Qual a dimensão do desemprego gerado pela crise da Covid-19 em Santa Catarina?

21/12/2020 19:20

Por: Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]

Ao contrário do que ocorreu em outros momentos de crise, a queda da produção associada à pandemia da Covid-19 foi transmitida de forma quase imediata para o nível de emprego em todas as regiões do país. Com o rompimento abrupto das atividades de diversas cadeias produtivas e o início das medidas de isolamento social em meados de março de 2020, o mercado de trabalho brasileiro foi fortemente atingido, deteriorando-se em ritmo sem precedentes na história recente do país. A dinâmica desse processo, bem como seus reflexos em Santa Catarina, foi examinada em artigo recentemente publicado na Revista Necat. Este texto visa analisar o comportamento da força de trabalho no Brasil e no estado de Santa Catarina a partir dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, relativos ao 3º trimestre de 2020.

A situação do mercado de trabalho catarinense diante da calamidade nacional

Em comparação com a média nacional, a queda nas ocupações em Santa Catarina foi relativamente mais severa no 1º trimestre de 2020 e menos intensa no 2º trimestre, a despeito do agravamento do cenário em ambos os períodos. Com isso, no acumulado do 1º semestre o Brasil já havia perdido 11,1% e Santa Catarina 4,5% de todos os seus postos de trabalho (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Crescimento trimestral e acumulado no ano da população ocupada no Brasil e em Santa Catarina, série com ajustes (3º trimestre de 2019 a 2020, em %).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Embora outras pesquisas apresentem indícios de que a retomada do ritmo das contratações e de redução das demissões possa ter começado a partir de julho em Santa Catarina, a PNAD Contínua ainda não captou tais tendências, indicando que parte dos impactos da crise da Covid-19 se estenderam para o 3º trimestre de 2020[3]. Nesse período, a população ocupada no estado sofreu nova queda, agora da ordem de 1,5%. Esse desempenho foi semelhante à média nacional, cuja retração foi de 1,4%. Descontados os efeitos sazonais, entre os meses de julho e setembro foram perdidas 51 mil ocupações no estado e 1,1 milhão no país[4].

A partir desses resultados, é possível fazer um balanço completo dos impactos da crise associada à Covid-19 sobre o emprego, uma vez que o último trimestre de 2020 deve representar a fase inicial de retomada dos postos de trabalho perdidos. Considerando a série com ajustes sazonais, o Brasil perdeu aproximadamente 11,5 milhões de ocupações nos três primeiros trimestres de 2020, o que equivale a 12,3% de todos os postos de trabalho do país. Já em Santa Catarina, essa perda foi de 215 mil ocupações, representando uma retração da ordem de 5,9% na população ocupada[5].

De acordo com os dados contidos no Gráfico 2, no âmbito estadual essa queda chega a ser cinco vezes maior do que a registrada na fase mais aguda da crise econômica ocorrida entre 2014 e 2016, que, neste último ano, levou à perda de aproximadamente de 40 mil postos de trabalho em Santa Catarina.

Gráfico 2 – Variação absoluta da população ocupada em Santa Catarina, série com ajustes (3º trimestre de 2019 a 2020, em mil pessoas).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Retomando a comparação com o Brasil, os Gráficos 3 e 4 permitem analisar como está ocorrendo o processo de realocação dos trabalhadores que perderam sua ocupação, os quais tanto podem continuar na força de trabalho (na condição de desocupados[6]) como se deslocar para fora dela.

Conforme explicamos em texto anterior, os impactos da crise da Covid-19 apareceram antes no mercado de trabalho catarinense, comparativamente ao conjunto do país[7]. A procura por trabalho em Santa Catarina cresceu enormemente já no 2º trimestre de 2020, quando a população desocupada aumentou em 17,6%. Esse resultado contrasta com o que ocorreu no restante do Brasil, onde esse crescimento foi relativamente menor, de 2,3%. Em grande medida, essa divergência se explica pelo processo de saída do mercado de trabalho no período, o qual foi mais intenso no país (15,6%) do que no estado (9,9%). Nesse sentido, é importante destacar que cerca de 10 milhões de brasileiros deixaram o mercado de trabalho ao longo do 1º semestre de 2020. Tal montante equivale a quase toda a queda na população ocupada no período, indicando a relevância desse processo na contenção do desemprego.

Gráfico 3 – Crescimento trimestral e acumulado no ano da população desocupada no Brasil e em Santa Catarina, série com ajustes (3º trimestre de 2019 a 2020, em %).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Esse cenário foi substancialmente modificado no 3º trimestre de 2020. No Brasil, o crescimento da população fora da força de trabalho voltou ao ritmo pré-pandemia, dando início à fase de conversão das ocupações perdidas em desemprego. A população desocupada, que figurava na casa dos 12,8 milhões de pessoas no trimestre anterior, saltou para aproximadamente 14 milhões no 3º trimestre, crescendo 9,7%. No acumulado do ano, o número de desempregados no país aumentou em 1,2 milhão, registrando alta de 13%.

Já em Santa Catarina, a população desocupada caiu 3,3%, enquanto a população fora da força de trabalho cresceu 4% no 3º trimestre. Esses dados revelam que a queda da desocupação no estado ainda não se deve à retomada do emprego, mas principalmente aos 50 mil catarinenses que saíram do mercado de trabalho entre julho e setembro de 2020. Com esse novo resultado, estima-se que cerca de 200 mil pessoas tenham saído da força de trabalho em Santa Catarina desde o início do ano. Esse montante equivale a 93% de todos os postos de trabalho perdidos no mesmo período.

Gráfico 4 – Crescimento trimestral e acumulado no ano da população fora da força de trabalho no Brasil e em Santa Catarina, série com ajustes (3º trimestre de 2019 a 2020, em %).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Como saldo desse processo, a taxa de participação na força de trabalho atingiu nova mínima histórica no 3º trimestre de 2020, ficando em 55,1% no país e 59,4% no estado. Em comparação com o mesmo período do ano anterior, essas taxas apresentam queda de 7 p.p. e de 5,1 p.p., respectivamente.

Somente quando se leva em consideração esses movimentos que se pode compreender a dinâmica da taxa de desocupação no período, conforme o Gráfico 5. Com o fechamento massivo de postos de trabalho e o posterior deslocamento da população havia saído da força de trabalho para o desemprego, a taxa de desocupação no Brasil cresceu gradualmente ao longo de 2020, atingindo os 14,6% no 3º trimestre. Essa taxa representa um crescimento de 1,3 p.p. em relação ao trimestre anterior e uma variação interanual de 2,8 p.p.

Gráfico 5 – Taxa de desocupação no Brasil e em Santa Catarina (3º trimestre de 2019 a 2020, em %).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Em decorrência da continuidade do movimento de saída da força de trabalho, o mesmo fenômeno não foi observado em Santa Catarina, onde a taxa de desocupação caiu para 6,6% no 3º trimestre de 2020. Esse resultado significa um recuo trimestral de 0,3 p.p. e um crescimento interanual de 0,8 p.p.

Nos próximos períodos, a tendência é que o processo de corrosão da poupança das famílias (com contribuição importante da redução do Auxílio Emergencial) e de retomada dos postos de trabalho perdidos elevem novamente a participação na força de trabalho. Dado o patamar histórico de pessoas fora da força de trabalho, esse processo deve ser acompanhado por um crescimento exponencial do desemprego, particularmente no caso do Brasil, onde a pressão da procura por emprego tende a ser mais intensa.

Qual a real dimensão do desemprego gerado em Santa Catarina?

A pandemia da Covid-19 provocou grandes distorções no mercado de trabalho, fazendo com que os indicadores usuais de ocupação e de desocupação não consigam captar adequadamente alguns aspectos importantes da atual conjuntura. Do ponto de vista da desocupação, um desses aspectos é a já mencionada saída da força de trabalho, que atenuou o crescimento da procura por trabalho. Quanto à ocupação, os impactos da atual crise são parcialmente ocultados pelas medidas de afastamento de trabalhadores, bem como de redução de jornadas de trabalho, que foram adotadas em profusão em diversos setores da economia catarinense.

Segundo os resultados dos anos anteriores da PNAD Contínua, as jornadas de trabalho efetivas sempre tenderam a flutuar em torno das jornadas habituais. Essa tendência foi interrompida a partir do 1º trimestre de 2020, quando a diferença entre esses dois indicadores atingiu 7,6% em Santa Catarina (Gráfico 6). Com a implementação da MP 936 a partir de abril[8] e o agravamento da crise, a redução média das jornadas de trabalho atingiu seu ápice no 2º trimestre, chegando a 12,9%. No trimestre seguinte, as demissões se concentraram entre trabalhadores com jornadas de trabalho menores[9], ao mesmo tempo em que as jornadas habituais daqueles que permaneceram ocupados foram sendo gradualmente recuperadas. Com isso, houve um crescimento das jornadas efetivas, que reduziram sua diferença média para 5,3% em relação às jornadas habituais.

Gráfico 6 – Jornada de trabalho média habitual e efetiva em Santa Catarina (4º trimestre de 2019 a 3º trimestre de 2020, em horas/semana).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

De acordo com a projeção apresentada no Gráfico 7, a redução na jornada de trabalho média representou cerca de ⅔ da diminuição no total de horas efetivamente trabalhadas acumulada no 1º e no 2º semestre, caindo para aproximadamente 30% no 3º trimestre. Tendo em vista que o total de horas trabalhadas é o principal determinante da massa salarial no curto prazo, observa-se que esse fenômeno foi inclusive mais importante do que a própria diminuição da população ocupada para a redução dos rendimentos do trabalho entre os meses de março e junho de 2020.

Gráfico 7 – Decomposição do crescimento ano do total de horas trabalhadas em Santa Catarina (1º a 3º trimestre de 2020, em % acumulado no ano).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

Para captar de forma mais precisa a dimensão do desemprego em Santa Catarina é preciso, portanto, considerar as distorções provocadas pelos processos de saída da força de trabalho e de diminuição das horas trabalhadas. O Gráfico 8 apresenta uma estimativa da trajetória da taxa de desemprego em Santa Catarina considerando esses dois fenômenos. Para tanto, adota-se um cenário em que toda a queda nas horas trabalhadas tivesse se refletido em diminuição proporcional da população ocupada (jornadas de trabalho fixas); e outro em que todas as pessoas que perderam sua ocupação tenham continuado no mercado de trabalho no trimestre, como desocupados (força de trabalho fixa)[10].

Gráfico 8 – Simulação da taxa de desocupação oculto pela pandemia em Santa Catarina (4º trimestre de 2019 a 3º trimestre de 2020, em %).

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Fonte: PNADC/T (2020); Elaboração própria.

A primeira simulação revela que as reduções das jornadas de trabalho, traduzidas em desocupação, equivaleriam a uma taxa de desemprego da ordem de 17,3% no 2º trimestre, caindo para 9,5% no período seguinte. Já a segunda, que considera a força de trabalho constante, revela uma taxa de desemprego crescente até o 3º trimestre, chegando a 12,3%. Considerando esses dois fatores simultaneamente, obtém-se uma taxa que mensura todo o desemprego potencial de Santa Catarina, incluindo a parte que foi oculta pela pandemia. Segundo a projeção apresentada, essa taxa pode ter atingido até 21,3% entre abril e junho de 2020, caindo para 15% no trimestre seguinte. Muito além dos 6,6% efetivamente mensurados pelo indicador tradicional, acredita-se que essa seja uma medida mais fiel para dimensionar a perda de emprego efetivamente sofrida pelos trabalhadores catarinense em decorrência da presente crise[11].

Considerações finais

Considerando-se o conjunto do período analisado, é possível identificar três movimentos distintos para cada um dos trimestres que compreendem os impactos da crise da Covid-19 no mercado de trabalho catarinense até o momento. No 1º trimestre, o ajuste se deu principalmente pela saída compulsória da força de trabalho, especialmente dos trabalhadores que se encontravam subocupados e em posições com menor proteção social. No 2º trimestre, houve uma deterioração generalizada do nível de emprego, com efeitos simultâneos de afastamentos, reduções de jornadas e demissões, que se refletiram tanto no aumento da desocupação como no aprofundamento da saída do mercado de trabalho. Por fim, no 3º trimestre a retomada das horas trabalhadas ocorreu, principalmente, pela reincorporação dos trabalhadores afastados e pela normalização das jornadas de trabalho, retardando tanto a recuperação do nível de emprego, quanto a procura por trabalho.


[1] Vicente Loeblein Heinen é estudante de Economia na UFSC e bolsista do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[2] Lauro Mattei é professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do Necat e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail:l.mattei@ufsc.br.

[3] Tanto a PNAD Covid-19, quanto o Novo Caged (restrito aos vínculos formais) indicam que o nível de emprego interrompeu sua trajetória de queda em julho, acumulando saldos positivos no 3º trimestre. Em grande medida, essa divergência se deve à metodologia das pesquisas, que não são comparáveis entre si. Enquanto a PNAD Contínua se baseia em trimestres móveis, com entrevistas de referência mensal, distribuídas por todos os meses que compõem o trimestre, a PNAD Covid-19 tem frequência e período de referência semanais. Já o Novo Caged é um registro administrativo, que computa imediatamente os desligamentos e as admissões. Neste caso particular, há ainda indícios de que seus saldos estejam sobre-estimados. Cf. DUQUE, D. Evidências da subnotificação de desligamentos do Caged. 2020.

[4] Um fator importante para a divergência desses resultados com relação às demais pesquisas é o fato de que, na metodologia da PNAD Contínua, os trabalhadores afastados são considerados ocupados por um período máximo de quatro meses, o qual se encerrou em julho no caso dos trabalhadores afastados em abril pela MP 936, por exemplo. Outro fator que contribui para essa discrepância no 3º trimestre é o ajuste sazonal dos dados. Na série original, a população ocupada em Santa Catarina diminuiu em 35 mil pessoas, e no Brasil em 883 mil no 3º trimestre de 2020. Mas como esse trimestre tende a ser o período de maior geração de empregos na série histórica, o ajuste sazonal torna o resultado ainda mais negativo. Caso oposto ocorreu com os resultados dos dois primeiros trimestres do ano, quando a geração de empregos tende a ser menor.

[5] Na série sem ajustes sazonais, a queda nas ocupações foi de 12 milhões no Brasil e de 272 mil em Santa Catarina entre o 1º e o 3º trimestre de 2020.

[6] Na metodologia da PNAD Contínua são consideradas desocupadas as pessoas que não estão trabalhando, mas que realizaram procura efetiva por trabalho no mês de referência da pesquisa e estariam disponíveis para assumir a vaga, caso a encontrassem.

[7] Dentre os fatores para a população desocupada em Santa Catarina ter crescido mais rápido do que a média nacional, destacam-se o patamar prévio de desemprego e o período em que as medidas de distanciamento social mais rígidas estiveram em vigor. Cf. HEINEN, V. L.; MATTEI, L. Santa Catarina perdeu 163 mil postos de trabalho no 1º semestre de 2020. 2020.

[8] Para uma análise dos impactos da MP nº 936/ Lei nº 14.020 sobre o mercado de trabalho catarinense, cf. HEINEN, V. L. Quatro meses da MP 936: Balanço dos impactos no mercado de trabalho catarinense. NECAT: Textos para Discussão, nº 042, 2020.

[9] O mesmo efeito foi obtido pela desconsideração dos trabalhadores afastados da população ocupada. Cf. nota nº 2.

[10] Uma aproximação desse processo também poderia ser obtida a partir das medidas de subutilização da força de trabalho clássicas, considerando a taxa combinada de desocupação e de subocupação por insuficiência de horas para ponderar a redução nas jornadas de trabalho; e a taxa combinada de desocupação e da força de trabalho potencial para a saída da força de trabalho. No entanto, essas medidas desconsiderariam a parcela da população que respondeu que não gostaria de estar trabalhando mais horas em meio à pandemia, muito embora esse desejo provavelmente aparecesse caso o mesmo cenário de perda de emprego e redução de jornada se desse em condições sanitárias normais. O procedimento aqui adotado é semelhante ao realizado, para o caso do Brasil, por pesquisadores do IBRE/FGV. Cf. DUQUE; MARTINS; PERUCHETTI. Mercado de trabalho no Brasil: situação atual e desafios para o futuro. Blog do IBRE: FGV, 2020.

[11] Os resultados apresentados colocam em xeque a afirmativa do Governo Estadual de que o “terceiro trimestre de 2020 continua positivo para o emprego em Santa Catarina”. SDE/SC. Santa Catarina mantém a menor taxa de desemprego do Brasil, aponta IBGE. 2020.