados, mas saíram do mercado de trabalho. Essa dinâmica é mostrada claramente por meio do Gráfico 1, cujos dados indicam que a força de trabalho de Santa Catarina vinha crescendo nos anos anteriores à pandemia, todavia diminuiu em cerca de 240 mil pessoas ao longo do ano de 2020.

Gráfico 1 – Crescimento trimestral da população ocupada, desocupada e da força de trabalho (2015-2020, em %).

graf1mar2021

Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

De uma maneira geral, identificamos quatro fatores principais que podem explicar essa saída massiva do mercado de trabalho catarinense:

  • As medidas de distanciamento social adotadas para conter a disseminação do novo coronavírus: a redução da circulação do transporte coletivo e as restrições ao funcionamento de estabelecimentos comerciais, por exemplo, desestimularam os desempregados a saírem às ruas em busca de emprego;
  • A queda no nível de atividade econômica: com menos empregos disponíveis, diminuiu a perspectiva dos trabalhadores em encontrar emprego[4], e, portanto, a própria busca por emprego, que tem custos para quem a realiza. A parcela desses trabalhadores que necessitariam estar trabalhando, mas que não procuraram emprego é representada pela força de trabalho potencial, que atingiu patamares inéditos em 2020, com crescimento anual de 52%. Com isso, ao final desse ano ano 136 mil catarinenses se encontravam nessa condição, sendo 47 mil a mais do que em 2019.
  • O nível de poupança das famílias: diferentemente do que ocorre em estados com níveis de pobreza mais elevados, em Santa Catarina uma parcela considerável das famílias detém recursos financeiros para arcar com possíveis emergências, como a de se perder o emprego em meio à pandemia. Somados à renda decorrente do programa de Auxílio Emergencial, esses recursos permitiram que determinadas frações das camadas médias, que normalmente dependem exclusivamente de seus salários, pudesse ficar fora do mercado de trabalho, abdicando de parte da renda para evitar o contágio pelo vírus ou outros problemas associados à procura por trabalho;
  • Os afastamentos provisórios: com a instituição do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda[5], a inviabilização de determinadas atividades que envolviam maior contato pessoal, além dos próprios problemas de saúde associadas à pandemia, milhares de trabalhadores catarinenses ficaram afastados de seus trabalhos por diversos meses ao longo de 2020[6]. Ao contrário do que ocorre com o Caged, a PNAD Contínua só computa como ocupadas aquelas pessoas que estão afastadas de seu trabalho por até quatro meses. Passando desse período, elas geralmente são consideradas como fora da força de trabalho.

Embora o estado tenha flexibilizado as medidas de distanciamento social a partir de abril e o valor do Auxílio Emergencial tenha caído pela metade a partir de setembro de 2020, os demais fatores seguiram influenciando enormemente os resultados do mercado de trabalho até o final do ano. Em grande medida, isso explica porque a recuperação de 47 mil postos de trabalho no 4º trimestre permitiu uma queda na taxa de desemprego estadual, mesmo que esse montante represente apenas 17% do total de empregos perdidos na primeira metade do ano.

Diante disso, pode-se afirmar que Santa Catarina se encontra em condição de “pleno emprego”?[7] A resposta é: definitivamente não. E isso não somente porque a taxa de desemprego de 5,3% registrada em 2020 ainda é praticamente o dobro dos 2,7% registrados em 2014, mas porque há um grande desemprego oculto no estado. Primeiramente, é importante destacar que para muitos trabalhadores voltar ao trabalho sequer foi uma opção, dada as condições impostas pela própria pandemia. Alguns exemplos são os casos dos trabalhadores da cultura, profissionais do esporte, vendedores ambulantes, garçons, etc., cujas atividades envolvem contato pessoal direto e, via de regra, aglomerações. Além disso, para a maioria dos inativos, ficar sem trabalhar não é uma opção confortável, mas uma situação excepcional que exige sacrifícios em termos da renda, e que pode ter provocado, inclusive, o endividamento de muitas famílias[8].

O fato concreto é que, caso essas pessoas tivessem efetivamente voltado a procurar trabalho, o desemprego bateria recordes históricos no estado, uma vez que o nível de atividade econômica atual é incapaz de criar as mais de 200 mil vagas que seriam necessárias para realocar esse montante de pessoas no mercado de trabalho. Dessa forma, pode-se concluir que, diferentemente de situações anteriores, a taxa de desemprego atual não evidencia os graves problemas que persistem no mercado de trabalho estadual, podendo estar escamoteando uma grave deterioração das condições de vida de grande parte dos trabalhadores catarinenses.


[1] Estudante de Economia da UFSC e bolsista do Necat/UFSC. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[2] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do Necat/UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br.

[3] Ver HEINEN, V. L.; MATTEI, L. Qual a dimensão do desemprego gerado pela crise da Covid-19 em Santa Catarina? 2020; e HEINEN, V. L. O mercado de trabalho catarinense diante da crise da Covid-19. 2020.

[4] No conjunto do país, a probabilidade de uma pessoa desocupada encontrar trabalho em junho, por exemplo, era de apenas 12%.

[5] Somente em função desse Programa do Governo Federal, estima-se que cerca de 80 mil catarinenses estiveram afastados de seus trabalhos por, pelo menos, quatro meses ao longo de 2020. Mesmo mantendo seus empregos, esses trabalhadores sofreram uma perda média de aproximadamente 25% de seus rendimentos. Para mais detalhes, ver HEINEN, V. L. Balanço do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda em Santa Catarina. 2021.

[6] Em reunião recente da ALESC, deputados destacaram que até 5 mil trabalhadores foram substituídos devido a infecções pelo novo coronavírus nas agroindústrias de Santa Catarina. ALESC. Comissão de Economia, Ciência e Tecnologia. 24 mar. 2021. Contabilizando todos os setores, o número de trabalhadores afastados no estado chegou a 317 mil no 2º trimestre de 2020, maior nível da série histórica da PNAD Contínua. Grande parte dessas pessoas seguiu afastada no trimestre seguinte, migrando para fora da força de trabalho.

[7] Ver MATTEI, L.; HEINEN, V. L. Emprego e desemprego em Santa Catarina: o mundo fictício do governo estadual. 2021.

[8] De acordo com dados do Banco Central e da Confederação Nacional do Comércio, o endividamento das famílias cresceu enormemente durante a pandemia. Em 2020, a proporção das famílias endividadas no país atingiu 66,5%, representando o maior nível da série histórica (iniciada em 2010). G1. Endividamento das famílias bate recorde na pandemia, aponta Banco Central. 2021.