Considerações sobre a política de renúncia de receita de impostos de Santa Catarina

13/04/2021 14:19

Por: Juliano Giassi Goularti[1]

Dentro do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 24, inciso I, prevê a competência da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre o direito tributário e o direito financeiro, cabendo à União estabelecer as normas gerais num e noutro caso. Aliada à fragmentação regional e ao desmonte parcial de programas federais de financiamento produtivo, essa maior autonomia e independência administrativa, fiscal, financeira e tributária dada às Unidades da Federação, fez com que a heterogeneidade de interesses dentro do sistema federativo – que já possuía dificuldades na construção de interesses comuns – se tornasse ainda pior, pois gradativamente os Estados foram alterando suas alíquotas de ICMS, sem o consentimento dos órgãos reguladores, isto é, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e o Senado Federal. Com isso, instaurou-se uma verdadeira guerra fiscal entre as Unidades da Federação.

No caso particular de Santa Catarina, a guerra fiscal foi, de certa forma, institucionalizada pela Lei nº 10.297 de 1996, e pela Lei Complementar nº 541 de 2011, que autorizaram a administração estadual a renunciar tributos e conceder tratamento tributário diferenciado a determinados setores econômicos, produtos, pessoas jurídicas e regiões de forma a compensar os efeitos de benefícios tributários concedidos ou prometidos por outra Unidade da Federação. Assim, o Estado de Santa Catarina detém da faculdade perene de instituir sistematicamente benefícios fiscais relativos ao Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), sob o pretexto de garantir a competitividade dos empreendimentos já instalados ou que possam vir a se instalar em território catarinense.

O governo catarinense, ao conceder uma renúncia de receita, principalmente do ICMS, está incentivando a tomada de decisão da iniciativa privada, que se orienta pelo alcance de certos objetivos empresariais condizentes com a redução de custos de produção e, consequentemente, da elevação da taxa de lucro das empresas. Ademais, em tempos de escassez de recursos para fazer frente às demandas postas pela pandemia da Codiv-19, não se pode deixar que os interesses políticos e econômicos de um pequeno grupo de empresários se ponham à frente da coletividade.

Para anular ou, pelo menos, compensar tais fatores, esta política deveria estar condicionada à diversificação ou à modernização produtiva, ao aumento da competitividade com ganhos de escala e de mercado, à geração de novos empregos, oportunidades de negócios em geral e à distribuição de renda no estado. Entretanto, a expansão das renúncias não é um dispositivo automático de mudanças qualitativas na economia, de modo que o lado mais evidente desta política – não apenas para Santa Catarina, mas para o conjunto dos Estados brasileiros – tem sido a perda da receita estadual.

Impulsionada pela guerra fiscal e pelo contexto de ascensão da descentralização fiscal, crise do Estado brasileiro e fragilidade do Confaz, a política tributária adotada pelo Estado de Santa Catarina ao longo da última década estabeleceu um razoável volume de receita renunciada. De acordo com os dados da Tabela 1, a estimativa do montante de recursos renunciados passou de R$ 3 bilhões, em 2010, para R$ 5,5 bilhões, em 2020[2]. Isso equivale a 32,44% da receita potencial recolhida via ICMS e 19,10% da receita total, isto é, aquela que inclui as transferências da União.

Tabela 1: Projeção das perdas de receitas com a política de renúncia de impostos (ICMS, IPVA e ITCMD) em Santa Catarina (2010-2020, em R$ mil a preços constantes)

artigo juliano

Fonte: LDO, vários anos; Elaboração própria.

Nos últimos dois anos foram feitas mudanças significativas na política tributária de renúncia de receita, as quais trarão impactos econômicos a partir de 2021[3]. Todos os Projetos de Lei que promoveram essas mudanças foram aprovados por unanimidade, mas em desconformidade com o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), isto é, sem a apresentação de estudos de impacto financeiro. O mesmo vale para as emendas parlamentares apresentadas, que também ampliam o número de setores e de empresários beneficiados. Com isso, em 2021 a estimativa é de que as renúncias de impostos estaduais atinjam R$ 6,3 bilhões, devendo chegar a R$ 7,1 bilhões em 2023.

Sem a avaliação do impacto financeiro, a aprovação destes projetos poderá provocar uma desproporcionalidade dos meios de arrecadação de impostos que visam a garantir progressivamente os direitos sociais e as demais garantias constitucionais. Nesse sentido, destaca-se o Projeto de Lei nº 458.9/2019, que reduziu de 17% para 12% a alíquota do ICMS destinada ao contribuinte para a comercialização, a industrialização e a prestação de serviços dentro do Estado de Santa Catarina.

Com valores renunciados que superam R$ 55,3 bilhões (2010-2020), o governo do Estado de Santa Catarina não tem uma política de acompanhamento e/ou monitoramento da contrapartida do empresariado no sentido da ampliação de postos de trabalhos, sob pena de retirada e devolução da renúncia usufruída. Embora a renúncia do ICMS seja tida como um dos pilares do desenvolvimento econômico, os resultados gerados na economia estadual são questionáveis no curto e no longo prazo. Em particular, se por um lado a renúncia de receita resultou em impacto financeiro ao Tesouro estadual e em acumulação privada para o empresariado; por outro, não há evidências de que sua expansão tenha gerado crescimento sustentado para o conjunto dos 295 municípios catarinenses.

Para que sejam sustentáveis, os benefícios fiscais não podem ser permanentes. Eles devem ter vigência e efeitos restritos a determinada situação. Desta forma, torna-se importante apontar com clareza os beneficiários, a duração, os objetivos e os custos desta política ao Tesouro. Essa premissa é especialmente importante tendo em vista as renúncias recentemente outorgadas em caráter emergencial, que não podem se converter em um custo permanente às finanças públicas, sob as vestes da crise econômica.

Posto que os recursos são escassos e tendo em vista que o volume de demandas sociais reprimidas e de reivindicações pendentes só aumenta, deve-se considerar que a política de renúncia de receita implica na desvinculação constitucional do orçamento público de programas, planos e ações em saúde e educação interferindo diretamente na busca da melhoria na eficiência e na qualidade do gasto do Estado. Logo, os gastos com saúde nas diferentes modalidades (saúde da família, saúde básica, serviços de alta e média complexidade) e na educação (nas diretrizes, metas e estratégias previstas no Plano Nacional de Educação) podem estar comprometidos pela exagerada política de renúncia de impostos.


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do Necat/UFSC.

[2] Essa expansão das renúncias seguiu a determinação da Lei Complementar nº 160 de 2017, e do Convênio nº 190 de 2017 celebrado no âmbito do Confaz, que convalidou todos os benefícios fiscais concedidos sem autorização.

[3] Dentre as mudanças na política de renúncia de receita, destacam-se a aprovação do projeto de lei governamental nº 364.4/2020 e daqueles, também de origem governamental, aprovados no exercício de 2019, tais como os projetos de lei nº 28.2/2019, nº 29.3/2019, nº 55.5/2019, nº 81.7/2019, nº 170.7/2019, nº 174.0/2019, nº 435.2/2019 e nº 458.9/2019.