Renda das famílias catarinenses caiu 10% em 2020, mesmo com o Programa Auxílio Emergencial

11/01/2022 20:17

Por: Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]

A renda total que cada família dispõe pode ser composta por diversas fontes. Para a maioria da população, a principal delas é o trabalho, seja ele realizado por um ou mais membros do domicílio. Desde o início da pandemia da Covid-19, temos acompanhado precisamente o comportamento dessa fonte de renda, que é a única cujos dados são disponibilizados trimestralmente pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC)[3]. As informações referentes às demais fontes de renda são divulgadas apenas na versão anual da PNADC, que teve sua edição de 2020 divulgada pelo IBGE em dezembro de 2021. Tais dados subsidiaram a Síntese dos Indicadores Sociais (SIS) de 2020, também recentemente divulgada.

No âmbito nacional se observou que o rendimento médio per capita foi de R$ 1.349 em 2020, representando uma queda de 4,3% em relação a 2019, quando essa cifra foi de R$ 1.410. Segundo a SIS 2020, caso não tivessem sido ampliados os programas sociais de transferência de renda, essa queda teria sido de 8,4%, colocando o rendimento geral do país no patamar de R$ 1.269. Além disso, com os programas sociais, o Índice de Gini – que mede a desigualdade de renda – sofreu uma queda de 3,7%, passando do patamar de 0,544 (2019) para 0,524 (2020). Caso não tivessem sido implementados os benefícios sociais, esse índice teria atingido a marca de 0.573, correspondendo a um aumento de 2,3%.

Portanto, os novos dados são muito importantes porque permitem ampliar as análises sobre o comportamento do rendimento domiciliar em Santa Catarina para além da renda do trabalho, ao incluir as demais fontes de renda provenientes dos diversos programas sociais, especialmente do Programa Auxílio Emergencial criado durante a pandemia. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é fazer um breve balanço da situação da renda das famílias catarinenses em 2020. Para tanto, o artigo inicia fazendo uma comparação dos impactos do primeiro ano da pandemia sobre a renda em Santa Catarina e nas demais unidades da federação. Na sequência, analisa-se o comportamento da renda no âmbito estadual, tanto do ponto de vista individual como domiciliar.

Santa Catarina figura dentre os estados que mais perderam renda em 2020

Os dados consolidados pela PNADC anual revelam o grande drama que foi o empobrecimento da população brasileira diante da Covid-19. Tal empobrecimento foi puxado pela histórica destruição de postos de trabalho registrada ao longo de 2020, a qual levou a uma redução de aproximadamente 6% na massa salarial. A despeito da importância que tiveram os programas sociais de transferência de renda criados no período para a população mais vulnerável – destacadamente o Auxílio Emergencial –, eles compensaram, em média, apenas 13% da renda do trabalho perdida. Com isso, a massa de rendimentos totais circulando no país ficou em R$ 285 bilhões em 2020, o que representou uma queda de 3,6%, comparativamente ao ano de 2019.

De acordo com os dados contidos no Gráfico 1, as maiores perdas relativas foram registradas no Rio de Janeiro e no Espírito Santo (ambos com variação de -7,1%), seguidos por Pernambuco (-6,8%); Paraná (-6,7%); Roraima (-6,6%); e Distrito Federal (-6,5%). Santa Catarina obteve o sétimo pior resultado, com queda de 5,9%. Em geral, as perdas foram tanto maiores quanto maior era a participação da renda do trabalho no orçamento das famílias, o que explica o fato dos estados do Sul e do Sudeste liderarem esta lista[4].

Gráfico 1 – Taxa de crescimento da massa de rendimentos e decomposição por rendimentos habitualmente recebidos em todos os trabalhos e outras fontes de rendimentos, Brasil e Unidades da Federação (2020, %)

G1

Fonte: PNADC/A (2021); Elaboração dos autores.

Pela mesma razão, os estados menos prejudicados foram aqueles em que os rendimentos do trabalho já eram baixos, tendo sua queda compensada por programas sociais. Assim, houve inclusive uma expansão da renda nas regiões mais pobres, com destaque para o Nordeste, que concentrou grande parte dos recursos oriundos do Auxílio Emergencial[5]. Em termos relativos, o melhor resultado foi registrado no Pará (8,9%), único estado em que a renda do trabalho acompanhou o aumento dos rendimentos de outras fontes.

Menos gente trabalhando e menos renda para os que trabalham

Em linha com as tendências nacionais, Santa Catarina sofreu um empobrecimento recorde no primeiro ano da pandemia da Covid-19. De acordo com o Gráfico 2, a massa de rendimentos recebidos no estado em 2020 foi de aproximadamente R$ 11,6 bilhões. Na comparação com 2019, esse resultado significa uma queda de 5,9% na renda habitual – que desconsidera descontos esporádicos nas remunerações, como aqueles decorrentes de reduções de jornadas de trabalho – e de 9% na renda efetiva. Para se ter uma ideia da dimensão dessa perda, vale notar que ela é quase cinco vezes maior do que a provocada pela grave crise econômica que afetou todo o país entre os anos de 2015 e 2016.

Gráfico 2 – Massa de rendimento real recebido de todas as fontes, Santa Catarina (2012-2020, R$ milhões, a preços de 2020)

G2

Fonte: PNADC/A (2021); Elaboração dos autores.

Tais resultados refletem a deterioração histórica sofrida pelo mercado de trabalho catarinense em 2020, a qual se manifestou tanto na queda do nível de ocupação[6], quanto no encolhimento das remunerações recebidas pelos trabalhadores que conseguiram se manter empregados[7].

Os dados da Tabela 1 são bastante ilustrativos quanto ao primeiro desses fatores. Seja pelo aumento das demissões, por afastamentos ou por saídas voluntárias do mercado de trabalho, a parcela da população em idade ativa (14+ anos de idade) que recebeu algum rendimento do trabalho no estado caiu de 61,7% para 57,6% em 2020, atingindo o menor patamar da série histórica neste ano.

Tabela 1 – Proporção das pessoas com 14 ou mais anos de idade por fonte de renda recebida, Santa Catarina (2012-2020, %)

T1

Fonte: PNADC/A (2021); Elaboração dos autores.

Embora não tenham a mesma importância para o orçamento das famílias, vale notar que o cenário de crise – e o próprio encolhimento da renda do trabalho – também reduziu a parcela da população que recebeu rendimentos provenientes de aluguéis e arrendamentos (de 3,6% em 2019, para 2% em 2020) e de pensões alimentícias e doações (de 3,8% para 1,9%, respectivamente). Já o pagamento de aposentadorias e pensões não foi afetado, tendo beneficiado 23,7% dos catarinenses em idade ativa.

Em compensação, houve um expressivo crescimento nos rendimentos de outras fontes, que passaram a abranger 21,8% dos catarinenses em 2020 (4 pontos percentuais a mais do que em 2019). Esse ganho de abrangência deve-se principalmente à implementação do Auxílio Emergencial (AE) e do Programa de Manutenção do Emprego e da Renda (PEMER), que, na média de 2020[8], foram pagos a 12,2% da população estadual. Tendo em vista que em muitos casos o pagamento do AE ocorreu em substituição ao programa Bolsa Família, notou-se uma redução da abrangência do BF de 2,5% em 2020, sendo que em 2019 esse percentual atingiu 4,9%. Fechando a rubrica dos “outros rendimentos”, a população assistida pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC) caiu de 2% para 1,3%, o que pode indicar problemas com a concessão do benefício em decorrência da redução dos atendimentos e do aumento da fila de espera do INSS em 2020[9].

Por mais que os programas sociais tenham se expandido, eles não conseguiram evitar o aumento da população sem renda em Santa Catarina, que chegou a 1,3 milhão no primeiro ano da pandemia, representando uma alta de 270 mil pessoas em comparação com 2019[10]. Em termos relativos, isso significa dizer que 21,8% dos catarinenses não auferiram renda própria em 2020[11]. Além disso, o valor dos recursos transferidos tampouco se compara ao nível salarial médio, que giravam em torno de R$ 2,6 mil. Assim, os programas emergenciais de transferência de renda compensaram apenas 12% das perdas provenientes do mercado de trabalho em 2020 (Gráfico 3).

Gráfico 3 – Decomposição do crescimento da massa de rendimentos reais efetivamente recebida, por fonte de renda em Santa Catarina (2012-2020, em %)

G3

Fonte: PNADC/A (2021); Elaboração dos autores.

A queda histórica no rendimento das famílias catarinenses

Com menos trabalhadores ativos e a substituição dos rendimentos do trabalho por auxílios de menor valor, a renda disponível das famílias catarinenses também sofreu perdas em proporções inéditas na PNAD Contínua. Conforme demonstra o Gráfico 4, o rendimento domiciliar per capita (RDPC)[12] estadual em 2020 ficou em R$ 1.601, quando considerada a renda habitual, e R$ 1.612, tendo em vista a renda efetivamente recebida.

Gráfico 4 – Rendimento domiciliar per capita real em Santa Catarina (2012-2021, R$ a preços de 2020)

G4

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração dos autores.

Refletindo a queda histórica sofrida pela massa de rendimentos, esses resultados significam que as famílias catarinenses sofreram uma perda de poder de compra da ordem de 10% na comparação com 2019. Todavia, é importante destacar que esses impactos foram extremamente heterogêneos, sendo sentidos de maneira mais intensa entre as famílias mais pobres. É exatamente esse cenário que fomenta o avanço da pobreza e a deterioração geral das condições de vida observadas em Santa Catarina desde o início da pandemia da Covid-19[13].

Portanto, as atuais mazelas sociais – seja no país ou no estado – não podem ser explicadas apenas à luz crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. Na verdade, o que a pandemia fez foi deixar mais evidente os graves problemas sociais existentes no país, os quais vêm se agravando desde a crise de 2015-2016. Tais problemas se escancaram na conjuntura recente, marcada por desemprego elevado, expansão da inflação e queda acentuada da renda, que se explicitam na expansão visível da fome e da pobreza.


[1] Economista pela UFSC e pesquisador do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[2] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT-UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email:l.mattei@ufsc.br

[3] A divulgação mais recente desses dados para Santa Catarina diz respeito ao 2º trimestre de 2021, tendo sido analisada em: HEINEN; MATTEI. Desigualdade de renda em Santa Catarina atingiu maior patamar da série histórica no 2º trimestre de 2021, Blog do Necat, 2021.

[4] Em média, 73% da renda dos brasileiros é oriunda das atividades laborais. Em Santa Catarina esse percentual é de 78%.

[5] De acordo com dados da PNAD Covid, cerca de 30% dos domicílios catarinenses receberam recursos do Auxílio Emergencial no 2º trimestre de 2020. Nos estados do Nordeste esse percentual girou em torno dos 65%. Para mais detalhes, ver MONTE, P. A. Auxílio Emergencial e seu impacto na redução da desigualdade e pobreza. ANPEC Nordeste, 2021.

[6] O nível de ocupação foi uma das variáveis mais impactadas pelas revisões dos dados da PNAD Contínua realizadas recentemente pelo IBGE, de modo que sua divulgação mais recente ainda aponta para uma queda histórica do emprego (-140 mil ocupações), todavia inferior ao nível indicado anteriormente (-220 mil ocupações). Apesar disso, o diagnóstico sobre as causas desse processo permanece praticamente inalterado, conforme visto em: HEINEN; MATTEI. Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível? Blog do Necat, 2021.

[7] Cf. HEINEN, Vicente Loeblein. Mercado de trabalho catarinense bate recorde de informalidade no 3º trimestre de 2020, Blog do Necat, 2021.

[8] Com base nos registros administrativos do governo, estima-se que cerca de 25% dos catarinenses tenham recebido uma ou mais parcelas do AE e que 8% da população tenha aderido ao PEMER ao longo de 2020.  MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Auxílio Emergencial 2020. Portal da Transparência, 2021; HEINEN, Vicente Loeblein. Balanço do Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda em Santa Catarina. Revista Necat, 2020.

[9] FOLHA DE S. PAULO. Maioria dos pedidos na fila depende do INSS para a análise. 2021.

[10] Do total de pessoas sem renda, a maioria são jovens. O aumento observado em 2020, contudo, concentra-se entre a população adulta, com destaque aos mais velhos, que saíram mais da força de trabalho na primeira fase da pandemia.

[11] Para mais detalhes, ver: HEINEN; MATTEI. Domicílios sem renda do trabalho cresceram cerca de 30% em Santa Catarina no ano de 2020, Blog do Necat, 2021.

[12] O RDPC é a divisão da massa de rendimentos totais recebidos em um dado domicílio, pelo total de moradores que ele possui. Vale notar que esse indicador difere significativamente do rendimento domiciliar per capita do trabalho (RDPCT) que foi analisado em textos anteriores, uma vez que não se restringe apenas aos rendimentos recebidos pela população ocupada.

[13] MATTEI, Lauro. A pobreza no estado de Santa Catarina ao final do ano de 2020. Blog do Necat, 2021.

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