Renda da metade mais pobre das famílias catarinenses ainda é 27% inferior ao nível pré-pandemia

26/06/2021 16:06

Por: Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]

Após a emergência da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o Brasil vem enfrentando também uma crise econômica e social, que provocou uma acelerada queda do nível de renda das famílias, bem como o aumento avassalador do flagelo da fome nas camadas mais vulneráveis da população brasileira. Estudo recente da Fundação Getúlio Vargas[3], mostra que a renda média individual do trabalho caiu 10,9% durante a pandemia. Todavia, destaca-se que a queda da renda média da parcela dos mais pobres foi de 20,8%, ou seja, caiu duas vezes mais que a média. Isso fez com que índice de Gini[4] nacional subisse de 0,642, no primeiro trimestre de 2020, para 0,674, no primeiro trimestre de 2021. Em termos absolutos, nota-se que a renda domiciliar per capita no Brasil de R$ 1.122,00, para R$ 995,00 nesse período, implicando em uma queda de 11,3%.  Registre-se que essa é a primeira vez que a renda se situa no patamar abaixo de 1 mil reais desde que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua começou a ser realizada, em 2012. Segundo o autor, a perda de ocupação foi o principal fator explicativo para essa queda expressiva do poder de compra da população brasileira.

Desde o início da pandemia da Covid-19, ainda no primeiro semestre de 2020, diversas análises do Necat/UFSC alertavam para o fato de que a crise deflagrada pela disseminação do novo coronavírus não teria curta duração, podendo deixar grandes sequelas econômicas e sociais também em Santa Catarina[5]. Os dados mais recentes têm comprovado que grande parte daqueles prognósticos se concretizaram. Mesmo que no momento alguns indicadores econômicos estejam finalmente saindo do vermelho, o desemprego e a perda de renda seguem ameaçando parcelas expressivas da população catarinense. Ao analisar a situação recente do desemprego em Santa Catarina, mostramos seu recrudescimento no primeiro trimestre de 2021[6]. No presente texto, analisamos o comportamento dos rendimentos do trabalho no mesmo período, tendo como base os microdados da PNAD Contínua. O texto está dividido em duas partes: a primeira trata da dinâmica dos rendimentos individuais, enquanto a segunda analisa a renda domiciliar.

A lenta e desigual retomada dos rendimentos do trabalho

A pandemia da Covid-19 distorceu enormemente os principais indicadores do mercado de trabalho, exigindo uma série de mediações para sua análise. No que se refere aos rendimentos do trabalho, a principal distorção é o descompasso entre o crescimento da massa de rendimentos (soma de todas as rendas provenientes do trabalho da economia) e o rendimento médio (média da remuneração da população que está efetivamente trabalhando). De acordo com os dados da Tabela 1, a massa de rendimentos do trabalho efetivamente recebida em Santa Catarina no primeiro trimestre de 2021 permanece 4% abaixo do nível registrado no mesmo período do ano anterior, isto é, quando o estado começava a sentir os primeiros impactos da pandemia. Embora em menor intensidade, vale notar que essa queda permanece mesmo tendo em vista os rendimentos habitualmente recebidos (que descontam fatores extraordinários na perda da renda, como reduções temporárias no número de horas trabalhadas, por exemplo)[7], cuja variação foi de -1% no período.

 Tabela 1 – Massa de rendimento e rendimento médio real efetivo e habitualmente recebido em todos os trabalhos em Santa Catarina (2020-2021, 1º trimestre)

Fonte: PNADC/T – Microdados (2021); Elaboração própria.

Entretanto, chama a atenção que essa perda na renda total do trabalho tem convivido com um forte crescimento no rendimento médio, que atingiu o maior patamar da série histórica (iniciada em 2012) tanto do ponto de vista da remuneração habitual (R$ 2.818), quanto da efetivamente recebida (R$ 2.994). Frente aos resultados do primeiro trimestre de 2020, essas cifras equivalem a um crescimento de 9,7% e de 5,6%, respectivamente. Conforme destacamos em análises anteriores[8], tal fenômeno se deve ao fato de que as ocupações perdidas no período se concentraram nos trabalhadores mais pobres, ou seja, o aumento da renda média não se deve à valorização salarial propriamente dita, mas ao crescimento da desigualdade de renda.

Esse aumento da desigualdade aparece no comportamento do índice de Gini estadual (Gráfico 1), que também atingiu o maior patamar da série histórica no primeiro trimestre de 2021, tanto do ponto de vista do rendimento efetivo (0,434), quanto do habitual (0,410). Ainda que esses números sigam bastante abaixo da média nacional, eles representam um crescimento histórico da desigualdade de renda em Santa Catarina, que já acumula alta de 5,4% em relação ao nível salarial habitualmente recebido antes da pandemia.

Gráfico 1 – Índice de Gini dos rendimentos habitual e efetivamente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina (2016-2021)

Fonte: PNADC/T – Microdados (2021); Elaboração própria.

A persistência da crise entre as famílias mais pobres

Dado o impacto desigual da perda de ocupações sobre os rendimentos médios, o dimensionamento do nível de renda estadual deve ser feito não com base nas remunerações individuais, mas na renda disponível por cada família. Nesse sentido, o Gráfico 2 indica que o rendimento domiciliar per capita de Santa Catarina caiu de R$ 1.529, no primeiro trimestre de 2020, para R$ 1.412, no primeiro trimestre de 2021, o que corresponde a uma queda de 7,6%. Já do ponto de vista da renda per capita mediana[9] do estado, tais valores ficaram em R$ 1.053 e R$ 907, respectivamente, representando um recuo anual de 14%. Esses dois resultados contrastam com o indicador de rendimento médio da população ocupada e indicam que: a) as famílias catarinenses ainda não recuperaram as perdas registradas ao longo de 2020; e b) tal recuperação se dá de forma muito desigual entre as classes de renda.

Gráfico 2 – Rendimento domiciliar per capita real efetivamente recebido em Santa Catarina (2016-2021)

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração própria.

Para dar uma noção aproximada de como a renda recuperada tem se concentrado nos domicílios de maiores faixas de rendimento, o Gráfico 3 apresenta o crescimento da massa de rendimentos da metade mais pobre e da metade mais rica dos domicílios catarinenses desde o final de 2019. A partir desses dados, nota-se que, enquanto os 50% mais ricos já recuperaram toda a renda perdida na fase inicial da pandemia, a renda dos 50% mais pobres segue, em média, 27% abaixo do patamar existente no período pré-pandemia.

Gráfico 3 – Número-índice da massa de rendimentos efetivamente recebida por todos os membros do domicílio, Santa Catarina (base=100; 4º trim. 2019)

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração própria.

A principal causa da discrepância entre esses dois estratos de renda é a manutenção de um elevado número de famílias sem renda do trabalho no estado. Conforme os dados contidos na Tabela 2, esse número saltou de 597 mil, no primeiro trimestre de 2020, para 721 mil, no mesmo período de 2021, correspondendo a uma alta de 20,8%. Em termos relativos, os domicílios sem renda bateram novamente recorde da série histórica, abrangendo 26,8% do total (4 pontos percentuais a mais do que no início de 2020).

Tabela 2 – Distribuição dos domicílios por faixa de rendimentos do trabalho per capita (Santa Catarina, mil domicílios)

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração própria.

Nota: Faixas de renda domiciliar considerando os rendimentos reais (a preços de mar/2021) efetivamente recebidos em todos os trabalhos pelas pessoas com 14 ou mais anos de idade, em salários mínimos (SM).

Evidentemente, nem todos os domicílios que deixaram de receber renda do trabalho estão passando por grandes necessidades, uma vez que parte considerável deles possuem rendimentos de outras fontes ou níveis suficientes de poupança, por exemplo. Nesse sentido, nota-se que os domicílios com responsáveis inativos (que não estão ocupadas e nem desejariam trabalhar) seguem sendo a maioria da amostra, com 24,2% do total. Devido a fatores como os afastamentos provisórios e o recebimento de rendimentos de outras fontes[10], esse grupo cresceu 19,6% nos últimos 12 meses, incorporando 107 mil novos domicílios. Em termos relativos, os domicílios cujos responsáveis se encontram desempregados (procurando trabalho ou na força de trabalho potencial, isto é, que não realizaram busca efetiva por trabalho, mas desejariam trabalhar) foram aqueles que apresentaram os maiores crescimentos. Com isso, nota-se que desde o início de 2020 o total de domicílios nessa condição no estado passou de 51 mil, para 68 mil, registrando um crescimento de 33,4%. Reconvertendo esses números em termos populacionais, chega-se à conclusão que aproximadamente 162 mil catarinenses residem em domicílios cujos responsáveis necessitariam trabalhar para auferir renda, mas não conseguem fazê-lo.

Além da perda completa de rendimentos do trabalho, a Tabela 1 também mostra o processo de arrocho salarial em curso em Santa Catarina. Essa constatação é referendada pelo fato de que todas as faixas de rendimento superiores a um salário mínimo (R$ 1.100, a preços de 2021) encolheram no período em análise, migrando para faixas inferiores a esse valor. Puxada pelos afastamentos e pelas demissões de empregados formais, as faixas intermediárias foram as que mais encolheram, com destaque para as faixas das famílias que recebiam de 2 a 3 salários mínimos (-22,2%) e de 1 a 1,5 salário mínimo (-17,1%) por morador. Em termos absolutos, 69 mil e 51 mil domicílios saíram dessas faixas, respectivamente. Em seguida, aparece a faixa de renda superior a 5 salários mínimos per capita, cuja retração de 21 mil domicílios (-16,9%) se deve, basicamente, à saída voluntária do mercado de trabalho das famílias com maiores níveis de renda.

Por abranger grande parte das pessoas que conseguiram voltar a trabalhar entre o final de 2020 e o começo de 2021 – majoritariamente em ocupações informais – e grande parte dos trabalhadores que tiveram seus rendimentos reduzidos, as menores faixas salariais foram as únicas que registraram altas. Assim, na faixa de até meio salário mínimo, o aumento chegou a 25,6%, representando a incorporação de 51 mil domicílios, enquanto na faixa entre meio a um salário mínimo esse percentual foi de 13,3%, representando 64 mil domicílios. Com isso, do total de domicílios que possui rendimentos do trabalho, cerca de 30% deles (790 mil) não recebe mais do que um salário mínimo por morador. Descontados os domicílios com responsáveis inativos, Santa Catarina conta com 74 mil famílias abaixo da linha da pobreza (US$ 43,95, ou aproximadamente R$ 246 por mês), as quais abrangem um total de 177 mil pessoas.


[1] Estudante de Economia da UFSC e bolsista do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com

[2] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT-UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email:l.mattei@ufsc.br

[3] NERI, Marcelo. Bem-Estar Trabalhista, Felicidade e Pandemia. CPS/FGV, jun/2021.

[4] O Índice de Gini mede a desigualdade da renda. Quanto mais próximo de 1, maior é o nível de desigualdade.

[5] Ver, por exemplo, MATTEI, L. A crise econômica decorrente do covid-19 e as ações da equipe econômica do governo atual. TD 035, mar/2020; e HEINEN, V.; MATTEI, L. Primeiros impactos da crise da Covid-19 no mercado de trabalho catarinense. Blog do Necat, 2020.

[6] MATTEI; HEINEN. O desemprego aumentou em Santa Catarina no primeiro trimestre de 2021. Blog do Necat, 2021.

[7] Na metodologia da PNADC, o rendimento habitual é o valor médio que o trabalhador normalmente receberia no período em sua atual ocupação, sem descontos ou acréscimos extraordinários; já o rendimento efetivo diz respeito à remuneração de fato recebida no mês anterior à coleta, considerando descontos ou acréscimos extraordinários e/ou sazonais.

[8] HEINEN; MATTEI. Domicílios sem renda do trabalho cresceram cerca de 30% em Santa Catarina no ano de 2020. Blog do Necat, 2021; HEINEN; MATTEI. A queda dos rendimentos do trabalho em Santa Catarina durante a pandemia da Covid-19. Blog do Necat, 2020; HEINEN, V. L. O mercado de trabalho catarinense diante da crise da Covid-19. Revista Necat, 2020.

[9] A mediana é o valor central da escala dos rendimentos domiciliares per capita. Ele indica o valor máximo recebido pela metade mais pobre dos domicílios.

[10] Sobre as causas desse processo massivo de saída do mercado de trabalho, ver HEINEN; MATTEI, Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível? Blog do Necat, 2021.