A covid-19 em Santa Catarina e as falácias do governador

27/12/2020 10:31

Por Lauro Mattei[1]

No dia 23.12.2020 o estado de Santa Catarina já tinha registrado que 472.199 pessoas haviam sido contaminadas pela COVID-19, sendo que 99.654 delas foram contaminadas apenas no mês de dezembro. Além disso, 4.885 pessoas tinham perdido a vida, sendo 1.076 delas apenas nos primeiros vinte e três dias do referido mês. Esses dados revelam a gravidade da situação da doença no estado, o qual apresenta a terceira maior proporção de casos do país, quando feita a proporcionalidade por cada 100 mil habitantes.

Nesse mesmo dia, o governador de SC foi entrevistado no Jornal do Almoço, do Grupo NSC. Tal entrevista foi marcada por respostas evasivas, contraditórias e, até mesmo, distantes da realidade da doença no estado. Neste sentido, esse artigo tem por objetivo discutir muitos pontos controversos apresentados pelo governador, além de apresentar informações oficiais que contradizem a própria fala do referido governador.

Falácia 1: O governador iniciou sua entrevista afirmando, em resposta à fala de um dos entrevistados do programa, que não há contradições em suas ações e que as mesmas eram guiadas pela coerência. Ora, qualquer pessoa minimamente esclarecida que tenha acompanhado as intervenções do governo estadual desde o início da pandemia percebe rapidamente que a grande maioria das ações foi marcada por incoerências e contradições. Bastam apenas dois exemplos. O primeiro deles foi a decisão, ainda nos primeiros meses da pandemia, de repassar as responsabilidades pelo controle da doença aos administradores municipais, ação idêntica àquela adotada pelo governo federal que anteriormente tinha repassado suas responsabilidades aos governos estaduais. O segundo exemplo pode ser observado recentemente quando da publicação do Decreto 1.027, em 18.12.20, que flexibilizou totalmente um conjunto de atividades sociais e de serviços. Tal decreto caminha na direção contrária às medidas adotadas por diversas portarias publicadas em 18.09.20 pela Secretaria de Estado da Saúde, quando o cenário era bem mais favorável, uma vez que a média semanal móvel era de 900 casos diários. Registre-se que em 18.12.20 a média semanal móvel era superior a 4.500 casos diários, patamar que requeria medidas mais restritivas àquelas adotadas em setembro, mas o que se viu foi exatamente o contrário. Se isso não é uma contradição, o que seria!

Falácia 2: Em todas as suas manifestações públicas o governador tem afirmado que SC é o estado com a melhor gestão da Covid-19 no país. Tal afirmação está amparada em uma pesquisa de empresa de marketing cuja metodologia é desconhecida e sua credibilidade, no mínimo, pode ser questionada. Portanto, é importante rememorar um pouco a trajetória da política estadual de combate à Covid-19, uma vez que Santa Catarina adotou as medias recomendadas pela OMS ainda em 17.03.20, quando a incidência da doença no território catarinense ainda era bem baixa (menos de mil casos registrados). Todavia, logo no início do mês seguinte (abril) – diante de pressões de setores econômicos – foram sendo flexibilizadas todas as normas, chegando-se ao ponto de não se ter mais uma política coordenada pelo governo estadual nos meses seguintes, fato que resultou numa explosão da doença entre junho e agosto, inclusive, com milhares de óbitos. Após um pequeno arrefecimento no mês de setembro, a doença voltou com mais força ainda a partir do início de outubro, mês que teve início um processo de flexibilização de diversas medidas de controle da pandemia, cujo ápice ocorreu com o decreto 1.027. Decorrente dessa forma de atuação, Santa Catarina passou a ocupar o 4º lugar dentre as unidades da federação com maior número de casos confirmados e 11º posto com maior número de mortes. E ainda assim, tanto o governador como o secretário estadual de saúde, continuam repetindo o surrado bordão: “Santa Catarina se mantém como o melhor exemplo de combate à pandemia no país”. E olha que nem estamos levantando em consideração o problema da corrupção, afinal até hoje o governo estadual não explicou onde foi parar a verba pública de R$ 33 milhões que deveria ser aplicada no combate à pandemia. Além disso, existem inúmeras manifestações de entidades científicas do estado que, por diversas vezes, denunciaram os equívocos da política e das medidas adotadas pelo governo estadual. Portanto, está na hora do governador “cair na real” e perceber que a realidade da pandemia em dezembro é muito diferente daquela observada em 17.03.20 e que efetivamente SC não tem feito uma “gestão de excelência”, como se quer propalar.

Falácia 3: Por diversas vezes em suas respostas evasivas, o governador afirmou que a regra é a liberdade individual, justificando que não podia interferir na liberdade das pessoas, deixando claro que a liberdade do cidadão é o princípio que baliza suas ações. Além de registrarmos que esse é o mesmo discurso que está sendo usado desde o princípio pelo Presidente da República para se isentar de responsabilidades pela adoção de medidas necessárias para controlar a pandemia, destacamos que essa postura do governador carece de alguns fundamentos básicos. Em primeiro lugar, é amplamente aceita no âmbito nacional e mundial que diante de guerras, catástrofes e pandemias – como é o caso atual – o direito coletivo se sobrepõe ao direito individual, uma vez que quem deve prevalecer são as ações em defesa do conjunto da sociedade e não as dos indivíduos em particular. Nota-se aqui uma clara inversão de valores por parte da autoridade governamental, inversão esta que pode estar atrelada à defesa de interesses de setores econômicos que livremente exercem seus lobbies. Isso ficou bem visível na carta de apoio à flexibilização geral adotada em 18.12.20 divulgada apenas por parte de setores empresariais. Todavia, se ficarmos no próprio enredo do governador, percebemos imediatamente algumas contradições nessa defesa infalível do “direito individual”. Em segundo lugar, nota-se que, quando da adoção das medidas em março de 2020, esse direito parece não ter existido e/ou não ter sido considerado, uma vez que, corretamente, prevaleceram as orientações científicas. Em terceiro lugar, devemos questionar onde fica o direito individual das pessoas que ao longo de todos esses meses cumpriram fielmente as recomendações básicas das autoridades da saúde e que, diante dessa liberalização geral, estarão sujeitas à contaminação pela doença. Chega a ser risível a resposta do governador quando questionado sobre esse ponto, pois afirmou que no início esse direito não foi respeitado porque não se sabia o que fazer sobre a doença, mas que agora o estado tem regras claras. Com isso, finalizou sua resposta afirmando que a meta do governo estadual é preservar as vidas, porém a partir da liberdade individual de se fazer escolhas.

Falácia 4: quando questionado sobre o elevado número de casos em SC, o governador respondeu que “esses dados mostram nossa eficiência porque quanto mais testamos, maior é o número de casos” e que “estados que testam menos podem ter um falso número de casos”, além de que “todos os números de casos mentem”, sendo que apenas “o número de óbitos é o que não mente”. Essas afirmações, além de desconsiderar e desacreditar o próprio trabalho das equipes técnicas dos órgãos estaduais que diariamente sistematizam as informações sobre a COVID-19 em SC, representam uma leitura muito equivocada da realidade, uma vez que nenhum número tratado seriamente mente senhor governador. Coincidentemente, no dia 23.12.20 o IBGE divulgou a PNAD COVID-19 relativa ao mês de novembro.  Tal instrumento numérico revelou que apenas 12% da população catarinense tinha realizado algum teste até aquela data, percentual que em termos absolutos representava 870 mil pessoas dentre os 7,2 milhões de catarinenses. Com isso, o estado ocupava o 19º lugar dentre as unidades da federação que realizam testagem de suas populações, sendo o Distrito Federal a unidade que mais testou sua população (25,6%), enquanto a média nacional da população testada ficou em 13,5%. Portanto, senhor governador, mesmo com o baixo percentual de testagem, os números explosivos dos últimos meses mostram a realidade da pandemia no estado, a qual parece não ter sido vista adequadamente pela lente da autoridade máxima do estado. Além dessas informações, é importante observar o comportamento de mais alguns indicadores, cujos resultados contradizem essa fala do governador. Por exemplo, a velocidade do contágio em SC, ao apresentar 10 mil novos casos a cada dois dias, é uma das maiores do país; a média semanal móvel nos últimos dois meses situou-se entre 4.500 e 5.000 casos diários, um dos maiores patamares do país; a taxa efetiva de transmissão da doença (Rt) desde setembro está acima de 1, patamar que indica a necessidade de medidas restritivas para controlar a doença; a proporção de casos para cada 100 mil habitantes em Santa Catarina é a terceira maior do país, etc. Portanto, governador, esses números, ao contrário do que o senhor pensa, espelham a dura realidade do povo catarinense diante da Covid-19.

Falácia 5: Ao ser questionado se estava tendo dificuldades políticas para tomar novas decisões mais restritivas, o governador afirmou que não tinha nenhuma dificuldade sobre  a adoção de novas medidas nesta direção. Mas que suas atitudes eram marcadas pela coerência e se propunham a dar um tratamento isonômico a todos.  Como exemplo, justificou que não fazia sentido proibir atividades em igrejas, cinemas e outros eventos privados se estavam ocorrendo eventos públicos, Por isso, entendia que não se devia ideologizar o assunto. Assim, se estão ocorrendo eventos públicos regrados, não via nenhuma razão para não aprovar também eventos particulares, bem como outras atividades privadas. Neste caso, destacou que a liberação de 100% das atividades na área de hotelaria foi adotada por entender que qualquer restrição provocaria atividades clandestinas nesta área. Todos esses pontos são facilmente questionáveis, uma vez que um erro não justifica outro, ou seja, nem eventos públicos e nem privados deveriam estar acontecendo diante da escalada da contaminação no estado, especialmente nos níveis verificados nos meses de novembro e dezembro. Além disso, nos parece um disparate querer justificar a liberação de toda a ocupação da capacidade da rede hoteleira como forma de inibir a prática da clandestinidade, como se isso de fato fosse o problema e não o pesado lobby desses setores desde o início da pandemia quando medidas restritivas foram adotadas. Basta citar a troca de afagos entre o governador e as representações desses lobbies, inclusive de forma pública, quando o governador afirmou que estava conseguindo preservar vidas (será?) e, ao mesmo tempo, retomar as atividades econômicas. Nota-se que mais uma vez imperou o simplismo da falsa dicotomia entre saúde versus economia.

Falácia 6: Diante do questionamento de que integrantes da equipe técnica não foram consultados sobre as medidas adotadas recentemente, o governador foi categórico em afirmar que “todas as opiniões sempre foram ouvidas e continuam sendo, porém que o estado não segue posições técnicas individuais”. Desde o início da pandemia ficou visível o descompromisso das decisões governamentais com os preceitos da ciência, bem como de orientações emanadas por parte de equipes técnicas das áreas de saúde de universidades que não integram a equipe do governo estadual. Além disso, o governador sempre se vangloriou que suas ações estiveram balizadas pela ciência, destacando os estudos do Imperial College de Londres como sua referência. Na verdade, essa referência internacional em estudos epidemiológicos afirma que, no caso da Covid-19, quando o número de transmissão da doença (Rt) estiver acima de 1 devem ser adotadas medidas restritivas para se achatar a curva de contágio, sendo recomendável flexibilizar medidas de isolamento social e de restrições econômicas somente quando esse indicador estiver estabilizado ao redor de 0,80. Neste caso, nos parece que o governador esqueceu-se dessa segunda parte, uma vez que desde o início de outubro o Rt de Santa Catarina está acima de 1, exigindo, portanto, novas medidas restritivas, caso de fato estejam sendo seguidas as normas desse centro internacional de pesquisas.

Falácia 7: Na esfera econômica, e sem qualquer base empírica, o governador afirmou que Santa Catarina não teve o desemprego esperado e que a economia catarinense estava crescendo o dobro da economia brasileira. Por isso, entendemos que é importante fazer umas ressalvas a essas afirmações com base nas informações oficiais fornecidas, tanto pelo IBGE como pelo próprio Ministério da Economia do país. Quanto ao emprego duas considerações são necessárias. Do ponto de vista do emprego formal (aquela parcela com contrato formal de trabalho) verifica-se que somente no mês de outubro o estado retornou ao patamar verificado anteriormente ao início da crise, sendo que alguns setores, inclusive, continuam com saldos negativos no acumulado do ano. Já do ponto de vista do emprego geral, dados recentes divulgados pela PNAD Continua do IBGE revelaram que ao longo de todo o ano de 2020 foram perdidos aproximadamente 215 mil ocupações no estado de Santa Catarina. Quanto ao crescimento econômico do país, os dados oficiais são muito precisos. Mesmo com resultado bastante positivo do PIB no terceiro trimestre, verifica-se que a economia brasileira encontra-se na mesma situação de 2017, com uma perda acumulada de 5,1% em relação ao mesmo período do ano anterior (janeiro-setembro), ou seja, o PIB atual ainda está 3,9% abaixo do verificado em setembro de 2019. Com isso, as projeções para o ano de 2020 indicam um resultado negativo da ordem de 4,5%, fato que poderia comprometer inclusive o desempenho para o ano de 2021, cujo crescimento está projetado em apenas 1%. Esses dados revelam que a informação prestada pelo governador de que a economia catarinense “está crescendo o dobro da economia brasileira” não passa de um mero chute, muito ruim por sinal.


Ao final, o governador repetiu que as ações do governo estadual foram eficientes, representando um trabalho vitorioso. Para tanto, cita como referência para essa eficiência o fato do estado possuir a menor taxa de letalidade do país. Portanto, acredita que foi feito tudo o que poderia ter sido feito. E que de agora em diante “somente um milagre de Deus”.

Na verdade, avaliamos que quando o estado atinge praticamente o patamar de 5 mil vidas perdidas pela Covid-19 não há nada a se comemorar, ao contrário, temos muito a lamentar que se tenha chegado a esse ponto, uma vez que parte expressiva desses óbitos poderia ter sido evitada.

Mas para não ficarmos apenas no único indicador que o governo do estado utiliza como positivo, e se quisermos qualificar um pouco mais esse debate, é importante também considerar a proporcionalidade dos óbitos em relação a cada 100 mil habitantes. Neste caso, Santa Catarina apresenta a quinta menor proporcionalidade do país.


[1] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br