Democracia, capitalismo e anticapitalismo

09/06/2025 14:17

Luis Felipe Miguel*

Na primeira quinzena de maio de 2025, ocorreu na Universidade de Brasília o V Simpósio Nacional sobre Democracia e Desigualdades. Dividi uma mesa com a professora Andréia Galvão, com mediação da cientista política Gabriela Lopes Sales. Publico a seguir a minha intervenção no evento.

Vou começar esta fala com duas citações, que de alguma maneira indicam o caminho que pretendo seguir. A primeira é do falecido Mark Fisher, que em geral nem é um autor do meu panteão. Ele disse, e muita gente cita, que estamos atravessando uma era em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. Esta tirada se tornou, aliás, o subtítulo da edição brasileira do seu livro Realismo capitalista. E é verdade. Mas o fato é que está cada vez mais claro que, se não formos capazes de avançar para o fim do capitalismo, com certeza vamos encarar o fim do mundo.

A segunda citação é de um livro da Anne Phillips, uma importante cientista política também britânica, com origens na esquerda socialista. Ela escreveu, ainda no final do século passado, que “não ganhamos nada ao afirmar a incompatibilidade entre o capitalismo e a democracia, além de um ataque agudo de depressão”.

Minha relação com a frase da Philips é mais ambígua do que a que eu tenho com a frase de Fisher. Ela está dizendo que precisamos buscar maneiras de implementar e aprimorar mecanismos democráticos de gestão da vida social mesmo dentro da sociedade capitalista, já que sua ultrapassagem não está no horizonte. Posso até concordar com isso. Mas, com ataque de depressão ou sem ataque de depressão, se não colocarmos na nossa conta, centralmente, o fato de que o regime capitalista é incompatível com qualquer democracia real, vamos estar vendendo ilusões.

Para começar, é preciso ter em mente que a democracia nunca foi um projeto burguês. Os marxistas popularizaram o conceito de “democracia burguesa” para caracterizar o regime representativo concorrencial que se firmou no Ocidente, mas a expressão leva à impressão errônea de que a democracia procedimental que foi construída no Ocidente ao longo dos séculos XIX e XX correspondia a uma vontade histórica da burguesa. Ou, de forma mais radical, à ideia de que a democracia representaria uma superestrutura política acoplada às relações de produção capitalista, que surgiria como que naturalmente do desenvolvimento da vida econômica capitalista. Estou fazendo aqui uma paráfrase de um texto crítico de Antoni Domènech, mas essa visão – de continuidade necessária entre capitalismo e democracia – tornou-se parte do credo liberal contemporâneo, parte da ideologia pluralista de justificação do capitalismo, na forma de uma homologia entre “liberdade econômica” e “liberdade política”. (“Liberdade econômica”, vocês sabem, é o apelido que eles dão à competição no mercado).

Mesmo uma autora como Wendy Brown, reconhecida como uma voz crítica importante nos debates atuais, reproduz a ideia de que democracia, Estado-nação e capitalismo seriam (eu cito) “trigêmeos nascidos no início da modernidade europeia”. Fica patente, assim, que existiria uma interpenetração necessária entre capitalismo e democracia, o que desloca a compreensão da luta de classes nos regimes “democráticos burgueses”.

Embora a democracia tenha se tornado burguesa, ela nunca foi o projeto da burguesia. Seu projeto original era o de uma sociedade liberal, em que direitos eram formalmente estendidos a todos, em particular o direito (abstrato) de propriedade. Rousseau, em sua crítica ao contrato social enganoso que teria dado origem ao Estado, já dizia que os pobres tinham sido levados a abrir mão da única coisa que tinham (a liberdade) para proteger o que não tinham (a propriedade). É mais ou menos isso.

Assim, no projeto liberal, estes direitos ficavam garantidos para todos, contra o arbítrio estatal, mas a participação política era restrita aos proprietários. A ordem política ambicionada pela classe burguesa pouco tinha de democrática. Era baseada na exclusão da maior parte da população e em uma competição restrita à minoria de proprietários. Isto já está presente nos escritos de John Locke, que pode ser considerado, por bons motivos, um dos ideólogos iniciais da burguesia em ascensão.

O liberalismo tornou-se a base comum do pensamento político dos últimos séculos, sobre o qual se estabelecem mesmo as correntes que buscam criticá-lo. (Refiro- me ao liberalismo político, que, embora tenha raízes comuns, possui trajetória diferenciada do liberalismo econômico.) Ele postula uma igualdade abstrata entre todos os seres humanos, nascendo em oposição às hierarquias da ordem feudal e da ordem absolutista, que operam com uma divisão estamental que alardeia a desigualdade. Como regra, este igualitarismo é logo abandonado, em favor da aceitação das assimetrias sociais existentes. Assim, para Locke, como para a maioria dos outros autores liberais iniciais, um déficit considerado natural inferioriza tanto as mulheres quanto as populações não europeias.

O caso dos trabalhadores é um pouco mais complexo. A chave para a compreensão da teoria política de Locke está na relação entre liberdade e propriedade, que constitui o núcleo daquilo que C. B. Macpherson chamou de “individualismo possessivo”. Por um lado, isso significa que cada pessoa se relacionaria com seus direitos da mesma maneira como se relaciona com suas propriedades externas, isto é, tem a possibilidade de negociá-los ou aliená-los, o que leva à doutrina que legitima todas as formas de subordinação pessoal, desde que sejam produzidas por meio de contratos pretensamente livres e espontâneos.

Por outro lado, aqueles que não têm propriedades se tornam também desprovidos de direitos, a começar pelo mais básico de todos, que é o direito de usufruir dos frutos do próprio trabalho (algo que aparece de forma cristalina nos escritos de Locke). A exclusão de mulheres, de crianças e também de trabalhadores do contrato social é justificada por sua racionalidade inferior, mas também pelo fato de não serem proprietários. Não há solução de continuidade entre uma afirmação e outra: no caso dos trabalhadores, a inferioridade intelectual seria demonstrada por sua própria incapacidade de amealhar riquezas.

Este tipo de raciocínio sustentou as políticas de exclusão dos regimes liberais, como o voto censitário e a diferenciação entre cidadania ativa (aqueles que participavam da gestão da comunidade) e cidadania passiva (quem apenas tinha a obrigação de obedecer às regras estabelecidas). Os regimes de concorrência política que emergem junto com a ascensão da burguesia não são, nem se apresentam como democráticos. Pelo contrário, sempre houve o esforço de garantir que o governo representativo respondesse a uma parcela limitada do povo e impedisse a edificação de um sistema democrático.

Os regimes concorrenciais que hoje aceitamos correntemente como democráticos, alicerçados na igualdade política formal e no sufrágio universal, adaptaram-se à dominação burguesa, é verdade, e tornaram-se mesmo uma espécie de “modelo padrão” para o Estado capitalista. Embora as exceções a este padrão nunca tenham deixado de ser muito numerosas, eram sempre vistas como desvios a serem sanados em algum momento do futuro. Mas eles devem ser entendidos como o resultado de processos históricos contraditórios, em que os excluídos do projeto oligárquico original brigaram por sua inclusão e a obtiveram à medida que suas lutas  obtiveram sucesso. Uma maneira de visualizar este processo é por meio da conquista do sufrágio. Foi a pressão de trabalhadores, de mulheres, de minorias raciais e de outros grupos deixados à margem que expandiu o acesso à franquia eleitoral, o que era acompanhado com temor por alguns e esperança por outros – temor e esperança fundados na mesma crença de que, caso a igualdade política fosse alcançada, não tardaria o dia em que as maiorias dominadas a usariam para promover uma transformação social profunda. Como sabemos, não foi o que ocorreu.

A concessão dos direitos políticos contribuía para apaziguar conflitos, servia para a validação de todo o sistema e fornecia o feedback necessário para aquilatar os níveis de insatisfação social e, assim, dimensionar as concessões que precisavam ser feitas. Ao mesmo tempo, reduzia a legitimidade de outras formas de ação, mais coletivas e mais ofensivas: para que fazer barricadas, ocupações, greves e motins se era possível expressar a opinião pelo voto? Por suas próprias características, de chamamento a uma participação política isolada e mesmo secreta, o mecanismo da votação conduz ao individualismo, em oposição à ação coletiva de classe, e à acomodação dentro do sistema vigente.

Ainda assim, a democracia liberal encarnou a ideia de que a voz dos dominados precisava de um espaço para ser ouvida no processo de tomada de decisões. Isto levou a uma série de mudanças reais, menos ou mais profundas de acordo com as circunstâncias, culminando no projeto do Estado de bem-estar social, em que o dinheiro dos impostos – isto é, uma taxa retirada da remuneração do capital – sustentava políticas cujo propósito, no fim das contas, era minorar a insegurança existencial da classe trabalhadora sob o capitalismo, garantindo patamares mínimos de sobrevivência (educação para os filhos, acesso à saúde, assistência na velhice). E surpresas vindas de baixo podiam desorganizar o jogo político das elites, permitindo que outsiders alcançassem cargos de poder, por vezes com programas que contrariavam o consenso dos grupos dominantes.

A democracia pode ter sido necessária para a reprodução a longo prazo do capitalismo, protegendo a classe burguesa de sua própria voracidade e obrigando-a a pagar a conta da estabilidade do sistema. Mas não foi seu projeto – como mostra, aliás, sua oposição a todas as políticas redistributivas e seu renitente desejo de reduzir o espaço da decisão democrática, como veremos em seguida.

O regime que se construiu no Ocidente, assim, foi marcado por um equilíbrio instável entre duas pressões contraditórias. De um lado, o poder do voto, concedido às maiorias, que se fazia sentir porque era o caminho necessário para quem quer que buscasse exercer o poder político. Do outro, o poder de veto de grupos minoritários que controlavam recursos escassos – em primeiro lugar, a burguesia, cuja capacidade de influência se manifesta por uma série de mecanismos, menos ou mais sutis.

Não vou me estender aqui sobre os recursos desproporcionais de que a burguesia dispõe para influenciar as decisões públicas. Ela controla as decisões de investimento, das quais depende a saúde da economia, a arrecadação de tributos e, portanto, o financiamento do próprio Estado. Ela controla os recursos financeiros que são o combustível das campanhas eleitorais – para ficar em um único exemplo, as campanhas nos Estados Unidos, no ano passado, consumiram quase US$ 16 bilhões. Estes mesmos recursos levam ao controle dos meios de comunicação, não importa se estamos falando da mídia tradicional ou das big techs, com isso orientando a mentalidade do público. Permitem a contratação de lobistas; nos Estados Unidos, mais uma vez, 98% do dinheiro gasto em lobby se vincula aos interesses de diferentes frações do capital. Permitem ainda a corrupção pura e simples. Por fim, mas não menos importante, o capital organiza a existência da classe trabalhadora, socializando-a de forma inadequada para a ação política democrática, já que o trabalhador não é chamado a participar da tomada de decisões que o afetam, é premiado pela obediência e não pela autonomia. E as condições de vida impostas aos trabalhadores (e ainda mais às trabalhadoras) retiram deles o recurso primário para a participação política, que é o tempo livre.

A democracia é “burguesa” não porque realiza o projeto original da burguesia ou porque suas práticas e instituições encarnam valores especificamente burgueses, mas porque se adapta à dominação da classe burguesa e se organiza em um Estado que é burguês. Como escreveu Claus Offe, trata-se de “um Estado capitalista – e não somente como ‘um Estado dentro da sociedade capitalista’”. Isto é, um Estado em que a dominação de classe está inscrita em sua estrutura.

As democracias se estabeleceram no mundo capitalista, assim, como frutos da luta popular, mas em cenário definido pela dominação burguesa. São democracias limitadas, insuficientes, enviesadas; um purista diria que é inadequado até mesmo usar a palavra “democracia” para classificá-las. Nem por isso são irrelevantes. E sentimos isso no momento em que elas nos faltam.

Vivemos um período de desdemocratização, no Brasil como no mundo. As democracias entram em declínio por conta de diversos processos simultâneos e interligados. O que eles têm em comum é a redução da capacidade de pressão da classe trabalhadora.

Ao longo da segunda metade do século XX, houve um esforço deliberado para esfriar a agitação operária nos países desenvolvidos, o que envolveu esforços de reorganização da produção (sobretudo com a fragmentação das grandes plantas fabris e a transferência de etapas para empresas menores) e uma ofensiva ideológica, com reforço do individualismo e da concorrência de todos contra todos e com a afirmação onipresente das virtudes insuperáveis do mercado. Mudanças tecnológicas, não de todo desconectadas deste esforço de fragilização da classe trabalhadora, abriram as portas para substituição de partes expressivas da mão de obra por maquinário e para o deslocamento das cadeias produtivas, na chamada “globalização”. Ambos os processos reduzem o potencial de resistência dos assalariados.

Um elemento adicional foi a vitória do bloco estadunidense na Guerra Fria. Ainda que a União Soviética tivesse, há muito, deixado de fornecer um modelo político atraente, ela representava uma demonstração concreta de que outra forma de organização econômica era possível – e fornecia apoio material aos opositores do mundo capitalista.

O que estou apontando é que o refluxo democrático acompanha a redução da força da classe trabalhadora. Conforme o capital amplia seu império sobre as decisões estatais e sua tutela sobre os governos eleitos, mais os rituais democráticos se tornam carentes de efetividade. As políticas de austeridade são a marca de um novo funcionamento de Estados ainda formalmente democráticos, mas nos quais a vontade da maioria pesa muito pouco – ou não seriam adotadas as medidas que reforçam os sacrifícios de trabalhadores e pensionistas, transferindo ainda mais riqueza para banqueiros e especuladores. A vontade popular manifestada nas eleições perde força; na leitura de Wolfgang Streeck, vivenciamos a transição do “Estado fiscal”, aquele que vivia da arrecadação de impostos e que por isso, como visto, precisava garantir o nível de investimento na economia, para um “Estado da dívida”, que precisa rolar seus empréstimos. Os governos devem responder aos credores da dívida pública antes do que ao eleitorado. As políticas de austeridade determinadas pelo capital financeiro, a fim de proteger sua própria remuneração, aniquilam a possibilidade de que o Estado adote medidas redistributivas ou mesmo compensatórias, com um ônus enorme sobre trabalhadores, pensionistas e populações marginalizadas.

O declínio das políticas sociais e das medidas de proteção ao trabalho se traduz no aumento da concentração da riqueza em todo o mundo capitalista, percebido a partir das últimas décadas do século XX, como demonstrou Thomas Piketty. Em resumo, uma burguesia que sente seu domínio como invulnerável, desinteressada de pagar a conta do apaziguamento do conflito social, opta por definir patamares cada vez mais elevados para a remuneração do capital, comprimindo salários e políticas sociais.

No processo, decisões econômicas fundamentais foram sendo protegidas contra possíveis pressões, o que se deu tanto por meios ideológicos (a visão de que “não há alternativa”) quanto institucionais (a transferências de poder para agências estatais “autônomas”, isto é, que não respondem nem indiretamente ao eleitorado. Na síntese de Streeck, as políticas adotadas pelos governos foram desconectadas da política como disputa para chegar ao poder. Em suma, transitamos de democracias concorrenciais assimétricas, em que as desigualdades materiais frustravam a promessa de igualdade política, para democracias menos-que-formais, sob a tutela quase explícita dos proprietários – que vetam políticas governamentais, derrubam funcionários eleitos (como no golpe de 2016, no Brasil) ou desvirtuam resultados de plebiscitos (como em 2015, na Grécia).

A Ciência Política só reconheceu a crise quando o processo eleitoral levou ao poder líderes autoritários e demagógicos como Donald Trump, Boris Johnson, Narendra Modi, Jair Bolsonaro ou Javier Milei. Mas isso foi consequência da desdemocratização, não causa. É a resposta a uma situação em que o povo sente que o Estado não responde mais, nem minimamente, a seus reclamos e em que uma nova extrema-direita, navegando com habilidade em um novo ambiente comunicacional, se apropria com competência do discurso de oposição ao “sistema” e da retórica do “povo” contra a “elite”.

Ao mesmo tempo, de forma paradoxal caso levemos a sério o seu discurso, o projeto que esta nova extrema-direita implementa representa a radicalização da impermeabilidade do sistema político às pressões vindas de baixo. Ela recebe o apoio de grandes corporações, do consenso do “mercado”, de multibilionários que não escondem mais a ambição de moldar o mundo de acordo com sua exclusiva vontade. É uma sociedade em que rui não apenas a democracia, mas a própria ideia de uma regulação pública superior às determinações privadas dos poderosos, ao ponto e alguns autores já falarem em uma transição do capitalismo ao tecnofeudalismo.

A crise da democracia tem muitas causas – mas uma delas, dentre as essenciais, é a alteração na correlação de forças entre as classes. A crise da teoria democrática também tem muitas causas. Uma das principais é a cegueira deliberada em relação à análise de classes.

O espaço que as questões de classe ocupavam no pensamento crítico foi gradativamente sendo ocupado por outras clivagens sociais relevantes, como as vinculadas a raça, sexo/gênero e sexualidade. A introdução destas preocupações é, em si mesmo, positiva, mas não o fato de que classe perdeu importância – sendo simplesmente esquecida ou relegada a uma nota de rodapé, a uma referência meramente protocolar, uma “citação obrigatória”, como é o caso de muitos estudos baseados na ideia de interseccionalidade.

Há certamente diversas razões para o fenômeno. O dogmatismo de correntes marxistas, que recusavam pertinência a qualquer outra clivagem que a não de classe, levaria naturalmente a uma reação. Feministas socialistas diziam que o casamento entre marxismo e feminismo correspondia a um arranjo tradicional, em que o marido (o marxismo) monopolizava todas as prerrogativas. Assim, a expansão do foco para outras formas de dominação social, cujo impacto na vida vivida das pessoas é inegável, só pode ser bem-vindo.

A negação da classe como categoria central (não única, nem mesmo a única central, mas central mesmo assim), no entanto, responde a outros fatores. É possível pensar em um elemento psicológico, como indicam as citações que fiz no começo desta fala. A impressão é de que as hierarquias raciais ou de gênero são desafiadas com maior sucesso; de que foram conquistados avanços, ainda que insuficientes, na posição de mulheres, de pessoas negras ou de LGBTs, ao passo que a classe trabalhadora há muito tempo só perde direitos. Deixar o tema de lado é uma reação compreensível, mas não justificável. Seria como abandonar a pesquisa sobre o colapso climático porque governos e empresas nunca estão dispostos a fazer sua parte. Uma ciência digna do nome tem que enfrentar a realidade tal como ela é.

Mais palpáveis e certamente ainda mais importantes, no entanto, são os incentivos objetivos colocados em marcha durante a fase do “neoliberalismo progressista”. Enquanto o foco em questões de gênero ou de raça, devidamente enquadradas por uma perspectiva de acomodação ao mundo existente, alavancava carreiras acadêmicas, cargos na burocracia ou mesmo na iniciativa privada, visibilidade midiática, bolsas e financiamentos, a insistência na análise de classes levava ao oposto.

Não se trata (necessariamente) de oportunismo, mas de reagir à estrutura de oportunidades do campo. E, conforme algumas temáticas sobem e outras somem, a percepção de sua importância intrínseca muda. Uma pesquisa no Google Scholar devolveu quase 450 mil textos sobre desigualdade de gênero, de 2000 até hoje. Para desigualdade de classe, foram apenas 20 mil – uma diferença de 22,5 vezes.

Mas o fato é que nenhum projeto de emancipação humana será sólido se não contemplar a ultrapassagem do capitalismo. Reduzir a pauta da igualdade de gênero ou da igualdade racial à distribuição mais equitativa da possibilidade de acesso às posições vantajosas na sociedade iníqua em que vivemos é garantir que a sobrecarga de exploração  sobre  mulheres  e  pessoas  negras  na  base  da  pirâmide  social não será alterada. E é também, para voltar ao tema específico que animou esta fala, um enfoque que não é capaz de enfrentar as questões que cercam o estreitamento dos experimentos democráticos e o esgotamento de suas teorias.

Como dizia um célebre autor alemão barbudo do século XIX, não se trata apenas de interpretar o mundo, mas de transformá-lo. Para isso, a análise de classes continua sendo parte essencial de nosso arsenal teórico. E a conclusão inevitável é que o enfrentamento do capitalismo é indissociável da luta pela democracia.


* Professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB)