As origens do superávit do governo de Santa Catarina em 2020

10/06/2021 10:43

Por: Juliano Giassi Goularti[1] e Lauro Mattei[2]

Quando a pandemia provocada pelo coronavírus foi descoberta ao final de 2019, a economia mundial já dava sinais de desaceleração. Neste caso, destaca-se que a China, em meio a uma guerra comercial com os Estados Unidos, registrou naquele momento seu pior desempenho econômico dos últimos trinta anos, ao apresentar uma taxa de crescimento de 6,1%.

A emergência da crise sanitária obrigou os governos a adotar políticas restritivas para impedir o avanço da Covid-19, atitude que teve implicações diretas sobre a esfera econômica, uma vez que ocorreu a interrupção das atividades normais de circulação de pessoas, produção de mercadorias, consumo corrente, trocas comerciais, investimentos programados, linhas de crédito, etc.

No Brasil essa situação impactou negativamente as contas públicas, uma vez que ao final de 2020 foi registrado um resultado primário[3] da ordem de R$ 743 bilhões. Essa expansão do déficit primário, em grande medida, se deve ao aumento das despesas para controlar a pandemia no país. Segundo o Tesouro Nacional, somente essa rubrica (gastos com Covid-19) atingiu o montante de R$ 540 bilhões no ano de 2020. Além disso, ocorreu queda da arrecadação em função da forte retração das atividades econômicas, especialmente no primeiro semestre do referido ano. Com isso, o déficit registrado no último ano é de aproximadamente 10% do PIB do país.

Em Santa Catarina ocorreu uma situação oposta, uma vez que o estado encerrou o ano de 2020 com um superávit da ordem de R$ 1,86 bilhão, cifra que foi muita celebrada pelo governo estadual. Assim se pronunciou o governador: “desde o início desta gestão, o Poder Executivo vem aplicando medidas de austeridade dos gastos públicos. Especialmente no ano passado, trabalhamos para minimizar os impactos da crise e da queda na arrecadação, focando no equilíbrio entre saúde e economia. Como resultado, Santa Catarina conquistou o maior superávit já registrado em sua história”[4].

Quanto ao superávit mencionado, que faz parte do Balanço Geral de 2020 divulgado pelo governo catarinense no mês de fevereiro de 2021, o estado de Santa Catarina obteve, no ano de 2020, uma receita bruta de R$ 41,35 bilhões, sendo R$ 11,39 bilhões deduções obrigatórias, resultando numa receita líquida de R$ 29,95 bilhões. Neste caso, destacam-se a arrecadação de ICMS de R$ 23,96 bilhões; de IPVA de R$ 2,12 bilhões; de IRRF de R$ 1,75 bilhão; R$ 1,38 bilhão com as taxas, R$ 381,02 milhões com ITCMD e R$ 362,16 milhões com receita de capital. Em relação à despesa pública, foram gastos R$ 28,09 bilhões, resultando no superávit de R$ 1,86 bilhão.

É importante registrar que, diante da crise sanitária e econômica, o governo catarinense recebeu um expressivo auxílio financeiro do Governo Federal para mitigar os efeitos da pandemia. Tal auxílio foi da ordem de R$ 1,78 bilhão, sendo R$ 1,35 bilhão oriundos do auxílio financeiro relativo à Lei nº 173, de 2020; R$ 82,54 milhões relativos à Medida Provisória nº 938; R$ 281,59 milhões para o Sistema Único de Saúde (SUS); R$ 44,98 milhões relativos à Lei nº 14.017, de 2020; R$ 3,48 milhões da devolução dos municípios, também relativos à Lei nº 14.017, de 2020. Além disso, foram contabilizados também os seguintes recursos: R$ 3,23 milhões da Justiça Federal; R$ 12,05 mil de instituições privadas; e R$ 20,67 mil de pessoas físicas. Dessas diferentes fontes, R$ 333,33 milhões referem-se a recursos para o enfrentamento da pandemia e R$ 1,44 bilhão são auxílios financeiros oriundos da Lei Complementar nº 173, de 2020 e da Medida Provisória nº 938, de 2020.

Além dos montantes anteriormente mencionados, ocorreu, ainda, o repasse de vários recursos, conforme segue. Por meio da Lei Aldir Blanc, o estado recebeu R$ 48,47 milhões para aplicação em ações emergenciais de apoio ao setor cultural. Tal setor também recebeu mais R$ 4 milhões do Tesouro Estadual e da Assembleia Legislativa, conforme previsto na Lei nº 18.002, de 2020. Cumpre ainda destacar que Santa Catarina também recebeu recursos na forma de devolução dos demais poderes, sendo R$ 22 milhões da Assembleia Legislativa; R$ 20 milhões do Tribunal de Contas e R$ 10 milhões do Tribunal de Justiça. Todas essas demais fontes totalizaram R$ 104,47 milhões, que agregados aos repasses anteriores atingiram o montante global de R$ 1,87 bilhão, ou seja, no ano 2020 o governo estadual recebeu quase R$ 2 bilhões para fazer o enfrentamento da crise sanitária e econômica provocada pelo novo coronavírus.

A Lei Complementar nº 173, de 2020, estabeleceu duas formas de aplicação dos recursos do auxílio financeiro do governo federal. A primeira tratou de recursos destinados às ações de saúde e de assistência social, representados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS), enquanto a segunda forma de aplicação diz respeito às ações diretas no enfrentamento da Covid-19, conforme Tabela 1. Desta forma, o governo do estado de Santa Catarina recebeu, no ano de 2020, o valor de R$ 1,35 bilhão, na forma de auxílio financeiro da União. Tal montante foi repassado em quatro parcelas iguais entre os meses de junho e setembro do referido ano.

Tabela 1: Auxílio financeiro recebido da União durante o ano de 2020 (R$ mil)

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Fonte: Balanço Geral de 2020 do governo do Estado de Santa Catarina

Neste sentido, cumpre destacar que, do ponto de vista dos recursos destinados ao enfrentamento pandemia no ano de 2020, verifica-se que efetivamente foram utilizados R$ 638,24 milhões, sendo que 57,22% desse total teve origem nos repasses do Tesouro e 28,85% oriundos do SUS. A discriminação dos gastos desse montante segue: serviço médico e laboratorial (R$ 185,27 milhões); aparelhos e equipamentos médicos (R$ 71,48 milhões); repasses a hospitais e instituições de saúde (R$ 49,66 milhões); retribuição de produtividade médica (R$ 40,82 milhões) e serviços temporários de agentes de saúde (R$ 29,26 milhões).

Por outro lado, deve-se destacar, ainda, a suspensão do pagamento de dívidas dos estados com a União, de acordo com a Lei Complementar nº 173, de 2020, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus. Tal programa estimulava que, com esses recursos devidos à União, as unidades federativas estabelecessem ações coordenadas de enfrentamento à Covid-19 em seus respectivos territórios. Pela Tabela 2 é possível observar que, por meio da suspensão temporária dos pagamentos das dívidas contratadas, o estado de Santa Catarina deixou de pagar aproximadamente R$ 1,06 bilhão no ano de 2020, sendo que 45,72% deste total se referem à dívida do estado com a União; 29,85% de dívidas com o Banco do Brasil e 24,43% de dívidas com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Desta forma, fica evidente que o auxílio financeiro da União para o governo do estado de Santa Catarina mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19, especialmente estabelecendo políticas de recuperação econômica que visassem compensar as perdas decorrentes da desaceleração da atividade produtivas, somado à isenção do pagamento das dívidas do estado com a União, contribuiu de forma decisiva para a geração do superávit primário de R$ 1,86 bilhão no ano de 2020.

Tabela 2: Montante de recursos relativos à suspensão do pagamento da dívida pública prevista na Lei Complementar nº 173, de 2020 (R$ mil)

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Fonte: Balanço Geral 2020 do governo do Estado de Santa Catarina

A tabela 3 complementa a tabela anterior, ao discriminar detalhadamente os diferentes tipos de contratos em que houve adiamento do pagamento das dívidas relativas ao exercício de 2020. O fato concreto é que esse adiamento de pagamentos dessas dívidas, fortemente celebrado pelas atuais autoridades governamentais, certamente irá impactar saldos de exercícios futuros, quando tais montantes terão de ser liquidados.

Tabela 3: Valores das dívidas que deixaram de ser pagos, em 2020, segundo os tipos de contratos (R$ mil)

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Fonte: Balanço Geral 2020 do governo do Estado de Santa Catarina

Considerações Gerais

Após mais de quinze meses de pandemia no país, nota-se que as desigualdades sociais aumentaram em todo o país. Tal situação ficou evidente na última PNAD Contínua divulgada recentemente pelo IBGE, uma vez que a taxa de desemprego no país aumentou para 14,7%, atingindo aproximadamente 15 milhões de brasileiros.  Tal situação também está presente no estado de Santa Catarina, uma vez que estudo recente do NECAT-UFSC[5] demonstrou que foram perdidos 220 mil postos de trabalho desde o início da pandemia da Covid-19. Além disso, verificou-se que o número de domicílios sem renda cresceu 30% no ano de 2020[6].

Diante desse cenário extremamente grave do ponto de vista sanitário, econômico e social, é urgente que o governo do estado de Santa Catarina abdique de parte expressiva desse superávit – que na sua maioria foi gerado por meio dos programas de auxilio federal – e invista em políticas públicas de estímulo à expansão das atividades econômicas, de garantia do emprego e de melhoria das condições sociais da população. Isto porque o gasto público – diante da crise sanitária que ainda requer medidas para a contenção da pandemia e de uma economia fortemente afetada por essas próprias medidas é um elemento fundamental para se mitigar os impactos negativos sobre as condições sociais de parcelas expressivas da população, que no momento já se encontram muito afetadas.


[1] Doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NECAT-UFSC. Email:

[2] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br

[3] O resultado primário exclui os custos com o pagamento dos juros da dívida pública.

[4] Declaração do governador no dia 09.02.2021 publicada no site www.sc.gov.br/noticias

[5] Cf. estudo do NECAT disponível em: https://necat.ufsc.br/mesmo-com-baixo-desemprego-santa-catarina-perdeu-220-mil-postos-de-trabalho-em-2020-como-isso-foi-possivel/

[6] Cf. estudo do NECAT disponível em: https://necat.ufsc.br/domicilios-sem-renda-do-trabalho-cresceram-cerca-de-30-em-santa-catarina-no-ano-de-2020/