O salário mínimo e a velha cantilena dos rentistas

23/05/2025 10:49

Lauro Mattei*

INTRODUÇÃO

A política de valorização do salário mínimo visando promover seu crescimento real, que foi retomada em janeiro de 2023 no início do Governo Lula III, voltou a ser atacada recentemente pelos mesmos personagens de sempre: os representantes do rentismo financeiro no país. E com os mesmos argumentos de sempre: os aumentos reais desse salário são a causa e o potencializador do desequilíbrio fiscal. Recentemente, um velho conhecido desse clero rentista (Armínio Fraga) teve a pachorra de propor o congelamento do salário mínimo, em termos reais, por um período de seis anos.

O posicionamento de Fraga em relação ao tema não é novo. Retorno a um artigo que escrevi em 2014 às vésperas das eleições presidenciais. Nele apresento uma fala semelhante desse senhor – cotado para ser ministro da fazenda caso o candidato do PSDB da época Aécio Neves vencesse as eleições presidenciais – afirmando que o salário mínimo havia crescido muito nos últimos anos e que se encontrava num patamar muito elevado devido à política de valorização que estava em curso e que – apesar de alguns resultados positivos – o custo fiscal de tal política era demasiado alto, sinalizando que era necessário frear esse processo.

Tal posicionamento foi imediatamente incorporado pelo candidato presidencial tucano. Cabe registrar que em 2011 o senador Aécio Neves (PSDB) votou contra a proposta aprovada no Congresso Nacional que resultou na Lei 12.382, de 25.11.2011, conforme pode ser verificado nas gravações das sessões do Senado Federal (www.legis.senado.leg/br, página 4801). Não satisfeito com isso, o PSDB ainda tentou anular  a  referida  lei  após  sua  promulgação,  ao  entrar  com  uma  ação de inconstitucionalidade junto ao STF, pleito que foi negado porque a Suprema Corte considerou a Lei 12.382 válida e de acordo com os preceitos constitucionais.

Em Mattei (2014) encontra-se um breve retrospecto desse processo questionado pelas lideranças políticas e técnicas do PSDB. Por exemplo, no último ano do mandato de FHC – e sob a gestão de Armínio Fraga no Banco Central – o salário dolarizado correspondia a US$ 86,21 dólares. Já em 2014, último ano do primeiro mandato da Presidente Dilma, o valor real do salário mínimo correspondia 304,80 dólares. Todavia, quando se considera os cálculos feitos pelo DIEESE para se obter o valor real de acordo com a lei original do salário mínimo, nota-se que em 2002 (último ano do Governo FHC) o valor deveria ser de R$ 1.378,19, o que correspondia a 6.89 vezes o valor daquele ano (R$ 200,00). Já o valor no ano de 2014 deveria ser de R$ 2.748,22, o que correspondia a 3.79 vezes o valor de R$ 724,00. Isso significa que a política de valorização do salário mínimo durante os governos Lula e Dilma reduziu bastante a diferença entre o valor nominal e o valor necessário de acordo com os preceitos legais.

Talvez seja esse o principal incômodo dos rentistas, uma vez que mais dinheiro para o trabalhador assalariado significa um maior poder de compra para o povo e menos dólares para os mercados financeiros especulativos, onde povoam as aves de rapina que gostam de palpitar sempre contrariamente aos interesses da massa da população trabalhadora do país.

Assim, o objetivo desse estudo é problematizar criticamente os argumentos dos rentistas contrários à valorização do salário mínimo. Para tanto, além dessa breve introdução, o artigo está organizado em mais três seções. Na primeira delas procura-se fazer uma breve síntese sobre a política de valorização do salário mínimo, enquanto na segunda seção analisam-se criticamente as proposições dos rentistas para, na terceira seção apresentar as considerações finais do trabalho.

1-  BREVE RESENHA SOBRE A POLÍTICA DE VALORIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO (SM)

Essa seção reproduz partes do estudo do DIEESE (2023) sobre a evolução do salário mínimo instituído no país em 1940 por meio do Decreto-Lei n.1.642 de 01.07.1940, tendo sido incorporado à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), inclusive recebendo leis específicas nas constituições de 1946, 1967 e 1988, o que o transformou em um direito constitucional.

Segundo o DIEESE (2023), “até o golpe de 1964 a política para o SM era debatida num fórum tripartite, as chamadas Comissões Mistas do SM, cuja existência foi incorporada à redação original da CLT. Da sua implementação em 1940 até março de 1964, o SM teve seus reajustes definidos pelas Comissões Mistas de SM, embora em intervalos de tempo não regulares”.

Já “entre 1964 e 1974 a ditadura civil-militar fez da política salarial o principal mecanismo de controle da inflação e o SM foi sua peça central. Essa política resultou numa brutal concentração de renda, especialmente no período do chamado milagre econômico (1968 e 1974), quando a economia cresceu a taxas superiores a 10% ao ano” (DIEESE, 2023).

Na Constituição Federal de 1988 o assunto foi contemplado no artigo 7º que definiu: conceitos e objetivos, além de definir também que o salário mínimo atuaria como piso para os pagamentos dos benefícios previdenciários e da seguridade social, bem como a remuneração dos empregados domésticos.

A partir daí a política de correção do salário mínimo passou a ser definida pelo Poder Executivo, por meio de Medidas Provisórias enviadas ao Congresso Nacional, sendo que “entre 1996 e 2002, os reajustes do SM foram aleatórios e não se basearam em critérios objetivos. Por isso, nesse período, seu valor real foi reduzido para apenas 30,28% do valor vigente em julho de 1940, quando foi criado” (DIEESE, 2023).

Ainda de acordo com DIEESE (2023) “em 2004, no primeiro mandato presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, as Centrais Sindicais iniciaram uma mobilização nacional conhecida como Marcha da Classe Trabalhadora a Brasília com o objetivo, dentre outros, de recuperar o poder de compra do SM. Em dezembro de 2006, foi assinado um Protocolo de Intenções entre as Centrais e o Governo Federal. Esse Protocolo previu o reajuste do SM em abril de 2007 com base na inflação acumulada nos doze meses anteriores e no crescimento do PIB em 2005. Até janeiro de 2011, no início do primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, o reajuste do SM se baseou nos critérios definidos no referido Protocolo assinado em 2006, por meio de uma série de Medidas Provisórias”.

Em fevereiro de 2011 o Congresso Nacional aprovou a Lei de Valorização do Salário Mínimo (Lei nº 12.382) por um período de mais 4 anos, ao considerar tal política como parte essencial do desenvolvimento do país. No início do segundo mandato da presidente Dilma (janeiro de 2015) ocorreu, por parte do Congresso Nacional, uma nova prorrogação dessa política por mais 4 anos à luz da Lei nº 13.152, cujo prazo se encerrava em janeiro de 2019.

No ano de 2018 o governo de plantão (Temer) deveria ter encaminhado ao Congresso Nacional um novo projeto de valorização do salário mínimo por um período de mais 4 anos. Como tal ação não ocorreu, o governo Bolsonaro (2019-2022) não conduziu sua política de atualização do salário mínimo segundo os critérios que vinham sendo adotados desde o ano de 2011. Com isso, foi interrompido um longo período de valorização da renda dos trabalhadores, ação fundamental para se somar positivamente às políticas de combate à pobreza e às desigualdades sociais.

Logo após sua posse em janeiro de 2023 o Governo Lula III deu início à retomada da política de valorização do salário mínimo por meio da criação de um grupo de trabalho com a participação das Centrais Sindicais e do DIEESE. Assim, durante as celebrações do primeiro de maio de 2023 o Presidente Lula anunciou a nova política acordada entre o Governo Federal e as Centrais sindicais. Tal política entrou em vigor a partir de janeiro de 2024, quando o valor do mínimo passou a ser de R$ 1.412,00, correspondendo a um aumento de 6,9% em relação ao valor de 2023 (R$ 1.320,00). Já a partir de janeiro de 2025 o salário passou a ser de R$ 1.518,00, correspondendo a um aumento de 7,5% em relação ao valor do ano anterior. Ou seja, o aumento nominal de R$ 106,00 significou um ganho real de 2,5%, considerando-se que a inflação de 2024 ficou próxima de 5%.

Com isso, nota-se que o Governo Lula III está cumprindo uma de suas promessas específicas divulgadas na campanha eleitoral de 2022: durante os quatro anos de governo o salário mínimo teria aumentos anuais reais, ou seja, os reajustes sempre seriam acima da inflação com o objetivo de melhorar a distribuição de renda no país.

Esse aspecto é relevante quando se considera o cenário social do país onde aproximadamente 55% dos trabalhadores têm rendimentos vinculados ao salário mínimo, ao mesmo tempo em que cerca de 25 milhões de aposentados e pensionistas do total de 38 milhões existentes no país recebem o piso de até um salário mínimo. Soma- se a isso o fato de que o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Seguro- Desemprego têm como referência o salário mínimo.

É importante registrar que os trabalhadores brasileiros ficaram praticamente sete anos (2016-2022) sem ganhos reais do salário mínimo, além de não se ter correção da tabela de imposto de renda. Isso certamente causou um enorme impacto negativo sobre o poder de compra da classe trabalhadora que, somado aos efeitos da pandemia, podem ter ampliado o contingente social de excluídos.


* Professor titular do Curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC. Email: l.mattei@ufsc.br Artigo publicado originalmente no site Jornal GGN em 25.04.2025.