A fome atinge aproximadamente 900 mil pessoas em SC

20/09/2022 10:57

Lauro Mattei*

Há mais de um século sabemos que a fome não é obra da natureza. Desde o clássico livro “Geografia da fome: o dilema brasileiro – pão ou aço”, de Josué de Castro e com primeira edição publicada em 1946, sugere-se que esse fenômeno social seja debatido à luz dos ensinamentos desse autor. Para ele, a fome não era resultado da expansão da população e nem do quantitativo de alimentos disponível, mas sim das relações sociais perversas que levavam à conformação de sociedades extremamente desiguais em diversas partes do mundo em função da má distribuição da riqueza, cada vez mais concentrada. Além disso, o autor destacou no início de sua obra que interesses e preconceitos de ordem moral, econômica e política da chamada “civilização ocidental” tornaram a fome um tema proibido ou até mesmo de difícil abordagem.

A partir daí alguns mitos passaram a ser questionados, especialmente os de ordem natural e aqueles de ordem social. Os primeiros ancoravam as explicações do fenômeno à luz das influências climáticas sobre a estrutura de produção alimentar, enquanto os de ordem social procuravam culpabilizar a própria população faminta responsabilizando-a pela situação em que se encontrava, uma vez que os famintos eram pessoas que viviam no ócio e sem produzir nada. Infelizmente, alguns segmentos sociais ainda continuam utilizando tais argumentos nos dias atuais.

No caso brasileiro, recorrentemente esse tema tem tido espaço na agenda política nacional. Por exemplo, na última década do século XX o país assistiu a uma campanha inédita de mobilização da sociedade em prol do combate à fome que naquele momento se expandia fortemente em todas as unidades da federação. Tal crescimento do fenômeno decorria dos problemas econômicos, sociais e políticos da época, em especial da inflação e do desemprego em taxas elevadas e da perda de poder de compra dos trabalhadores. Tal movimento nacional liderado pelo sociólogo Betinho se assentou no lema de que “quem tem fome tem pressa”.

Mesmo diante de um conjunto de políticas públicas destinadas à erradicação desse flagelo social que foram implementadas nas duas décadas seguintes, o problema não foi efetivamente solucionado no país. Portanto, a pandemia provocada pelo novo coronavírus apenas recolocou o tema na agenda política nacional, inclusive chamando atenção para a gravidade da situação em muitas localidades. Assim, a partir de 2020 a sociedade brasileira passou a conviver cotidianamente com cenas terríveis, como aquelas reveladas pelas emissoras de televisão e pelas redes sociais mostrando as enormes filas de pessoas para comprar osso em açougues ou então das pessoas correndo atrás de caminhões de lixo para catar restos de alimentos.

Diante desse cenário, a Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) realizou seu primeiro “Inquérito” sobre o assunto no mês de dezembro de 2020. Tal trabalho evidenciou que os efeitos da pandemia provocada pelo novo coronavírus iam muito além de uma crise sanitária, uma vez que estavam sendo realçados problemas estruturais em várias esferas, especialmente nas áreas econômica e social. Particularmente nesta última, o problema histórico da fome e da insegurança alimentar foi reposto, uma vez que após a incidência da Covid-19 na sociedade brasileira a partir de 2020 observou-se que 19% da população estava passando fome, enquanto outros 55% estavam sob a condição de insegurança alimentar, percentuais que estavam indicando que as privações causadas pela pandemia do Coronavírus se somaram a pandemias associadas ao empobrecimento e às desigualdades já instaladas na sociedade brasileira. Tal estudo mostrou, ainda, que o cenário dominado pelo “vírus da fome” não era resultado apenas da Covid-19, mas também de políticas do atual governo que desmantelaram o precário sistema de proteção social do país, particularmente das políticas públicas destinadas à promoção da segurança alimentar e nutricional da população brasileira.

Entre os meses de novembro/21 e abril/22 foi realizado o IIº Inquérito Vigisan, cujos resultados agregados para o país foram divulgados no mês de julho/22, enquanto os resultados para cada unidade da federação foram divulgados em 12.09.2022. No âmbito do país, esse novo estudo mostrou que 33,1 milhões de pessoas estavam passando no corrente ano. Em termos percentuais, esse número representou um aumento de 74% em relação aos valores registrados no Iº Inquérito Vigisan de 2020. De um modo geral, as informações desse segundo estudo mostraram que a renda continua sendo um fator determinante para a segurança alimentar, uma vez que aproximadamente 37% das famílias em condição de insegurança alimentar detinham uma renda per capita média de até ½ salário mínimo mensal. Isso implica considerar que, para além da Covid-19, a expansão da fome nos dois últimos está associada ao desmonte das políticas públicas praticado pelo governo Bolsonaro na esfera alimentar e nutricional, bem como aos efeitos negativos das políticas econômicas, especialmente do aumento da inflação, do desemprego e dos juros.

Em termos metodológicos, a Insegurança Alimentar (IA) é definida a partir de três parâmetros distintos. Assim, a IA grave existe quando as pessoas de uma família efetivamente não tiveram o que comer ou somente fizeram uma refeição ao dia. Esta é uma situação clara em que a fome está instalada naquele domicilio, uma vez que as pessoas não conseguem comprar alimentos por falta de dinheiro. Já a IA moderada ocorre quando as pessoas até podem comer algum alimento, mas a dieta alimentar é insuficiente. Esta é uma situação em que há uma ruptura com o padrão de alimentação anterior. Finalmente, a IA leve aparece quando as famílias informam ter incerteza sobre o acesso aos alimentos no futuro, ou seja, que o estoque de alimentos acabe antes que outros sejam adquiridos, seja por falta de renda, seja por falta de acesso ao mercado alimentar.

A novidade do II Inquérito Vigisan é que foi possível tabular e interpretar separadamente as informações coletadas para todas as unidades da federação. Tal procedimento permite observar as diferenças regionais, uma vez que espacialmente a fome se manifesta com magnitudes distintas, tendo em vista as marcas históricas e as condições econômicas e sociais que se acentuaram ao longo do tempo. Assim, nota-se que a região Sul do país, que possui o menor índice de IA, também apresentou aumento em todas as categorias que fazem parte desse indicador.

Particularmente no caso de Santa Catarina, a pesquisa da Rede Penssan revelou que 59,4% dos domicílios estavam em situação de Segurança Alimentar (SA), enquanto 28,4% estavam em situação de IA Leve; 7,6% em situação de IA Moderada e 4,6% com IA Grave. Em termos absolutos, esses percentuais correspondiam a 2.091 mil pessoas com IA Leve; 558 mil pessoas com IA Moderada e 338 mil pessoas com IA Grave. Em termos metodológicos, a pesquisa recomenda que as informações de cada unidade da federação sejam analisadas agrupando-se as formas mais severas de IA (Moderada + Grave) em apenas uma categoria de análise, o que significa juntar os domicílios com quantidade alimentar insuficiente (dieta alimentar insuficiente) com aqueles domicílios que claramente já se encontram em estado de fome. Por esse procedimento, no estado de Santa Catarina existiam 896 mil pessoas em estado de fome.

Além disso, quando se considera as famílias com renda per capita mensal de até ½ salário mínimo, nota-se que há uma correspondência forte entre os casos de IA Moderada e IA Grave com baixos rendimentos familiares, mesmo em unidades da federação com Insegurança Alimentar menor, como é o caso de Santa Catarina. Nesta unidade da federação, verifica-se que 65,7% dos domicílios com renda de até ½ salário mínimo se situam na condição de IA Moderada ou IA Grave. Nos demais estados da região Sul, o percentual do Rio Grande do Sul é 64,4%, enquanto o do Paraná é 47%. Ou seja, SC apresenta a pior condição para este quesito na região Sul do país.

Esses indicadores (renda e fome) revelam a materialidade das desigualdades sociais existentes em Santa Catarina que afetam a vida de milhares de pessoas e que não podem ser encobertas pela narrativa do “estado de excelência”, comportamento típico das elites econômicas e políticas do estado que vem se propagando por décadas e se disseminando, inclusive, para o restante do país. As estatísticas são claras: há uma parcela expressiva da população catarinense deslocada para a condição precária de sobrevivência, a qual vive desprovida de acesso aos bens elementares (saúde, educação, moradia e serviços sanitários adequados, etc.), além de obter uma renda mensal insuficiente sequer para adquirir a cesta básica alimentar. Portanto, são justamente essas camadas sociais que precisam ter maior acesso às políticas públicas, tanto do Governo Federal como do Governo estadual.


* Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br Artigo escrito em 16.09.2022