A reforma da Previdência em Santa Catarina: uma análise das questões financeiras

30/06/2021 10:21

A reforma da Previdência em Santa Catarina: uma análise das questões financeiras[1]

Por: Juliano Giassi Goularti[2]

Em decorrência da aprovação da Emenda Constitucional nº 103 de 2019, que alterou o sistema de previdência social e estabeleceu regras de transição para o conjunto da classe trabalhadora brasileira que é assegurada pelo Regime Geral, o governo do estado de Santa Catarina encaminhou para Assembleia Legislativa (Alesc) o Projeto de Lei Complementar nº 0033.5, de dezembro de 2019, que tratava da reforma da previdência estadual. A partir da tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o projeto recebeu um conjunto de emendas parlamentares que desconfiguraram a proposta original. Criando privilégios e não direitos para algumas categorias do serviço público, as emendas elevariam exponencialmente o déficit financeiro e atuarial em somas bilionárias. Com isso, em julho de 2020 o governo retirou o projeto.

De junho de 2020 para junho de 2021, muita coisa mudou, principalmente nas relações política entre o governador e os parlamentares. Com uma sólida base de apoio na Alesc, o governo elaborou uma nova proposta de reforma da previdência. Dialogando com as bancadas partidárias, poderes e sindicatos, o governo tem apresentado os seguintes dados: 47.625 servidores ativos, 49.522 aposentados e 9.677 pensões, totalizando 106.824 segurados, distribuídos por distintos poderes e órgãos. A esses servidores, corresponde a uma folha de pagamentos mensal de R$ 774,67 milhões, sendo que o Poder Executivo constitui 78,51% desse custo, seguido pelo Tribunal de Justiça/TJ (11,64%), Ministério Público/MP (3,90%), Alesc (3,67%) e Tribunal de Contas/TCE (2,28%). Assim, como o Executivo constitui a maior despesa com folha, também abrange a maioria dos segurados, 88,73%.

Tabela 1: Servidores segurados e folha de pagamento por Órgão (2020)

T1

Fonte: Governo do Estado de Santa Catarina (2021).

De acordo com o governo, o objetivo da reforma da previdência resume-se à redução do déficit atuarial e dos aportes do Tesouro estadual para a cobertura da insuficiência de financiamento do sistema previdenciário. Do somatório de receitas de contribuição e projetada a compensação, o déficit atuarial[3] do Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina (IPREV) previsto é de R$ 149,5 bilhões. Com a reforma, o governo projeta reduzi-lo para R$ 112 bilhões, uma economia de R$ 37,5 bilhões.

Tal economia viria de duas formas: alíquota extraordinária e postergação do tempo de permanência do servidor na ativa. Em relação à alíquota extraordinária, a aplicação se destinaria a servidores com paridade e integralidade, com objetivo de garantir novos recursos capazes de atenuar a combalida situação da previdência. Hoje, a alíquota dos servidores é de 14%, porém para os militares da ativa, a contribuição é de 10,5% sobre o salário, representando 21,6% da despesa previdenciária de Santa Catarina. Ao aumentar esse percentual para 16,43% (14% mais 2,43%), o governo pretende arrecadar, em dez anos, um montante de R$ 839 milhões somente com as alíquotas extraordinárias, valor um pouco superior a um mês da folha de pagamento. Em síntese, a alíquota uniforme para todos os servidores civis de 14% e de 10,5% para os militares não tem a justiça tributária como princípio da equidade contributiva.

Já em relação à postergação do tempo de permanência do servidor na ativa, a mudança vem no sentido de que seu tempo de inatividade seja menor[4]. Em síntese, a reforma estabelece idade mínima de 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens – professores e militares terão regras de idade e tempo de contribuição diferenciados – e 25 anos de tempo de contribuição para aposentadoria.[5]

De fato, o sistema previdenciário catarinense tem apresentado importantes déficits ao longo dos últimos anos. Como demostrado na Tabela 2, de todos os três poderes, mais o TCE e MP, apenas o MP apresenta superávit. Em 2020, o déficit financeiro do pessoal civil foi de R$ 3,52 bilhões. Somando a isso o déficit de R$ 1,30 bilhão dos militares – que apesar de estar disposto em regime especial de proteção social, é integralmente coberto pelo Tesouro do Estado –, o déficit financeiro do IPREV soma R$ 4,83 bilhões.[6]

Tabela 2: Déficit financeiro por órgão (2020)

T2

Fonte: Governo do Estado de Santa Catarina (2021)

De acordo com os dados contidos no Gráfico 1, o maior gasto do governo do Estado, em 2020, foi com a previdência social, com R$ 7,12 bilhões, equivalente a 25,34% do total da despesa; seguido pela educação, onde foram aplicados R$ 4,05 bilhões, correspondente a 14,43% dos gastos do Estado; pela saúde, cujas despesas importaram em R$ 4,34 bilhões, 15,44% do total; e segurança pública, que recebeu R$ 2,65 bilhões, equivalente a 9,44% do total da despesa. No entanto, representando 21,6% da despesa previdenciária, a não inclusão dos militares – que já tem uma alíquota diferenciada – na reforma, não contribui para sanear a evolução do déficit atuarial e financeiro, significando que o ajuste da reforma será suportado pelo pessoal civil, a despeito de a ampla maioria dos militares aposentados receberem remunerações entre R$ 6 e R$ 10 mil.

Gráfico 1: Resultado Previdenciário de Santa Catarina (2017-2020)

G1

Fonte: Relatório Quadrimestral, Secretaria da Fazenda (2021)

Com base nestes gastos, ou seja, considerando a previdência o principal gasto público, outro motivo que justificaria a reforma é que em 10 anos a insuficiência financeira cresceu 612,39%, saindo de R$ 784 milhões, em 2009, para mais de R$ 4,83 bilhões ao ano, em 2020. No conjunto desse período, em valores atualizados (IPCA), foram transferidos para a previdência R$ 36 bilhões, somente para a cobertura da insuficiência.

Conforme a Tabela 3 abaixo, apenas 0,53% dos servidores inativos do Poder Executivo ganham uma aposentadoria acima de 30 salários mínimos, contra 20,40% da Alesc, 47,42% do MP, 17,44% do TCE e 6,86% do TJ. No geral, enquanto apenas 2,6% dos servidores do Executivo ganham acima de 20 salários mínimos, na Alesc são 51,68%, no MP 64,79%, no TCE 56,68%, e no TJ 10,4%. Os valores realçados em negrito na Tabela 3 representam a faixa salarial com a maior concentração de beneficiário.

Tabela 3: Remuneração dos servidores ativos, inativos e pensionistas, por faixa de salário mínimo (R$ 1.100) em 2020

T3

Fonte: Governo do Estado de Santa Catarina (2021)

Ainda de acordo com a Tabela 3, 40,22% dos servidores ativos do Poder Executivo recebem uma remuneração entre três a seis salários mínimos. Na média geral dos segurados, há menos de um servidor na ativa para um aposentado. Mas nos casos da Alesc, do MP e do TJ, há mais que o dobro de servidores aposentados, em relação aos que estão em atividade. Porém, o que chama a atenção é que nenhum servidor ativo do MP ganha menos do que seis mínimos e apenas 0,77% dos servidores do TCE tem uma remuneração abaixo de seis mínimos. Em síntese, observando o quadro remuneratório de ativos, há uma grande desigualdade de rendimentos entre os órgãos do Estado. Neste caso, uma tributação progressiva com faixas diferenciadas é o princípio da justiça. Quem ganha mais, deveria pagar mais em relação a quem ganha menos.[7]

Em relação à evolução do déficit da previdência, o Gráfico 2 mostra que no exercício de 2015 houve um aumento da receita de contribuição previdenciária em função do aumento gradual de alíquotas de contribuição, que foi de 11% para 14%, mas sobretudo pela unificação dos fundos de previdência. Com o novo aumento da alíquota, a meta do governo é reduzir em 25% no déficit atuarial atual de R$ R$ 149,5 bilhões, assim como foi nas reformas de 2007 e 2015. Todavia, para lograr esse êxito, o limite de isenção de contribuição dos inativos e pensionistas, atualmente limitado ao teto do RGPS, será reduzido a 1 (um) salário mínimo. Esta é a proposta que está em discussão, representando uma “economia” estimada de R$ 3,8 bilhões em cinco anos.[8] Reitere-se: é uma reforma que não tem por princípio a justiça fiscal. Ela é regressiva, pois não haverá diferença de alíquota entre quem ganha um e dez salários mínimos.

Gráfico 2: Evolução déficit financeiro (2009-2020)

G2

Fonte: Governo do Estado de Santa Catarina (2021)

Assim como as reformas da previdência promovida pelo governador Luiz Henrique da Silveira, em 2007,[9] e de Raimundo Colombo, em 2015,[10] a nova mudança no sistema previdenciário terá dificuldades em amenizar o déficit financeiro e atuarial, pois exclui os militares e o regime de tributação não é progressivo, com alíquota mínima de 14% e máxima de 16,43%, ou seja, o Estado terá que suportar o déficit. Quanto a idade mínima e tempo de contribuição dos servidores, buscando postergar a fase contributiva dos segurados e mitigar os impactos das despesas com os benefícios previdenciários, tem por referência a Emenda Constitucional nº103, de 2019.


[1] Os dados utilizados para construir este artigo foram retirados do documento Estudo Referencial – Reforma Previdência apresentado pelo governo do estado aos parlamentares.

[2] Doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NECAT/UFSC

[3] O déficit atuarial não considera a entrada de novos servidores nas projeções do déficit, concentrando-se apenas na geração presente de segurados.

[4] Atualmente, 46% dos pensionistas recebem benefícios há dez anos ou menos, 44,7% entre 15 e 30 anos, 8,74% fruem seu benefício há mais de 30 anos e 0,56% apresentam tempo de fruição superior a 65 anos. Em relação aos benefícios com aposentados, 46% estão recebendo benefício por até 10 anos, 42% estão sendo pagos entre 20 e 40 anos de fruição e aproximadamente 2% estão recebendo por período compreendido entre 45 a 65 anos.

[5] O servidor que não apresentar 35 anos de contribuição poderá escolher se aposentar com um salário de reposição menor (1/40 avos do salário para cada ano contribuído).

[6] Em 2020, com o advento da Lei n° 13.954 de 2019 que modificou o Regime de Proteção Social dos Militares, houve uma diminuição das receitas previdenciárias por ocasião da inexistência de contribuição patronal militar. Os militares foram excluídos do Regime Próprio de Previdência, passando a contar com legislação própria de proteção social e suportado o equivalente déficit pelo Tesouro do Estado.

[7]Exemplo de tributação regressiva: imaginando que exista um imposto único de 50% sobre tudo que compramos, um trabalhador que recebe um salário de R$ 1.067 mil e gasta R$ 250 no mês para adquirir uma cesta básica de alimentos no supermercado, irá pagar R$ 125 em imposto, o equivalente 11,7% de seu salário. Já se um executivo que recebe dez vezes mais, isto é, R$ 10.670 mil, gasta os mesmos R$ 250 para adquirir uma garrafa de vinho, os R$ 125 em impostos também serão cobrado, mas este valor representa apenas 1,2% de sua renda. No fim, quem ganha menos sai mais prejudicado pelo modelo de tributação regressivo. Assim é na previdência com alíquota mínima de 14% e máxima de 16,43%. Por essa e outras razões que a chamamos de injusta, isto é, alíquota regressiva!

[8] Segundo expõe o governo, “Em cinco anos a continuar a situação atual serão R$ 19,9 bilhões em aportes do Tesouro para a cobertura da insuficiência, sendo a reforma implementada, com limite de isenção de 1 salário mínimo, ainda serão necessários R$ 16 bilhões de aportes, redução de apenas 19%”. GOVERNO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. Estudo referencial da reforma previdência, 2021.

[9] Na reforma o Instituto de Previdência do Estado de Santa Catarina (Ipesc) foi transformado em Iprev e um novo fundo de previdência foi criado para separar os servidores contratados a partir da aprovação da lei complementar.

[10] A reforma de 2015 realizou a fusão dos fundos (financeiro e previdenciário) em um único fundo, favorecendo a amenização dos aportes suportados pelo Tesouro do Estado.