Considerações sobre a dívida ativa tributária de Santa Catarina

26/03/2021 15:14

Por: Juliano Giassi Goularti[1]

A dívida ativa dos Estados é composta por créditos a receber de pessoas jurídicas e de pessoas físicas. Sua cobrança é imprescindível, não apenas para o equilíbrio fiscal do Estado, mas, principalmente, para a manutenção e desenvolvimento de atividades públicas previstas na Constituição Federal de 1988. Por isso a importância do gestor público, especialmente da Secretaria da Fazenda e da Procuradoria Geral do Estado, apurar a liquidez do crédito tributário, inscrever, controlar e executar a dívida ativa, preferencialmente sem prejuízo da adoção de medidas extrajudiciais de cobrança.

Na sistematização de informações da dívida ativa dos Estados junto ao Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (SICONFI), que recebe os dados contábeis, orçamentários e fiscais de todas as unidades federativas do país, observa-se que a dívida ativa tributária dos Estados brasileiros saltou de R$ 527,0 bilhões, em 2014, para R$ 896,2 bilhões, em 2019, representando um crescimento de R$ 369,1 bilhões. Deste montante o Estado de São Paulo era responsável, no ano de 2019, por 35,69%, seguido por Rio de Janeiro (12,49%), Minas Gerais (7,79%), Mato Grosso (5,59%), Goiás (5,18%) e Rio Grande do Sul (5,11%), totalizando R$ 643,8 bilhões. Seis Estados da federação são responsáveis por 71,81% da dívida ativa tributária estadual. Quanto ao Estado de Santa Catarina, seu estoque representou 2,12%.

Ligando o sujeito ativo ao sujeito passivo, é possível afirmar que a dívida ativa das unidades federativas representou, em 2019, 12,35% do Produto Interno Bruto (PIB) do País, que foi de R$ 7.256 trilhões. Se a este percentual for agregado o estoque da dívida ativa tributária da União de R$ 2,2 trilhões (referente às pessoas físicas e jurídicas), mais o estoque da dívida ativa dos Estados (R$ 896,2 bilhões), atinge-se o patamar de 41,30% do PIB.

Analisando-se o processo de recuperação anual da dívida ativa das unidades federativas, percebe-se significativo crescimento quantitativo do estoque dessa dívida, uma vez que a taxa de recuperação não se altera, ou seja, a média nacional se mantém em torno dos 0,61%, o que torna o problema extremamente grave. Numa estimativa conservadora, se a taxa média de recuperação dos créditos fiscais dos Estados brasileiros tivesse sido de 2,5%, o montante recuperado passaria de R$ 5,1 bilhões para R$ 21 bilhões, significando um crescimento de mais de 300%. Caso a média recuperada fosse de 5%, os créditos recuperados seriam da ordem de R$ 42 bilhões. Se em três anos (2015, 2016 e 2017) a média percentual do valor recuperado pelos Estados fosse de 2,5%, a recuperação seria da ordem de R$ 56,3 bilhões, ao invés da arrecadação efetiva de R$ 13,5 bilhões.

Além disso, é importante registrar que parte dessa inexpressiva da recuperação fiscal foi realizada por meio dos Programas de Recuperação Fiscal (REFIS), destacando-se o Projeto de Lei nº 49/2021, que acaba beneficiando empresas e escritórios de advocacia que trabalham com planejamento tributário[2]. À primeira vista, o recebimento dos débitos tributários atrasados, por meio dos parcelamentos dos REFIS, representava a oportunidade do governo aumentar suas receitas e diminuir as dívidas tributárias. No entanto, é necessário um olhar sobre o “avesso do tributo”, ou seja, compreender que os sucessivos REFIS editados ao longo dos últimos anos acabaram apenas contribuindo para a evolução dos estoques da dívida ativa existentes. Na verdade, pode-se dizer que esses programas de refinanciamento, ao invés de contribuir para recuperação fiscal dos Estados, na prática estão contribuindo para a expansão dos estoques das dívidas fiscais.

Correlacionando esses valores das dívidas como proporções do PIB dos Estados, destaca-se que o estoque da dívida ativa tributária do Estado do Mato Grosso de R$ 45,6 bilhões representa 33,24% do PIB estadual. Seguem-se outras comparações: os R$ 43,5 bilhões inscritos na dívida ativa de Goiás representam 22,27% do PIB estadual; os R$ 7,8 bilhões de Sergipe correspondem a 18,64% do PIB sergipano; os R$ 8,1 bilhões de Rondônia representam 18,13% do PIB rondoniano; os R$ 387,9 bilhões de São Paulo representam 17,55% do PIB paulista e os R$ 21,4 bilhões do Espírito Santo representam 15,67% do PIB capixaba. Quanto ao Wstado de Santa Catarina, verifica-se que o PIB de 2018 foi de R$ 298 bilhões, enquanto a dívida ativa era de R$ 16,4 bilhões, significando 5,53% do PIB catarinense.

No caso particular de Santa Catarina, Estado em que as condições financeiras vêm se agravando e fazendo com que grande parte da política estadual de investimento vem sendo realizada por meio de empréstimos bancários, dez empresas devem ao fisco R$ 1,9 bilhão, isto é, 10,5% do estoque estadual. São elas: Arcelormittal Brasil S/A (R$ 519.259.969,90); A. Angeloni & Cia.Ltda (R$ 248.272.601,47); Inca combustíveis Ltda (R$ 205.016.117,92); Petropar petróleo e participações Ltda (R$ 196.559.492,69); Remetal indústria e comércio de reciclados Eireli Ltda (R$ 163.818.811,27); Global Village Telecom S/A (R$ 150.342.073,51); R.P.M reciclagem paranaense de metais Ltda (R$ 145.124.624,99); Alcom Petróleo Ltda (R$ 131.719.883,12); WMS supermercados do Brasil Ltda (R$ 122.049.299,51) e Cipla indústria de materiais de construção S/A (R$ 111.398.921,46)[3].

Chama atenção que o risco de uma dívida ativa em rota de expansão desgovernada, não foi discutido com o devido rigor ao longo dos últimos anos, tanto no Brasil como nas unidades da federação. Em grande medida, esse comportamento apático em relação ao tema se deve ao entrelaçamento dos interesses privados no âmbito das instituições públicas. Além disso, a inexistência de um debate mais incisivo no âmbito do poder legislativo, dos órgãos de controle e nos próprios meios de comunicação demonstra o pouco interesse em promover um debate público sobre o assunto, especialmente sobre os montantes devidos e sobre os sujeitos envolvidos.

Apenas a título de exemplo no caso particular da dívida ativa de Santa Catarina, destaca-se o anúncio recente de que a Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) comprou o prédio da empresa Oi, localizado na Avenida Madre Benvenuta, bairro Itacurubi, Florianópolis, por R$ 79 milhões[4]. Trata-se de uma propriedade com 11 mil metros quadrados construídos e uma área total de 41 mil metros quadrados. À primeira vista, essa poderia parecer uma transação normal. Todavia, registre-se que a Oi S/A possui uma dívida ativa com o Estado de R$ 53,9 milhões, enquanto a Oi Móvel S/A de R$ 28,7 milhões, totalizando R$ 82,6 milhões[5]. Como forma de preservar o interesse público, era de se esperar que o governo do Estado, juntamente com a Universidade (UDESC), o Poder Judiciário (TJ/SC), o Legislativo (ALESC), o Tribunal de Contas (TCE/SC) e o Ministério Público (MP/SC), deveriam intervir nessa negociação visando recuperar a dívida que as referidas empresas têm com o Estado de Santa Catarina[6].

A existência da dívida ativa não é um mal em si mesmo. O problema efetivamente existe quando os estoques se acumulam e a capacidade do poder público para recuperar os créditos normalmente é morosa e limitada. Com isso, passa-se a comprometem a capacidade orçamentário-financeira no sentido do cumprimento das competências constitucionais. Quanto a isso, o quadro pragmático de desarranjo orçamentário provocado pela dívida ativa, por seu turno, levou os gestores a adotarem medidas que se, por um lado, sequer constrangem o crescimento explosivo da dívida ativa e a insignificante recuperação fiscal, de outro lado, imputam gargalos na própria capacidade de financiamento de políticas públicas.

Por fim, é preciso entender que a dívida ativa tributária, sua formação, evolução e morosidade na cobrança são determinadas por relações sociais de poder, dentro e fora das instituições estatais, não podendo ser tratada apenas como uma questão eminentemente técnica. Desprende-se daí que o conjunto de créditos tributários em favor da Fazenda Pública de Santa Catarina e não recebido no prazo definido, é uma relação social de poder definida e estabelecida, em grande medida, pelo poder político dos grandes devedores que fazem uso dos mecanismos tributários para preservar seus interesses econômicos.


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e autor do livro Política fiscal e desoneração tributária no Brasil.

[2] Por meio da prática do REFIS, muitas vezes permite-se às empresas parcelar a dívida com o fisco em até 60, 90, 120 ou até 145 parcelas, além de obtenção de desconto de até 50%, 70% ou mesmo de 90% no valor da dívida, bem como postergar e diferir o pagamento de tributos vencidos.

[3] Dados de outubro de 2020. https://tributario.sef.sc.gov.br/tax.NET/Sat.Dva.Web/ConsultaPublicaDevedores.aspx

[4]https://www.nsctotal.com.br/colunistas/anderson-silva/udesc-compra-predio-da-oi-no-itacorubi-em-florianopolis-por-r-79-milhoes

[5] https://tributario.sef.sc.gov.br/tax.NET/Sat.Dva.Web/ConsultaPublicaDevedores.aspx

[6] O que o simples exemplo acima citado revela é que, se por um lado, há grande preocupação do administrador com a dívida pública e um compromisso implacável com a remuneração dos credores, por outro lado, a questão da dívida ativa é renegada ao segundo plano, sem que os devedores contumazes tenham seus bens penhorados.