Política de incentivos fiscais em Santa Catarina: limites e insuficiência na promoção do desenvolvimento regional

14/12/2021 16:51

Por: Juliano Giassi Goularti[1]

“Não é, contudo, o grau de centralização política, decisória e financeira que define a qualidade e a eficiência dos sistemas federativos.”

Sergio Prado, 2013.

Incentivos fiscais e guerra fiscal: breve contextualização

A política de incentivos fiscais praticada pelos estados brasileiros é uma prerrogativa do ente federativo, conforme dispõe a Constituição Federal de 1988. Dentro da autonomia relativa e independência fiscal dos estados, a política de incentivar a iniciativa privada através da renúncia do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) passou a ser utilizada pelos governadores como instrumento de desenvolvimento econômico para fomentar determinada atividade – ampliar o parque fabril, construir nova planta industrial, adquirir novo maquinário, investir em produto e processo de inovação, atrair novas indústrias ou manter aquelas já existentes.

Os benefícios de ICMS não podem ser realizados sem a aprovação de Convênio no âmbito do colegiado do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), devem estar dentro dos dispostos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)[2] e não podem desrespeitar a Constituição Federal. O descumprimento de qualquer um dos procedimentos implica a inconstitucionalidade da lei concessiva da renúncia do imposto. A norma jurídica aduziu que o gestor público tem por objetivo buscar o equilíbrio financeiro e controlar a renúncia de receita.

Mesmo assim, como consequência da guerra fiscal,[3] diversos benefícios foram concedidos pelos estados em leis próprias, decretos e, até mesmo, portarias à revelia dos Convênios do Confaz.[4] Numa estrutura tributária que se demonstrava fragilizada, a capacidade de coordenação pelo Confaz tornou-se insustentável. Neste cenário, o empresariado passou a utilizar-se da chantagem como forma de aumentar e maximizar seu lucro.

Tratando-se da guerra fiscal, a Lei Complementar n. 160, de 2017, permitiu a convalidação de incentivos concedidos sem autorização prévia do Confaz. Na medida em que os múltiplos brasis têm interesses divergentes, torna quase impossível obter a unanimidade, fragilizando a atuação do Confaz na regulamentação e concessão dos múltiplos benefícios. Com efeito, na concessão de isenção opera-se distribuição desigual dos encargos do estado, fundada não necessariamente no princípio da capacidade econômica.

Com a guerra fiscal, a renúncia de ICMS e de outros tributos passou a fazer o papel de política industrial, regional e setorial, alterando alíquotas efetivas de impostos, muitas vezes ao arrepio da lei. A renúncia tributária, que está fracionada em múltiplos programas e modalidades, vem propiciando aos setores de atividades condições financeiras para que as empresas possam se ampliar e se valorizar  no mercado. Ou seja, o fundo público busca compensar a iniciativa privada dos riscos do processo produtivo, socializando os custos com a sociedade.[5]

Hoje, entretanto, nota-se que os privilégios fiscais (renúncia de receita tributária) não têm limite de prazo, nem teto fiscal, nem correlação com o desenvolvimento socioeconômico do país. Com efeito, a concessão de isenção pelo governo do estado de Santa Catarina colabora para produzir desigualdades. Além do mais, no tocante ao desenvolvimento regional, o capital – por intermédio de suas relações sociais de poder – exige, como condicionante do investimento, que os estados brasileiros concedam incentivos. Destarte, o estado de Santa Catarina, assim como as demais unidades da Federação, quer ter o seu próprio sistema de incentivos e, desta forma, preservar autonomia relativa do governo federal.

Em um cenário de incerteza econômica e instabilidade política, as decisões empresariais, voltadas para a valorização do capital, procuram reduzir riscos. Porém, diante da incerteza, o incentivo usufruído pelo capital pode não se converter em investimento privado, ficando retido, porque o lucro derivado do investimento é incerto. Mesmo assim, utilizando a isenção do ICMS como parâmetro para a decisão de investir (ou não), o incentivo fiscal é componente fundamental para a formação da taxa de lucro.

Política de incentivo fiscal e desenvolvimento regional desigual em Santa Catarina

Nos estudos sobre a política regional brasileira, há uma predominância de pesquisas acadêmicas que apresentam a isenção do imposto como elemento unificador do território. Ocupar e definir espaço, acelerar a produção, promover a expansão capitalista garantir a reprodução da força de trabalho são ações que se desenvolvem concomitantemente, a partir da disponibilidade dos meios de financiamento.

O suposto ganho de um reforça as desigualdades regionais e estabelece uma concorrência desigual na medida em que uma determinada empresa é contemplada por um programa ou um fundo de incentivo passa a dispor de uma situação de vantagem competitiva em relação a uma empresa não contemplada. Ocorre que o acirramento dos conflitos federativos, ao mesmo tempo em que promove a valorização de uma determinada região do estado ou do país, promove a desvalorização de outra. De todo modo, o número de convênios assinados pelo colegiado do Confaz não deixou de impactar nas finanças estaduais, assim como não equalizou o desenvolvimento regional desigual.

Com 1,13% do território nacional, 4,45% da arrecadação de tributos estaduais e 3,5% do PIB nacional, Santa Catarina apresenta, como poucos estados da federação, uma estrutura produtiva diversificada em vários setores, sendo que cada microrregião possui uma especialização. Porém, a distribuição regional dos incentivos fiscais no território é desigual. Em 2018, três regiões (Itajaí, Joinville e Blumenau) somaram 52,20% da distribuição dos incentivos fiscais, em 2021, ampliaram para 59,56% e, em 2022, para 69,43%, ou seja, uma nítida concentração espacial da riqueza em ponto seletivos do território.[6]

Tabela 1: Distribuição regional dos programas de incentivos fiscais por Gerência Regional da Secretaria de Estado da Fazenda de Santa Catarina

R$ milhões

T1

Fonte: LDO (2018; 2021; 2022). Elaboração do autor.

Na tabela 1, a participação da Gerência Regional de Itajaí no bolo da distribuição regional dos incentivos fiscais pulou de 20,54%, em 2018, para 24,57%, em 2021, e com previsão de 34,96%, em 2022. O mesmo ocorreu com a Gerência de Joinville, que aumentou de 18,29% para 19,69% e 24,11%. Entre 2021 e 2022, a Gerência de Blumenau perdeu participação relativa, apresentando uma redução acentuada, de 15,30% para 10,37%. Também em queda, a região de Chapecó, que passou de 12,13% para 6,75%, Tubarão, que caiu de 4,22% para 1,83% e Lages, de 3,20% para 0,91%. Em valores correntes, o crescimento dos incentivos para a região de Itajaí, entre 2018 e 2022, cresceu 311,14%, passando de R$ 1.191 bilhões para R$ 4.900 bilhões.

Em relação a isso, importa notar que o crescimento dos incentivos fiscais, de R$ 6,40 bilhões, em 2021, para R$ 14,01 bilhões, em 2022, não correspondeu a uma distribuição assimétrica. Pelo contrário, concentrou nas regiões que apresentam maior grau de complexidade econômica na divisão do trabalho. Para que os incentivos fossem devidamente utilizados como instrumento de desconcentração espacial, a distribuição regional mais equânime exigiria maior articulação política. Mas o neoliberalismo enfraqueceu essa articulação, induzindo o capital a realizar negócios e investimentos nas regiões onde a lucratividade se mostra mais elevada.

O poder público catarinense não foi capaz de alterar a desigualdade regional da desoneração tributária. É claro o fracasso da política de incentivos em favor das regiões menos desenvolvidas, em comparação com as de maior complexidade. As regiões passam a se distinguir pela capacidade de oferecer rentabilidade aos investimentos. No curto prazo, puderam “até beneficiar-se”. Mas, no longo prazo, a generalização do conflito fez com que os ganhos iniciais desaparecessem, pois não se faz política de desenvolvimento regional com desvantagem relativa.[7]

Os valores atribuídos às regiões catarinenses, em geral, não se refletem em benefício socioeconômico a todos os municípios, visto que a grande maioria se concentra nas cidades com maior densidade populacional e complexidade econômica. A renúncia de receita, ao reduzir a arrecadação potencial do tributo, fragmenta o sistema de partilha constitucional com os municípios, prejudicando, sobretudo, os “mais pobres” na hierarquia urbana. Além disso, a renúncia reduz a disponibilidade de recursos para políticas estaduais descentralizadas, gerando impacto na oferta de políticas públicas em âmbito municipal.

Por fim, é inegável a necessidade de se reduzir assimetrias e desigualdades entre as regiões do estado por meio de políticas públicas. Fato é, contudo, que não é essa a finalidade da política de incentivos fiscais, que deve guardar um mínimo de correspondência com a política estadual de desenvolvimento regional. As assimetrias na distribuição dos incentivos entre as Gerências Regionais da Secretaria de Estado da Fazenda de Santa Catarina pioram a cada ano sob o olhar complacente e omisso do governo do estado, do Poder Legislativo e, também, do Tribunal de Contas.

Considerações finais

O uso dos recursos públicos disponibilizados pela política de incentivos fiscais de ICMS cria uma região hegemônica e, por consequência, acirra o caráter desigual do processo de desenvolvimento capitalista dentro do território de Santa Catarina. Os incentivos possibilitam a expansão geográfica do mercado, reduzem os custos de realização e a circulação das mercadorias e ajudam a criar novos espaços para a acumulação.

Com valores renunciados estimados em R$ 14,01 bilhões para 2022, o governo catarinense não exige contrapartidas dos empresários como, por exemplo, a ampliação de postos de trabalhos, aumento do faturamento e do empreendimento, sob pena de retirada e/ou devolução da desoneração. Logo, aceitar a doutrina de que incentivos são sinônimo de desenvolvimento regional implica em ignorar a especificidade do subdesenvolvimento do país. De todo modo, a redução das desigualdades regionais – por meio do incentivo a projetos localizados em regiões de menor renda ou a projetos que incentivem a fixação, a longo prazo, da população do local de sua implantação – ainda é objetivo distante.

Por fim, uma estrutura tributária regressiva, somada às isenções do imposto garantidas aos rendimentos do capital, não permitem ao estado e ao país avançar numa efetiva política de distribuição de renda. Com estrutura tributária e fiscal regressiva, qualquer guinada de política econômica mais alinhada à ortodoxia liberal significará aceleração das desigualdades regionais em suas múltiplas facetas.


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NECAT/UFSC.

[2] As possibilidades de a LRF encaminhar uma trajetória de coordenação e cooperação federativa são limitadas. O problemático é que o sistema federativo está ancorado nos conflitos regionais, não apenas porque o país inseriu-se de forma frágil no processo de globalização, mas também porque a nossa elite periférica fez a opção política pelo modelo neoliberal que aprofundou a dependência.

[3] Na guerra fiscal, são os empresários que negociam, e impõem ao estado, sua política para se instalarem nesse ou naqueles territórios que lhes outorguem maiores vantagens tributárias. Em outras palavras, a política tributária de benefícios não é definida pelos governos, mas exclusivamente pelos empresários e investidores privados.

[4] No Brasil, o que se tem observado é que, no lugar de prevalecer o federalismo cooperativo, prevalece um federalismo competitivo que privilegia determinados setores econômicos

[5] Os incentivos fiscais refletem uma estratégia de intensificação do uso da política tributária como instrumento para garantir determinados objetivos de política econômica estadual. A partir da incapacidade dos empresários para mobilizar capitais, o estado disponibiliza “recursos socialmente necessários” para reduzir custo de produção e, assim, viabilizar o investimento privado.

[6] Não obstante, correlato à concentração da renúncia tributária em pontos seletivos do território, em 2002, apenas 15 municípios catarinenses (de todo os 293) concentravam 51,38% do PIB estadual. Na sua justificativa, a descentralização da estrutura administrativa do Estado, criada em 2003, pretendia estimular o desenvolvimento regional, desconcentrando o PIB. Em 2010, os dados apresentados pelo IBGE apontam para uma maior concentração econômica nesses 15 municípios, que detinham 54,80% do PIB. Oito anos depois, em 2018, essa participação elevou-se para 55,58%. Em contrapartida, os 15 municípios com menor participação no PIB vêm apresentando queda relativa, tendo sua participação reduzida de 0,45%, em 2002, para 0,37%, em 2010, e 0,23%, em 2018. Por fim, 119 municípios apresentaram, em 2018, um crescimento menor quando comparado do que o registrado em 2010 (IBGE, 2020).

[7] Dito de outro modo: em tempos de ‘regressismo neoliberal’, o orçamento público torna-se menos público e mais privado. Quando empresas sonegam impostos, deixam de recolher o tributo devido e recebem desoneração, a população é diretamente prejudicada, pois são perdidos valores essenciais para realizar investimentos fundamentais.