A fraqueza dos EUA e o desmonte da União Europeia

04/06/2025 15:47

José Luís Fiori* 

Trump não criou o caos global, apenas acelerou o colapso de uma ordem internacional  que já vinha ruindo desde os anos 1990, com guerras ilegais, falência moral do  Ocidente e a ascensão de um mundo multipolar 

Primeiro 

Ao se completarem os cem primeiros dias do governo de Donald Trump, um  importante site de notícias brasileiro publicou na primeira página, ecoando boa parte da  imprensa ocidental, que “em 100 dias Donald Trump provocou o caos e abalou a ordem  mundial”. Isso é apenas parcialmente verdadeiro, uma vez que a desmontagem da  “ordem internacional” do Pós-Guerra Fria começou muito antes que Donald Trump  fosse eleito pela primeira vez, em 2016. 

O desmonte começou em 1999, quando os EUA e seus aliados da OTAN  desautorizaram as Nações Unidas, e atacaram e destruíram a Iugoslávia sem sua  aprovação. E mais ainda, quando os EUA e a Grã-Bretanha atacaram o Afeganistão e o  Iraque, em 2001 e 2003, contrariando a posição do Conselho de Segurança da ONU,  principal órgão de “governança global” que eles mesmos haviam criado em 1945. 

Esse processo de descrédito e desestruturação se agravou com o fracasso da  “guerra global ao terrorismo”, declarada pelos EUA em 2001 e travada de forma quase  contínua durante 20 anos, destruindo países e matando milhares de habitantes islâmicos  do Oriente Médio, sem nenhum tipo de autorização da chamada “comunidade  internacional”. 

Não há dúvida de que o abalo definitivo da ordem vigente ocorreu quando as  tropas russas invadiram o território ucraniano, depois de EUA, OTAN e União Europeia  rejeitarem um ultimato russo que exigia a desmilitarização da Ucrânia e a revisão do  mapa geopolítico europeu, que havia sido imposto à Rússia pelas “potências vitoriosas”  e a OTAN a partir de 1991. 

Hoje, quando se olha com a perspectiva do tempo passado, percebe-se melhor  que no dia 21 de fevereiro de 2021, se deu a ruptura definitiva dessa ordem euro americana. Naquele momento surgiu uma potência – dentro do sistema mundial – que  ousou desobedecer e desafiar, com suas próprias armas, as tropas ucranianas e o poder militar e financeiro dos EUA, da OTAN e da União Europeia, envolvidos numa  verdadeira “guerra por procuração” contra a Rússia. 

Os russos alcançaram uma vitória militar exponenciada pelo fracasso do ataque  econômico massivo desfechado por essas mesmas potências do G7 e da Aliança do  Atlântico Norte. Duas vitórias que desmoralizaram definitivamente a ideia da  superioridade militar e econômica do “Ocidente” com relação ao “resto do mundo”. 

Quase na mesma hora em que o massacre israelense, absolutamente cruel e  insano, da população palestina da Faixa de Gaza, feito com as armas e o financiamento  dos EUA, e com a cumplicidade silenciosa de seus aliados europeus, liquidou também o  que restava da ideia da “excepcionalidade moral” da “civilização judaico-cristã” que  serviu de fundamento ético da hegemonia cultural do “Ocidente”. 

Segundo 

Foi nesse contexto, e após a grande crise financeira de 2008, que pôs em xeque a  utopia da globalização econômica, que surgiu politicamente a figura de Donald Trump,  o “grande jogador”. Sua vitória em 2016 e reeleição de 2024 são parte dessa mesma  crise e desintegração da “hegemonia ocidental”. Sua figura é indissociável da sua crítica  veemente do “globalismo liberal” e de sua proposta de reorganização da política externa  americana a partir da força e do interesse nacional dos EUA, sem maiores pretensões  morais ou catequéticas. 

E não há a menor dúvida de que a política e a estratégia nacional e internacional  de Donald Trump vêm contribuindo decisivamente para aumentar o caos e a desordem  dentro e fora da sociedade americana. Mais do que isto, a intenção declarada de Donald  Trump é destruir o que sobrou da “ordem liberalcosmopolita” ou “globalista” do pós 91, e apostar num novo tipo sistema de correlação de forças internacionais baseado  apenas no poder e nas negociações mercantis, sem nenhum tipo de utopia universalista. Deixando de lado o “histrionismo volátil” de Donald Trump, para poder  entender melhor sua aposta geopolítica no campo internacional, o que mais se destacou  nos primeiros meses do governo Trump foi exatamente sua crítica inclemente do  “globalismo liberal” e o ataque direto contra seus próprios vizinhos, aliados e vassalos – como no caso do Canadá e do México, e do Panamá e da Groenlândia – e de forma  ainda mais surpreendente e disruptiva, contra seus aliados europeus da União Europeia  e da OTAN.

E ainda, seu ataque contra as instituições e organismos multilaterais criados  depois da Segunda Guerra Mundial para administrar a hegemonia mundial dos próprios  EUA. Culminando com o “tarifaço universal” de Donald Trump contra todos os países  do mundo e, em particular, contra a China e a própria Europa, visando reorientar o  comércio internacional e redesenhar o mapa produtivo do mundo. 

De todas as suas iniciativas, entretanto, a mais heterodoxa foi sem dúvida a  reaproximação e abertura de negociações com a Rússia, para acabar com a guerra da  Ucrânia e trazer a Rússia para dentro dos circuitos produtivos, mercantis e financeiros  do G7, na contramão da “russofobia” dos europeus. A tal ponto que chegou a  reconhecer e denunciar a responsabilidade de Joe Biden e da OTAN pela própria Guerra  da Ucrânia, antecipando a vitória inevitável da Rússia e defendendo a necessidade da  paz para que os russos não simplesmente não acabem com a Ucrânia. 

Deixou no ar, inclusive, a possibilidade de que os EUA abandonem, no médio  prazo, seu compromisso de “defesa mútua” incondicional, com relação aos países da  OTAN. 

Terceiro 

Existe, no entanto, outro aspecto menos notado, mas igualmente importante  desses primeiros 100 dias de governo: a percepção cada vez mais nítida de que Donald  Trump não dispõe do poder que imaginou ter inicialmente, ao se propor a reorganizar o  mundo de forma unilateral. 

Foi o que aconteceu no ataque econômico contra a China, que encontrou uma  resposta inesperada, dura e agressiva. Os chineses não se intimidaram nem se  submeteram, e acabaram impondo aos norte-americanos um recuo e uma negociação em  pé de igualdade, e nos termos exigidos pelo governo chinês. 

Algo parecido com o que passou com a apressada tentativa americana de  pacificação da Ucrânia, que entrou em choque com a resistência do seu próprio vassalo,  e muito mais ainda, com a posição firme da Rússia em defesa de uma renegociação mais  ampla do mapa geopolítico da Europa, que lhe havia sido imposto em 1991, e das  próprias bases da nova ordem internacional que russos e chineses também consideram  que deva ser reconstruída. 

E o mesmo deve ser dito sobre a resistência demonstrada pelo Irã na defesa de  seu programa nuclear, a despeito das reiteradas ameaças apocalípticas de Donald Trump. Para não falar do recuo do governo Donald Trump frente à corajosa resposta do  México, ou mesmo seu fracasso em impedir que os países do seu “quintal latino americano” comparecessem em peso ao 4º Fórum Ministerial China-CELAC, em  Pequim, neste mês de maio, uma das mais importantes inciativas de cooperação  multilateral do Sul Global. 

Do nosso ponto de vista, a fraqueza demonstrada pelos EUA de Donald Trump tem contribuído também, e de forma decisiva, para o desaparecimento quase completo  de qualquer tipo de limites, regras, instituições e árbitros capazes de impedir que a  guerra se transforme no meio mais comum e natural de “solução” de todo e qualquer  conflito internacional. 

É o que está acontecendo no caso dos ataques de Israel contra o Líbano, a Síria,  e o Iêmen; e no caso dos ataques do Iêmen contra os navios “inimigos” que atravessam  o Mar Vermelho; e ainda dos ataques massivos dos EUA e da Grã-Bretanha contra o  Iêmen, da mesma forma que na disputa fronteiriça entre a Índia e o Paquistão. 

Assim mesmo, quando se olha com mais cuidado para essa “desordem no  mundo”, percebe-se que ela se concentra muito mais nas zonas de “influência  ocidental”, ou das potências do Atlântico Norte que dominaram o mundo nos últimos  200 anos, do que no “lado oriental” do sistema mundial. Sobretudo porque essa  desordem vem sendo produzida pela erosão do poder militar e da liderança econômica e  moral das “potências ocidentais”. 

Por isso mesmo, pode-se afirmar que o fim do caos e da desordem no mundo só  ocorrerá com a construção e consolidação de uma nova ordem internacional. Esse é um  processo que passará, inevitavelmente, pela redefinição das relações entre esses “dois  mundos”. Com certeza, haverá avanços e recuos, mas essa construção tomará muitas  décadas e envolverá ainda muitos conflitos e guerras, mas já não será mais uma ordem  tutelada pelos EUA, nem muito menos pela Europa. Isto acabou. 

Quarto 

O processo de unificação da Europa começou com a assinatura do Tratado de  Roma, em 1957, e atingiu seu apogeu com a assinatura do Tratado de Maastricht, em  1992, um pouco depois da criação do Euro, em 1999, e da reunificação da Alemanha,  em 1990.

E este foi, com certeza, um dos projetos utópicos mais importantes do Século  XX: com a sua proposta de pacificar e unificar um sistema de poderes territoriais e de  Estados nacionais que competiram e guerrearam entre si, de forma quase contínua,  durante 800 anos. Destacando-se o fato de que este projeto de desmontagem desta  verdadeira “máquina de guerra europeia” só foi possível depois das duas Grandes  Guerras do século XX, que mataram cerca de 100 milhões de europeus. 

Não é de estranhar, portanto, que este processo de construção da União Europeia  tenha enfrentado grandes limitações e contradições, que bloquearam de forma quase  permanente o seu avanço e a plena realização do seu ideal unitário. Para começar, a  União Europeia foi sempre extremamente heterogênea e desigual, e nunca logrou  constituir um “poder central” com capacidade de impor sua vontade e suas decisões  estratégicas ao conjunto dos Estados-membros. 

Menos ainda, depois de 1991, quando os europeus foram obrigados a incorporar,  de forma apressada e desorganizada, os países do Leste Europeu, do antigo Pacto de  Varsóvia. Além disto, a União Europeia não tem, e nunca teve, um orçamento fiscal  unificado que lhe permita tomar decisões e implementar políticas econômicas e  estratégicas, de curto, médio, e longo prazo, que lograssem diminuir a desigualdade  interna dos seus Estados-membros. E além disto, depois de 1991, tornou-se uma  “organização caolha”, que passou a ter uma moeda única, sem ter um orçamento fiscal  unificado. 

Por fim, mesmo depois da assinatura do Tratado de Maastricht, a União  Europeia nunca teve uma política externa comum, soberana e ativa, e muito menos uma  política de segurança e defesa que fosse administrada pelos próprios europeus. Na  verdade, depois da Segunda Guerra Mundial, e mais ainda depois da assinatura do  Tratado do Atlântico Norte, em 1949, o continente europeu delegou sua soberania  militar para os EUA, e transferiu a responsabilidade de sua defesa para a OTAN. 

Ou seja, do ponto de vista do Sistema de Westfália, os Estados nacionais  europeus se transformaram em “vassalos militares” do EUA, submetendo-se à sua  estratégia global de contenção da União Soviética e de combate ao comunismo ao redor  do mundo. 

Não é casual, portanto, que o Tratado de Maastericht só tenha sido possível  depois do fim da Guerra Fria, que permitiu a unificação da Alemanha. Mas,  paradoxalmente, o fim da URSS e a reunificação da Alemanha também podem ser considerados com o momento inicial de um processo inverso, de desmontagem  progressiva da União Europeia. 

Em grande medida, devido ao desaparecimento do “inimigo comum” que ajudou  a mantê-la unificada até 1991, mas graças também ao “retorno” da Alemanha à  condição “maior país”, e maior potência demográfica e econômica da Europa. Depois  de ter sido o pivô das duas grandes guerras mundiais do século XX, na condição de  inimiga direta da URSS, da França e da Grã-Bretanha. 

Quinto 

Em 2003, Alemanha se opôs abertamente à invasão do Iraque pelas tropas dos  EUA e da Grã-Bretanha, levada à frente sem a aprovação do Conselho de Segurança da  ONU. Logo em seguida, em 2005, a França, a Holanda, e a Irlanda rejeitaram um  projeto de Constituição da Europa, proposto e engavetado pelo Conselho da União  Europeia. Por sua vez, na crise financeira de 2008, a Alemanha voltou a divergir da  França e, sobretudo, da Grã Bretanha que acabou tomando uma posição isolada dentro  do grupo. 

E uma vez mais, no mesmo ano de 2008, os europeus se dividiram frente à  proposta norte-americana de incorporação da Geórgia e da Ucrânia à OTAN, apoiada  pela Grã-Bretanha, mas rejeitada pela Alemanha. E em 31 janeiro de 2020, finalmente,  a Grã Bretanha decidiu abandonar a União Europeia, abrindo um precedente que vem  ecoando até hoje em vários outros países da comunidade. 

Mas não dúvida que esta divisão interna da União Europeia adquiriu uma  dimensão completamente diferente depois que os EUA, a OTAN e vários governos  europeus se envolveram e apoiaram o Golpe de Estado que derrubou o presidente da  Ucrânia, Viktor Yanukovich. Começou ali a chamada “crise da Ucrânia” que se  prolongou até o início das hostilidades militares, em 22 de fevereiro de 2022, quando as  tropas russas invadiram o território ucraniano, e a guerra voltou para dentro da Europa,  depois de 77 anos. 

Sobretudo depois que os EUA e a Grã-Bretanha impediram as negociações de  paz que estavam em pleno curso na cidade de Istambul, no mês de março daquele  mesmo ano. A partir daquele momento o conflito ucraniano se transformou numa guerra  europeia, entre os EUA/OTAN e a Rússia, que envolveu também um “ataque  econômico” massivo da União Europeia contra a Rússia. Duas decisões que acabaram atingindo a própria Europa e contribuindo decisivamente para o desmonte atual da  União Europeia. 

Em primeiro lugar, porque o ataque econômico fracassou com relação aos seus  objetivos fundamentais. A economia russa não parou de crescer, o governo russo  redirecionou seus fluxos comerciais e financeiros para a Ásia, e a tecnologia de guerra  dos russos deu saltos verdadeiramente impressionantes. 

Enquanto a economia europeia entrou em crise e recessão, liderada pela  economia alemã que segue estagnada há praticamente três anos, sofrendo um acelerado  processo de desindustrialização. Em segundo lugar, porque apesar do apoio financeiro  dos EUA e do apoio militar da OTAN, a União Europeia foi derrotada no campo  militar, independente do tempo que ainda possa durar a resistência dos ucranianos. 

Sexto 

Três anos depois do início da guerra na Ucrânia, os governos das principais  “potências ocidentais” envolvidas no conflito foram derrubados pelos seus próprios  eleitores, na Itália, na Grã-Bretanha, na França, na Alemanha, e nos Estados Unidos.  Com tudo isto, o golpe mais importante que atingiu em cheio a unidade da União  Europeia foi sem dúvida a eleição de Donald Trump, com sua política internacional de  aproximação da Rússia, de pacificação da Ucrânia e de distanciamento – quase hostil – dos europeus e da própria OTAN. 

De um só golpe, a Rússia está sendo trazida de volta à “comunidade econômica  ocidental” pelas mãos dos EUA, e a Europa está perdendo seu principal aliado e  protetor atômico. Neste momento da derrota europeia, várias propostas vêm sendo  colocadas sobre a mesa, apressadamente, sobretudo pela França e pela Grã-Bretanha,  mas nenhuma delas tem a menor possibilidade de reverter no curo prazo, este quadro de  derrota militar, crise econômica e insatisfação social. 

Tramita neste momento uma acusação de corrupção contra a presidente do  Conselho Europeu, a alemã Ursula von der Leyen, e a sua Representante para Negócios  Estrangeiros, a jovem estoniana Kaja Kallas, é pouco representativa e parece  inteiramente despreparada para o exercício do cargo. Por outro lado, os social democratas perderam sua identidade, e hoje são partidos belicistas e ferrenhos  defensores do “globalismo neoliberal” atacado por Donald Trump.

Enquanto os partidos conservadores e liberais querem apostar na remilitarização  da economia europeia, mesmo sem contar com a unidade e os recursos necessários. E  mesmo assim precisariam pelo menos de uma década ou mais para se equiparar à atual  tecnologia militar da Rússia. Seu período de vassalagem militar foi muito longo e  tomará muito tempo para que os europeus possam retomar em suas próprias mãos, a sua  soberania. E não é improvável que neste tempo as “grandes potências” europeias voltem  a se dividir, competir e a brigar entre si, como sempre fizeram nos últimos 800 anos.

Como já estão fazendo com relação às acusações de corrupção que pairam sobre  a atual presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula von der Leyen. Foi isto pelo  menos o que já ocorreu no caso do “acordo comercial” recém-assinado pelos EUA e  pela Grã-Bretanha, que mais parece uma capitulação do que um acordo comercial. De  fasto, a Grã-Bretanha submeteu-se à pressão dos EUA e correu na frente dos demais  países europeus para conseguir assinar, separadamente, o que o jornal Financial Times,  descreveu como sendo “um pacto que está mais próximo de um pagamento de proteção  a um chefe de máfia do que de um acordo de liberalização entre países soberanos”.1E o  mais provável é que os demais países europeus acabem fazendo o mesmo,  aprofundando o desmonte da União Europeia. 

  


* Pesquisadora FINDE/UFF, pós doutoranda na UFF.

¹ Beattle, A. Financial Times, reproduzido no jornal Valor Econômico, de 9 de maio de 2025, pág. A 17.