Urgências que colocam o país em risco
Fernando Abrucio*
Entre os grandes problemas atuais, o primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais. Países que não enfrentam urgências severas podem pagar um custo muito alto. E não se trata apenas dos efeitos mais imediatos, capazes de matar pessoas, como na pandemia de covid-19, ou gerar recessão e perda de empregos. Algumas questões prementes têm consequências temporais mais longas.
O Brasil tem hoje temas urgentes a enfrentar que podem pioraras condições de curto e de longo prazo. Se a sociedade não se mexer para tirar a classe política do modo tartaruga ou avestruz de ser, teremos uma década muito difícil pela frente, com perdas que afetarão fortemente a qualidade de vida dos cidadãos.
A procrastinação das urgências é uma marca da história brasileira. A abolição da escravatura é o melhor exemplo. O país tinha sido colonizado por um padrão escravocrata que gerara uma sociedade muito desigual, embebida na barbárie. O patriarca da Independência, José Bonifácio, já propusera em 1823 o fim gradual da escravidão, que teria terminado, se sua proposta tivesse sido aceita, na década de 1850.
Mas o fim desse modelo bárbaro só se deu em 1888, quase 40 anos depois do que imaginava o membro mais ilustrado da elite brasileira. E assim o Brasil foi o último país ocidental a sair da lista infame dos que escravizavam pessoas, com efeitos terríveis no curto prazo de então e consequências nefastas até hoje.
A resolução da questão educacional passou por um processo ainda mais longo de procrastinação. Embora a primeira legislação (Lei da Instrução Pública) seja de 1827, o acesso e permanência das crianças pobres na escola só foi efetivamente garantida depois da Constituição de 1988!
Durante mais de 160 anos, a imensa maioria da população infantil não teve suas oportunidades educacionais garantidas, gerando uma desigualdade profunda. Ou não havia vagas e infraestrutura escolar por perto ou então, e da forma mais relevante depois da Segunda Guerra Mundial, o processo pedagógico fora montado para expulsar os estudantes mais pobres dos níveis mais altos de escolarização, com taxas de repetência e distorção idade-série gigantescas, colocando o Brasil entre os líderes no fracasso escolar pelo mundo.
Ao perder o acesso às oportunidades educacionais, a grande maioria da população tinha menos chance de ascensão social. Por décadas o Brasil reproduziu essa enorme desigualdade em termos de formação escolar, com efeitos para os que viviam aquilo e para seus filhos, netos e bisnetos.
Começamos a mudar esse cenário recentemente, mas ainda há uma longa lista de urgências no campo da educação, como o investimento na primeira infância e a transformação do ensino médio numa alavanca para o desenvolvimento dos jovens.
Apesar desse triste legado, em alguns momentos o Brasil soube lidar satisfatoriamente com as urgências. Assim foi com o trabalho liderado por Oswaldo Cruz no combate à febre amarela, que reduziu drasticamente a doença num curto período de tempo, produziu reformas sanitárias e gerou uma geração brilhante de cientistas, pais fundadores do sanitarismo moderno cujo filho mais direto é o SUS, um marco civilizatório para o país.
Vargas também soube na década de 1930 criar um novo padrão de desenvolvimento de que o país precisava urgentemente, acima de tudo para tirar a nação do ruralismo arcaico e oligárquico. Contra a República Velha, a ação varguista foi essencial para a industrialização e urbanização do país.
Além disso, foram criadas as bases de uma administração pública moderna, mesmo que em apenas algumas parcelas do governo federal, mas que geraram sementes para outras transformaçõesno Estado brasileiro no século XX.
Nem toda a modernização varguista foi perfeita, pois havia incompletudes e fragilidades em seu projeto, como a ausência de um projeto educacional e seu modus operandi autoritário, depois copiado pelos militares no poder. No entanto, para os desafios daquela época, Vargas foi um grande reformador.
No período mais recente, é possível destacar dois eventos em que o sentido de urgência venceu a letargia e produziu transformações positivas. Um foi o Plano Real, que, aprendendo com o fracasso das iniciativas anteriores, gerou uma enorme mudança no padrão inflacionário do país e plantou, ao longo de alguns anos, reformas que têm garantido uma estabilidade econômica inédita na história do Brasil. Ainda há tarefas importantes no front econômico, mas sem esse passo estaríamos tal qual a Argentina de hoje, com um novo populista – no caso, extremista autoritário – tentando corrigir os erros anteriores dos populistas peronistas.
O outro exemplo é o da Constituição de 1988, que propôs um novo modelo civilizatório baseado nos direitos dos cidadãos. Deu-se um sentido de urgência ao combate das desigualdades e à construção da democracia, tarefas postergadas por quase toda a história brasileira.
Desse pacto constitucional emergiram várias reformas durante três décadas, com melhorias evidentes na vida da população. Entretanto, a realidade mudou bastante e novos (e enormes) desafios têm surgido. Só que o ímpeto reformista da redemocratização perdeu o fôlego.
O Brasil precisa recuperar o sentido de urgência frente a alguns temas para não perder o rumo da história. Entre os grandes problemas atuais, quatro se destacam pelo tremendo impacto que podem causar hoje e no futuro da sociedade brasileira. O primeiríssimo da lista é a questão ambiental e climática. A resolução dela é essencial para evitarmos uma destruição enorme de nossas estruturas econômicas e sociais. Não haverá agronegócio sem equacionarmos tal problema, bem como teremos menos águas para consumo humano, uma qualidade do ar insuportável e perda irreparável da fauna e da flora. Em suma, trocaremos a riqueza de nossa diversidade territorial pelo cenário distópico dos desastres sem fim.
Muitos chamariam esse cenário de fantasioso antes de o Brasil se transformar numa grande labareda que se espalhou por grande parte do território nacional. A necessidade de uma autoridade climática é para ontem e sua urgência deve vencer tanto os negacionistas e os que só pensam em manter seu modo arcaico de produzir riqueza, quanto os que acham que o desenvolvimento industrial e energético do século XX tem algum futuro.
A segunda urgência que assombra o Brasil atual é a do crescimento do poder e da influência do crime organizado. Quando as pesquisas constatam que os eleitores das capitais consideram a segurança pública o seu maior problema, candidatos apresentam soluções tópicas para reduzir a sensação de medo da população.
Muitas dessas propostas não estão erradas em si, mas elas contornam a causa maior da violência urbana: são grupos organizados, com franca entrada em setores estatais, que produzem os crimes em larga escala. E para manterem essa força, as facções criminosas têm entrado na política eleitoral, inclusive apoiando candidatos em grandes cidades. Será que estamos próximos de ter um Al Capone governando alguma capital brasileira?
A ação conjugada de todos os entes federativos, o investimento maciço em inteligência policial, a profissionalização de todas as organizações da segurança pública, a transformação do sistema penal e penitenciário para que ele não seja um combustível para termos mais criminosos, entre os pontos principais, são tarefas fundamentais. Mas tais reformas precisam de lideranças e de consensos mobilizadores, sem os quais o crime organizado continuará aumentando seus tentáculos.
O enfrentamento de qualquer urgência depende da melhoria da efetividade das políticas públicas. Está aqui um terceiro ponto que não tem merecido a atenção devida. Pensa-se em geral a reforma administrativa como corte de custos, o que pode ser até um dos objetivos. A tarefa maior, contudo, é melhorar o desempenho do Estado brasileiro. Além do mais, é preciso atuar em temáticas que não estão no topo das prioridades da agenda pública. O crescimento do eleitorado que apoia propostas extremistas e/ou exóticas será tanto maior quanto menos avançarmos na gestão pública.
Entra aqui a urgência das urgências, pois é o pontapé inicial para a mudança: a democracia brasileira tem sido garantida pelas instituições e pelos atores políticos, porém tornou-se fracamente reformista num cenário de grandes desafios.
Boa parte da classe política precisa ser retirada de seu mundo paralelo e ensimesmado, cheio de recursos públicos e formas de proteção frente aos controles social ou institucional, lidando com os problemas efetivos do país pela combinação do modo tartaruga com o comportamento avestruz.
Na verdade, esse é um retrato que capta mais a arena congressual e dos partidos. No caso do Executivo federal, falta uma combinação de inovação, ousadia e poder para lidar com o seu novo lugar no presidencialismo de coalizão. Daí que a mola que poderia alterar essa situação está na organização da sociedade. O problema é que ela está cada vez mais fragmentada e seus grupos organizados têm, em geral, dificuldades hoje de apresentar uma visão mais global que ultrapasse os seus interesses imediatos.
De todo modo, o sentido de urgência precisa ser recuperado para evitar a perda das conquistas dos últimos 30 anos. Seria preciso recuperar a conexão entre uma sociedade civil, no sentido que havia na redemocratização, com a classe política. Tarefa muito complexa, mas que já não pode ser mais adiada.
Referências bibliográficas
*Professor de Ciência Política da FGV-SP. Artigo publicado originalmente no Jornal Valor Econômico, em 20.09.2024