A desigualdade nos Estados Unidos
Paul Krugman*
Por que os ricos foram ficando mais ricos?
Entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, as disparidades de renda na América do Norte eram relativamente estreitas. Algumas pessoas eram ricas e muitas eram pobres, mas a desigualdade geral entre os americanos em termos de riqueza, renda e status era baixa o suficiente para que o país tivesse uma sensação de prosperidade compartilhada. As coisas são muito diferentes hoje, pois a sociedade americana é assolada por extrema desigualdade, fragmentação econômica e guerra de classes.
O que aconteceu? Os dados econômicos mostram um enorme aumento das disparidades de renda e riqueza a partir de 1980, o que minou a distribuição relativamente igualitária de renda que os EUA tinham dos anos 1940 aos anos 1970. Além disso, as crescentes disparidades de renda levaram a crescentes disparidades na influência política e ao ressurgimento do que parece cada vez mais um sistema de classes opressivo.
Esta postagem é a primeira de uma série que investiga o aumento da desigualdade americana e suas consequências. É preciso um post inteiro para discutir o fator mais importante no aumento da desigualdade, a mudança no poder político e de barganha que operou contra os trabalhadores.
Aborda-se em sequência quatro questões: (i) Quatro fatos sobre a desigualdade que precisam ser explicados; (ii) o papel da globalização nesse aumento; (iii) o papel da tecnologia nesse aumento; (iv) o papel do poder na elevação da desigualdade.
Quatro fatos sobre a desigualdade
As famílias no percentil 95 – aquelas mais ricas do que 95% de seus compatriotas – provavelmente consideram que estão bem, mas que não são ricas. Em 1950, elas ganhavam 2,43 vezes mais do que a família mediana – a família situada bem no meio da distribuição de renda. Em 1980, essa proporção passou para 2,62 – ou seja, não houve uma grande mudança em 30 anos.
Mas em 2023, as famílias no percentil 95 ganhavam 3,54 vezes mais do que a família mediana. Em outras palavras, em 2023, os americanos abastados se afastaram dos que se situavam abaixo deles na distribuição de renda.
Existem várias maneiras de medir a desigualdade. Há os que preferem simples proporções como as acima apresentadas, mas há também aqueles economistas que preferem medidas mais complexas, como o coeficiente de Gini. Não vou tentar explicar como esse coeficiente funciona, mas aqui está o que ocorreu com esse índice ao longo do tempo:
Não importa qual seja a medida que se use para quantificar a desigualdade, pois a todas elas contam a mesma história: a desigualdade foi bastante baixa e estável da década de 1940 até cerca de 1980, mas aumentou dramaticamente desde então.
Quando ficou claro que a desigualdade nos EUA estava aumentando, muitos observadores tentaram negar o que estava acontecendo. Sim, a principal motivação dos negacionistas era política. Eis um artigo então publicado (1992); o seu título: The rich, the right and the facts. Nele, já se desmascarava várias formas de negação da desigualdade. Pode-se pensar que os argumentos mais obviamente falsos então ventilados teriam agora desaparecido. Mas os maus argumentos na economia da desigualdade nunca desaparecem – na melhor das hipóteses, eles permanecem ocultos por alguns anos antes de reaparecerem.
Na verdade, houve uma clara quebra na tendência por volta de 1980. A desigualdade, que se mostrava estável há três décadas pelo menos, de repente começou a subir rapidamente.
É importante ressaltar que não se tratou apenas de uma questão relativa aos quintil superior – os 20% mais ricos da população; não apenas eles estavam se afastando do resto dos 80%. Ora, ao invés disso, também se observam aumentos radicais na desigualdade entre os 20% mais ricos. Ou seja, os ricos estavam se afastando dos meramente ricos; e os ultra ricos estavam se afastando dos meramente ricos. Aqui está um gráfico impressionante produzido pelo Escritório de Orçamento do Congresso:
O que este gráfico diz é que, dentro do 1% mais rico da distribuição de renda americana, o décimo dentre os 1% mais rico estava se afastando dos outros 1% mais ricos; ademais, o centésimo dentre os 1% mais ricos estava se afastando do resto dos outros que compõem o décimo desse 1%. Ou seja, mesmo dentro do 1% mais rico, a desigualdade explodiu. Isso produz o segundo fato: os ganhos de renda têm sido maiores quanto mais se sobe na escala de renda, com enormes ganhos no topo.
Agora, mostrou-se que a distribuição de renda nos EUA permaneceu estável desde a década de 1940 até cerca de 1980. Mas nem sempre foi assim. Costuma-se chamar o período em que se vive atualmente de “nova era dourada”; reconhece-se, assim, que houve uma era anterior de extrema concentração da renda e de privilégio para os ricos. Para fins de comparação, pode-se documentar estatisticamente essa era anterior?
Muito do que se sabe sobre a desigualdade moderna vem de pesquisas que não começaram senão a partir da década de 1940. No entanto, tem-se outras fontes de dados, especialmente para indivíduos de alta renda que começaram a pagar imposto de renda nos Estados Unidos depois de 1913 e no Reino Unido muito antes.
Esses dados podem ser usados para produzir estimativas da parcela da renda que ia para os grupos de renda mais ricos no século passado. Veja-se este gráfico do Banco de Dados de Desigualdade Mundial que estima a parcela da renda total que ia para o 1% mais rico de 1909 a 2023:
Este gráfico e estimativas semelhantes mostram consistentemente alta desigualdade no início do século XX, desigualdade muito menor por várias décadas após a Segunda Guerra Mundial e, em seguida, um retorno a uma “primeira era dourada”. Então, aqui está o nosso terceiro fato: A desigualdade nos Estados Unidos seguiu um padrão em forma de U ao longo do tempo: começando de um nível alto, depois caindo e subindo para um nível alto novamente.
Note-se, ademais, que o gráfico acima mostra que a desigualdade não diminuiu suavemente durante a primeira metade do século XX. Em vez disso, declinou rapidamente, caindo de um penhasco entre o final dos anos 1930 e o final dos anos 1940. Esse padrão é repetido quando se examina outras fontes, o que mostra que não se trata de uma peculiaridade dos dados específicos que estão sendo usados.
Em um célebre artigo, os economistas Claudia Goldin e Robert Margo, usando dados salariais detalhados do Censo, identificaram esse fenômeno, que chamaram de “grande compressão”. Eles mostraram o que aconteceu entre 1940 e 1950. Eles se concentraram na proporção 90%/10% – a proporção de salários no 90º percentil em relação aos salários no 10ºpercentil – ao longo do tempo:
O que eles mostraram foi que a proporção relativa de renda entre os 90% e os 10% (por meio de várias medidas de desigualdade salarial) diminuiu repentinamente na década de 1940, depois permaneceu baixa por várias décadas antes de aumentar novamente. Isso é consistente com o que foi visto nos dados sobre a parcela da renda apropriada pelo 1% mais rico.
A distribuição de renda relativamente igualitária da América do pós-guerra não evoluiu gradualmente. Em vez disso, surgiu repentinamente, aproximadamente durante a Segunda Guerra Mundial e não desapareceu até décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Então, aqui está nosso quarto e último fato: A era da desigualdade relativamente baixa começou repentinamente, mas persistiu por décadas. Portanto, qualquer teoria que se use para explicar o aumento da desigualdade deve ser consistente com esses quatros fatos. Faz-se agora algumas perguntas.
A globalização produziu a desigualdade?
O comércio internacional cresceu rapidamente e mudou de caráter a partir da década de 1970. Até então, os Estados Unidos importavam produtos industriais principalmente de outras nações com altos salários. Compravam dos países mais pobres – o que hoje são chamamos de mercados emergentes – principalmente minerais como petróleo e produtos agrícolas como café e banana.
Nos anos 70, no entanto, um número cada vez maior de mercados emergentes começou a exportar para os EUA produtos industriais fabricados como mão de obra intensiva, como, por exemplo, as mercadorias de vestuário. Além disso, a queda dos custos de transporte causada em grande parte pela conteinerização tornou possível dividir a produção de bens como automóveis e computadores em etapas e realizar as partes intensivas em mão de obra do processo em países de baixos salários como a China ou o Vietnã.
A teoria padrão do comércio internacional diz que a importação de bens feitos por trabalhadores menos escolarizados junto com a exportação bens cuja produção requer muitos trabalhadores com diploma universitário reduz a demandados primeiros, aumentando a demanda dos segundos; ora, esse processo aumenta a desigualdade salarial. E não há dúvida de que isso aconteceu. A questão que vem em sequência pergunta como e quanto isso contribuiu para a história do aumento da desigualdade.
Existem três razões principais para acreditar que o papel da globalização foi limitado. Uma delas, que está parcialmente documentada, diz que os números simplesmente não são grandes o suficiente. (…) Basicamente, a matemática diz que a globalização não foi o principal impulsionador da desigualdade.
Uma segunda razão para duvidar da alegação de que a globalização impulsionou a desigualdade é que a globalização amplia a desigualdade ao ampliar a diferença salarial entre trabalhadores altamente qualificados e menos qualificados. Mas, embora o aumento da disparidade salarial com base na educação explique parte do aumento da desigualdade nas décadas de 1980 e 1990, a disparidade salarial na educação parou de aumentar depois de 2000, mas a desigualdade continuou a aumentar, um padrão inconsistente com a ideia de que a globalização é o principal impulsionador da desigualdade.
Então, algo mais estava acontecendo. Embora a globalização certamente tenha desempenhado algum papel no aumento da desigualdade, ela não pode ter sido a história principal.
Uma mudança tecnológica produziu a desigualdade?
Os computadores pessoais começaram a aparecer nas mesas das pessoas no início dos anos 1980. Os primeiro PCs não produziam gráficos; exibiam apenas textos na cor verde. A introdução de microcomputadores corresponde aproximadamente ao ponto em que a desigualdade nos EUA começou a aumentar.
Na década de 1990, muitos economistas, cientes de que a explicação para a desigualdade baseada na globalização era falha, argumentaram que a verdadeira explicação estava na tecnologia. Especificamente, eles sugeriram que uma “mudança tecnológica viesada” deveria “levar a culpa”; eis que ela estava reduzindo a demanda por trabalhadores menos qualificados enquanto aumentava a demanda por pessoas altamente qualificadas. Essa história foi tão difundida que os pesquisadores do campo recitavam a sigla SBTC (Skill-biased technical change), presumindo que todos sabiam o que significavam.
Em 2008, Claudia Goldin e Lawrence Katz publicaram um livro, The race between education and technology (A corrida por educação e tecnologia), colocando o SBTC no centro de sua explicação para o fenômeno. No entanto, em 2002, David Card e John DiNardo publicaram uma crítica ao SBTC e o fizeram por meio de um artigo acadêmico notavelmente contundente; eis o resumo da crítica:
Nossa principal conclusão é que, ao contrário da impressão transmitida pela maior parte da literatura recente, a hipótese do SBTC não parece suficiente como uma explicação unicausal para a evolução da estrutura salarial dos EUA nas décadas de 1980 e 1990. De fato, essa teoria apresenta alguns problemas e mesmo enigmas quando aplicada a todas as dimensões da estrutura salarial… Argumentamos que a hipótese SBTC por si só não é particularmente útil para organizar ou compreender as mudanças na estrutura dos salários que ocorreram no mercado de trabalho dos EUA.
Correndo o risco de simplificar demais a discussão necessária (que seria bem detalhada), é possível dizer que eles identificaram mais ou menos os mesmos problemas encontrados nas tentativas de explicar a desigualdade por meio da globalização. Os computadores não podem explicar por que a desigualdade continuou a aumentar, embora o prêmio salarial para a educação tenha estagnado, ou por que os 0,01% estão se afastando de todos os outros.
Há uma outra história bem diferente sobre a relação entre tecnologia e desigualdade: a hipótese conhecida como “superstar” de Sherwin Rosen. Sherwin Rosen argumentou que as tecnologias modernas, especialmente a comunicação, ampliaram o alcance de indivíduos talentosos em vários campos. Sherwin Rosen originalmente previu que comediantes, cujo público era anteriormente limitado ao número de pessoas que cabiam em um auditório, acabaria conseguindo atingir grandes audiências na TV.
Ele sugeriu que essa mudança aumentou a desigualdade entre os talentosos: os comediantes mais engraçados estariam fazendo milhões rirem na frente de suas TVs, enquanto os tipos um pouco menos engraçados ainda estariam trabalhando em auditórios com capacidade limitada.
Na verdade, há algumas evidências para essa hipótese, e ela não precisa se aplicar apenas aos artistas. Por exemplo, as telecomunicações modernas permitem que advogados famosos atuem em vários casos localmente distantes entre si mesmos?
O poder político explica a desigualdade?
Nem a globalização nem a mudança tecnológica que favorece certas habilidades são explicações adequadas para o enorme aumento da desigualdade de renda que ocorreu desde 1980. Mas, nesse caso, então, como explicá-la?
A melhor resposta foca principalmente no poder, ou seja, o poder político explícito. Houve claramente um ponto de virada na desigualdade por volta de 1980. O que aconteceu, afinal? Como observado acima, essa data corresponde aproximadamente ao surgimento da globalização do processo industrial contemporâneo. Também corresponde ao surgimento dos microcomputadores. Mas corresponde a mais um evento especial: a eleição de Ronald Reagan e uma mudança geral para a direita na política americana.
E quanto ao grande movimento em direção à redução da desigualdade – a chamada “grande compressão” – ocorrida na década de 1940, como explicá-la? Eis que Franklin Delano Roosevelt controlava o governo desde 1933 e implementava o New Deal. Ademais, a segunda guerra mundial – [e a ascensão do socialismo no leste europeu] – deu ao seu governo um poder amplamente expandido para remodelar a economia.
De qualquer forma, o poder consiste em mais do que controlar o Congresso e a Casa Branca. Ele modela também as instituições e as normas sociais que podem melhorar a posição dos trabalhadores na negociação com os empregadores; ademais, isso limita também as oportunidades para os membros da elite enriquecerem por meio da autonegociação.
O gráfico acima suscita uma tese que parece bem válida. Mesmo num relancear dos olhos, vê-se que o poder político foi uma causa importante do aumento da desigualdade que se observou a partir dos anos 1980. Ele mostra a densidade sindical – a porcentagem de trabalhadores sindicalizados – ao longo do tempo. Aponta, pois, para o fato de que a perda de poder dos sindicatos permitiu uma elevação da concentração da renda.
A correlação entre a “grande compressão” e o aumento da desigualdade pós- 1980 é óbvia. No entanto, definir as maneiras pelas quais o poder pode explicar a queda e o aumento da desigualdade requererá mais espaço e mais tempo. O mesmo acontecerá com a exposição dos problemas com esse argumento – pois ele também tem alguns pontos fracos.
* Professor de economia na Universidade da cidade de Nova Iorque (CUNY). Foi agraciado com o prêmio Nobel de Economia em 2008. Autor, entre outros livros,de A consciência de um liberal (Record). Publicado originalmente em Stone Center on Socioeconomic Inequality. Republicado em A Terra é Redonda em 09.08.2025. Traduação de Eleutério F. S. Prado.







