Possível impacto financeiro da redução de 8% do ICMS sobre as finanças de Santa Catarina

04/08/2022 15:30

Lauro Mattei[*]

Juliano Giassi Goularti[**]

Introdução

Diante do aumento contínuo dos preços dos combustíveis no país, o deputado Danilo Forte (PSDB-CE) apresentou na Câmara Federal, no dia 18.05.2022, o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 18/22 considerando que, para fins de tributação, os combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes coletivos fossem tratados como itens essenciais, portanto não podendo ser tratados como supérfluos. Para o referido Deputado, a legislação tributária é omissa quanto às referidas essencialidades, razão pela qual sua proposta busca impedir que esses itens sejam considerados equivalentes a produtos com alíquotas maiores por serem considerados supérfluos, como são os casos de bebidas e perfumes. Segundo o deputado, tal projeto atende ao princípio da seletividade tributária presente na Constituição Federal, que prevê alíquotas menores para produtos e serviços essenciais.

Após os trâmites institucionais, tal PLP acabou virando a Lei Complementar nº 194, aprovada em 23 de junho de 2022. Com isso, ficam alteradas as seguintes Leis: Lei nº 5.172, de 25.10.1966 (Código Tributário Nacional); Leis Complementares nº 87, de 13.09.1996 (Lei Kandir); nº 159, de 19.05.2017, que instituiu o regime de Recuperação de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal e nº 192, de 11.03.2022, que dispõe sobre a tributação de combustíveis.

Dentre as principais mudanças introduzidas pela Lei Complementar nº 194 destacam-se: a) que bens e serviços relacionados aos combustíveis, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo passam a ser essenciais, ficando vedada o estabelecimento de alíquotas superiores àquelas aplicáveis para operações gerais nas Unidades da Federação e no Distrito Federal; b) passa a ser facultado aos estados a aplicação de alíquotas  reduzidas em relação a esses bens e serviços que passaram a ser considerados essenciais, sendo que tal redução não poderá ser em percentual superior ao da alíquota vigente no momento da promulgação da lei; c) além das operações anteriores, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) passa a não incidir também nas operações das quais decorrem transferências de bens móveis salvados de sinistros e nas operações relativas a serviços de transmissão e distribuição e encargos vinculados às operações de energia elétrica; d) a base de cálculo do ICMS nas operações com diesel até 31.12.2022 passa a ser a média móvel dos preços praticados ao consumidor final nos sessenta meses anteriores à sua fixação.

Diante dessas alterações na legislação federal com o objetivo explícito de baixar os preços dos combustíveis, se impôs aos estados uma limitação das alíquotas do ICMS de até 18% para os produtos e mercadorias anteriormente mencionados, considerados essenciais a partir da nova Lei. Registre-se que logo após a promulgação dessa Lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucionais as legislações de Santa Catarina e Distrito Federal que determinavam uma alíquota de 25% para os setores de energia elétrica e comunicação.

Portanto, no presente artigo busca-se estimar o impacto financeiro que a Lei Complementar nº 194/22 provocará sobre a arrecadação do ICMS no estado de Santa Catarina, tanto em termos gerais como os efeitos individualizados sobre a área de educação pública dos catarinenses, uma vez que a Constituição Estadual determina que 25% da arrecadação de impostos devem ser aplicados na manutenção e desenvolvimento do ensino público.

Além desse breve introdução, o texto contém mais três seções. A primeira dela apresenta algumas considerações gerais sobre a Lei Complementar nº 194/22, enquanto a segunda estima os impactos financeiros da medida no estado de Santa Catarina. Na terceira seção são discutidos alguns aspectos críticos dessa nova legislação no âmbito das unidades da federação.

Considerações Gerais sobre a Lei Complementar nº 194/22

O governo federal vem responsabilizando os estados pela alta tributação dos derivados de petróleo. Porém, deve-se destacar que desde novembro de 2021 os governos estaduais congelaram o Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final (PMPF) desses produtos. Mesmo assim, o governo do país fixou o teto da alíquota de cobrança do ICMS como estratégia para agradar os consumidores quando estes verificarem que os preços nas bombas estão caindo.Todavia, para os administradores das unidades da federação a nova Lei Complementar é motivo mais que suficiente para deixar esses administradores preocupados, uma vez que a queda na arrecadação certamente ocorrerá, considerando-se que em algumas unidades da federação a redução desse tipo de arrecadação poderá comprometer os gastos sociais, especialmente nas áreas da saúde e educação.

Em função de que a Lei Complementar nº 194/22 tem efeitos imediatos, diversos estados estão questionando judicialmente tal Lei por entender que ela viola a autonomia a eles conferida pela Constituição Federal (CF), além do fato de que a redução aprovada irá afetar o orçamento de todas as unidades da federação. Para tanto, defendem a tese de que a seletividade do ICMS seria facultativa, uma vez que o parágrafo segundo do artigo 155 da CF afirma textualmente que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e serviços. Assim, o assunto também passou a ser debatido na alçada judiciária, sendo que em breve poderá ter novos desdobramentos.

Segundo o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais da Fazenda (Confaz)[1], no ano de 2021 o ICMS representou aproximadamente 85% da arrecadação tributária dos estados, sendo que somente os combustíveis e lubrificantes, o petróleo e a energia responderam por quase 30% do valor arrecadado. Portanto, após promulgação e entrada em vigor da referida Lei, alguns analistas passaram a fazer projeções de seus impactos sobre as receitas das unidades da federação. Para Gobetti (2022)[2], a queda da receita estadual advinda do ICMS, que é a principal fonte de recursos dos estados, poderá atingir até 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de alguns deles.

Por fim, registramos que qualquer análise sobre os preços dos combustíveis precisa levar em consideração que a Petrobras adotou, a partir de 2016, o Preço de Paridade de Importação (PPI), agindo como se fosse mera importadora de combustíveis.[3] Com isso, os preços permanecem dolarizados, o que significa dizer que a população brasileira paga a conta, mesmo diante de um cenário em que o custo de fabricação seja menor para a empresa. Esse processo vem fazendo com que a receita de ICMS, principalmente derivada da dolarização dos combustíveis e da elevação dos preços da energia elétrica, cresceu significativamente no último ano, passando de R$ 523 bilhões em 2020 para R$ 655 bilhões em 2021, crescimento da ordem de 25% em valores nominais.

Estimativas sobre perda de arrecadação do ICMS em Santa Catarina com alíquota reduzida de 25% para 17%

Após a promulgação da Constituição Federal de 1988 ficou patente a autonomia fiscal conferida às Unidades da Federação para definir as alíquotas de ICMS. No caso do estado de Santa Catarina ficou definido que as alíquotas cobradas na comercialização de diesel seriam de 12%; na gasolina comum e aditivada 25%; no etanol 25%; no gás de cozinha 17%; na energia residencial 25%; nas telecomunicações 25% e no transporte 17%. Com a aprovação da Lei Complementar nº 194/22, a redução de 8% na alíquota do ICMS nas operações de energia elétrica, gasolina automotiva, álcool carburante e nas prestações de serviços de comunicação certamente irá afetar as finanças do estado.

Segundo informações do Confaz (2021), os valores arrecadados pelo estado de Santa Catarina sobre petróleo, combustíveis, lubrificantes, energia elétrica, comunicações e transportes no ano de 2021 foram: ICMS sobre petróleo, combustíveis, lubrificantes R$ 2,19 bilhões; ICMS sobre energia elétrica R$ 2,91 bilhões; ICMS sobre comunicações R$ 1,13 bilhão e ICMS sobre transportes R$ 0,86 milhões. Quando somada a arrecadação de todos esses se atinge o montante de R$ 7,09 bilhões, o que corresponde a 3,20% da arrecadação nacional de ICMS (R$ 221,47 bilhões) no mesmo período.

Buscando se adequar à Lei Complementar nº 194/22, o governo do estado do estado enviou para a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC) a Medida Provisória nº 255, de 2022. Tal a medida buscou adequar a alíquota do ICMS nas operações com energia elétrica, gasolina automotiva, álcool carburante e nas prestações de serviço de comunicação internas aos ditames na nova Lei, ou seja, reduzir a alíquota dos atuais 25% para o patamar da alíquota modal de 17%.

Como tal medida trata de redução tributária, é importante destacar que a política de renúncia de receita tributária do estado de Santa Catarina para 2023 está estimada, segundo a Lei de Diretrizes Orçamentária/LDO-2023, em R$ 20,25 bilhões, contra R$ 14,01 bilhões em 2022, registrando-se que a estimativa da renúncia contemplando as múltiplas estruturas fiscais do governo estadual passou de R$ 3 bilhões em 2010; para R$ 5,17 bilhões em 2015; para R$ 6,34 bilhões em 2021 e para R$ 14,01 bilhões em 2022.

Por meio da Medida Provisória nº 225, de 2022, o governo estadual estima que os valores arrecadados com ICMS sobre petróleo, combustíveis, lubrificantes, energia elétrica, comunicações e transportes, adequados à alíquota de 17% sejam: sobre petróleo, combustíveis, lubrificantes R$ 1,25 bilhão; sobre energia elétrica R$ 1,98 bilhão; sobre comunicações R$ 0,77 milhões e sobre transportes R$ 0,86 milhões. Quando somados todos esses valores estimados, eles atingiriam o montante de R$ 4,86 bilhões, implicando em uma redução na arrecadação da ordem de R$ 2,24 bilhões.

Na mesma linha do governo estadual, a Confederação Nacional dos Municípios (CNM)[4] estimou que o impacto nas finanças das 295 cidades catarinenses seria da ordem de R$ 773,61 milhões, com os seguintes destaques: Joinville R$ 67,26 milhões; Itajaí R$ 62,70 milhões; Blumenau R$ 31,77 milhões; Jaraguá do Sul R$ 20,17 milhões; Chapecó R$ 19,53 milhões; Florianópolis R$ 19,43 milhões; São José R$ 16,43 milhões; Criciúma R$ 13,34 milhões; Lages R$ 12,42 milhões; e, São Francisco do Sul R$ 10,32 milhões. Juntos estas dez cidades perderiam cerca de R$ 273,37 milhões, ou seja, 35,33% da perda estimada para os 295 municípios do estado.

Considerações finais

Como ficou explícito, o objetivo da Lei Complementar nº 194/22 foi reduzir os preços dos combustíveis visando controlar a inflação, cuja natureza não se limita a apenas esse aspecto. Ao propor uma limitação das alíquotas de arrecadação do ICMS em todo o país, geraram-se problemas de duas ordens distintas. Por um lado, tal Lei afronta o pacto federativo, dada a garantia constitucional dos entes federados de legislar sobre o assunto, o que certamente colocará a questão no âmbito da disputa judiciária. Por outro, essa redução de alíquota do ICMS da ordem de 7% nos produtos e serviços anteriormente listados até poderá reduzir momentaneamente alguns impactos inflacionários, mas não resolverá os problemas econômicos e sociais que atingem a maioria da população brasileira neste momento.

Ao contrário, tal medida tem grande possibilidade de afetar negativamente as finanças das unidades federativas, com consequências funestas na implementação de serviços de atendimento essenciais à população, particularmente nas áreas de saúde, educação e de erradicação da fome e da pobreza. Além disso, destacam-se os efeitos negativos sobre as administrações municipais, as quais são as primeiras responsáveis pelas políticas de atendimento das necessidades básicas da população, com destaque para as ações na área da saúde integrantes do Sistema Único de Saúde (SUS), instituição que foi essencial recentemente no combate da pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Neste sentido, a simples redução da alíquota do ICMS sem a necessária rediscussão e reorganização do chamado “gasto público” dificilmente terá sustentabilidade no longo prazo. Portanto, dada a complexidade do assunto, o que de fato a Lei Complementar nº 194/22 faz é escancarar mais uma vez a necessidade premente de uma verdadeira reforma tributária no país, uma vez que o sistema tributário vigente no Brasil é extremamente perversivo e, no limite, sempre mais prejudicial às camadas mais vulneráveis da população.

Nesta direção, perdas de arrecadação tributária de algumas fontes poderiam ser compensadas com arrecadação de outras fontes, como seria o caso da tributação sobre lucros e dividendos das empresas, ou então a taxação sobre grandes fortunas. Isso sim poderia trazer mudanças de natureza estrutural e alterar o cenário geral da esfera tributária no país.

Portanto, temos consciência de que as discussões sobre o assunto são longas, complexas e ultrapassam aos objetivos desse artigo. Também temos ciência que medidas paliativas – como é o caso da Lei Complementar nº 194/22 – não conduzirão o país no caminho adequado para se fazer as mudanças tão necessárias para efetivamente ser ter um sistema tributário razoável e caudatário da implementação da verdadeira justiça social.


[*]Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br

[**] Economista com doutorado em Economia no IE-UNICAMP. Pesquisador colaborador do NECAT-UFSC. Email: jggoularti@gmail.com

[1] Conselho Nacional de Política Fazendária/Confaz. Boletim de arrecadação dos tributos estaduais. Disponível em https://dados.gov.br/dataset/boletim-de-arrecadacao-dos-tributos-estaduais. Acessado em 01.08.2022.

[2] Nota Técnica: ICMS: crescimento de receita estrutural ou temporário? O que os dados mostram? Sérgio Wulff Gobetti. Disponível em: https://comsefaz.org.br/novo/wp-content/uploads/2022/07/NT_ICMS-crescimento-de-receita-estrutural-ou-temporario_Sergio-Gobetti.pdf  Acessado em 12.07.2022.

[3] Desde 2016, a Petrobras adota como referência o preço do barril tipo brent, que é calculado em dólar.

[4] https://www.cnm.org.br/cms/images/stories/Links/plp18-2022/Impacto_Financeiro_PLP_18_2022_BR.pdf  Acessado em 13.07.2022.