Em março/22 a inflação atingiu seu maior índice desde 1994

07/06/2022 14:27

Lauro Mattei[*]

Inicialmente cabem alguns esclarecimentos gerais sobre esse assunto diante de algumas confusões que ocorrem costumeiramente. A taxa de inflação procura mensurar o aumento do nível dos preços de bens e serviços em um determinado período. Mas a inflação só ocorre quando existir um crescimento generalizado do nível de preços, uma vez que há situações em que apenas alguns preços aumentam, enquanto os preços dos demais segmentos permanecem estáveis. Neste caso particular, não se pode falar em inflação, mas sim em aumentos de preços daquele setor específico. Assim, a inflação reflete a média dos aumentos ou quedas dos preços ao longo de um período (um mês, por exemplo) e é apresentada em forma de um índice que leva em consideração os preços dos bens e serviços mais importantes para o conjunto da população. Atualmente o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) é adotado pelo país como indicar do movimento inflacionário[1].

As causas da inflação são decorrentes de diversos fatores econômicos. Na visão dos economistas tradicionais, as explicações sempre se restringem a dois aspectos: excesso de demanda, ou seja, quando muitos desejam comprar determinados bens e a produção dos mesmos é escassa; ou então a explicação da inflação recai sobre os choques de oferta, como é o caso da produção agrícola que depende das condições climáticas. Mas a visão não convencional mostra que há outros aspectos envolvidos no processo inflacionário, destacando-se a questão da emissão excessiva de moeda por parte dos governos e as causas psicológicas, que ocorrem quando um agente eleva seus preços por entender que os demais adotarão o mesmo comportamento.

Em termos dos impactos da inflação, um dos aspectos mais importantes é aquele causado na população, particularmente nos segmentos que sobrevivem dependendo dos salários recebidos. Assim, quando o índice inflacionário for maior que o aumento dos salários haverá queda do poder de compra dos assalariados. Na prática, a inflação sempre prejudica mais os assalariados porque normalmente os trabalhadores têm mecanismos mais frágeis de proteção social, especialmente em momentos de aceleração generalizada dos preços, como é a situação atual do Brasil. Neste caso, pode-se dizer que a inflação elevada afeta negativamente a distribuição de renda na sociedade, de tal modo que é a camada mais pobre da população a mais afetada nos períodos inflacionários. Mas a inflação expansiva também é prejudicial para o sistema econômico como um todo, uma vez que ela inibe as decisões de investimentos, além de gerar incertezas entre os agentes econômicos sobre o futuro, fatores que afetam o nível de investimentos e resultam em baixas taxas de crescimento, como novamente é o caso do Brasil atual.

Após esses esclarecimentos gerais, passamos a analisar o cenário inflacionário brasileiro nos períodos recentes. A Tabela 1 apresenta o comportamento da inflação nos últimos doze meses em duas dimensões: a primeira mostrando a variação mês a mês e a segunda a inflação acumulada nos últimos 12 meses. Em primeiro lugar, é importante destacar que o índice da inflação do mês de março/22 atingiu o maior patamar em 28 anos, sendo a maior inflação mensal desde março de 1995. Em grande medida, esse aumento da inflação a partir de 2021 está sendo puxado pela elevação dos preços dos combustíveis, particularmente da gasolina, que nos últimos doze meses aumentaram 27,5%, e do óleo diesel. Esses aumentos dos combustíveis acabaram gerando impactos altistas nos preços dos bens de outros setores e provocaram uma disseminação generalizada de expansão dos preços.

Tabela 1: Inflação mês a mês e acumulado em 12 meses

tabela1L           Fonte: IBGE-IPCA

Essa característica de generalização dos preços foi captada pela última pesquisa do IBGE em oito dos nove grupos de produtos e bens pesquisados. Neste caso, destacam-se os aumentos dos grupos de transportes (3,02%), alimentos e bebidas (2,42%), vestuário (1,82%), habitação (1,15%) e saúde e cuidados pessoais (0,88%).

A consequência dessa pressão altista dos preços da maioria dos grupos de bens e produtos que compõem o IPCA é que o país se encontra no segundo ano seguido com a inflação em patamares acima da meta fixada pelo governo, ou seja, o governo fracassou no controle da inflação à luz do teto por ele estabelecido. Tanto é assim que o relatório da OCDE, divulgado no início de maio/22, mostrou que o Brasil é o quarto país com maior taxa de inflação dentre as nações que fazem parte do G20.

O gráfico 1 mostra o movimento mensal cíclico desse índice, particularmente nos três primeiros meses de 2022 quando ocorreu uma grande aceleração da inflação mensal,  com o pico sendo atingido em março/22. No conjunto do período considerado nota-se que ocorreu um movimento expansivo do índice entre junho/21 e outubro/21, o qual foi repetido de forma mais intensa entre os meses de janeiro e março/22.

Gráfico 1: Evolução mensal da Inflação em 12 meses

grafico1L

O gráfico 2 mostra a evolução anual da inflação entre 2003 e 2022. Neste caso, se observam dois períodos de inflação elevada (acima de 10%). O primeiro diz respeito à grande recessão econômica entre 2014-2016, uma vez que já no ano de 2014 a economia brasileira estava esboçando sinais de crise, a qual se instalaria fortemente nos dois anos subsequentes. De um lado, notava-se que a inflação estava entrando em uma nova fase aceleracionista, ao passar de 5,84% (2012) para 6,41% (2014) e, de outro lado, a atividade econômica esboçava uma retração, com o PIB apresentando crescimento de apenas 0,5% em 2014. Esse cenário foi agravado pelo Golpe Jurídico-Parlamentar que ocorreu entre abril/maio de 2016, uma vez que a proposta de ajuste fiscal encaminhada pelo governo Dilma II não prosperou no Congresso Nacional ao longo de todo ano de 2015. Com isso, o déficit público aumentou ao mesmo tempo em que o governo emitiu sinais de descontrole do processo inflacionário, tanto pelo lado da pressão de custos, sobretudo nos setores industriais, como pelo movimento altista de preços, sobretudo dos combustíveis, energia, água e transportes. Somam-se a esses fatores, ainda, a presença da inflação inercial derivada das pressões altistas na esfera de prestação de serviços e a alta do Dólar, que provocou um duplo efeito: por um lado, encareceu as importações e, por outro, afetou os preços dos produtos exportáveis no mercado doméstico.

            Gráfico 2: Evolução anual da inflação no Brasil entre 2003 e 2022

grafico2L

   Fonte: IBGE- IPCA * Até abril/22

O resultado desse processo se traduziu em uma brutal recessão econômica, conforme Tabela 2. Apesar do resultado pífio apresentado em 2014, o PIB ainda conseguiu se manter positivamente, devido à contribuição do setor serviços, uma vez que o desempenho do setor industrial foi negativo. Entre 2015 e 2016 os efeitos da recessão econômica foram danosos para todos os segmentos sociais, particularmente para a classe trabalhadora que foi fortemente afetada pelo problema do desemprego e da queda dos níveis de renda.

Tabela 2: Evolução trimestral do PIB entre 2014 e 2017 (em %) 

       tabela2L

 Fonte: IBGE – Contas Nacionais

No ano de 2016 especificamente, a queda do PIB ocorreu de forma generalizada, uma vez que atingiu todos os três setores de atividade econômica considerados pelo IBGE. Essa retração das atividades econômicas provocou uma redução de 44% do PIB per capita de 2016, comparativamente ao ano de 2015. Após dois anos consecutivos com resultados negativos, o PIB cresceu 1,0% em 2017, revelando certa recuperação econômica, todavia sem repor as perdas ocasionadas durante os dois anos de resultados negativos. No ano de 2017 o setor agropecuário foi o grande responsável pela expansão do crescimento, mesmo tendo uma participação na composição do PIB de apenas 5,3%.

O segundo período corresponde aos anos 2021 e 2022 do Governo Bolsonaro, os quais mostram uma expansão da inflação acima da meta por dois anos seguidos. O patamar atual (inflação acumulada de 12,13% em abril/22) indica que é bastante provável uma taxa acima de dois dígitos, como ocorreu no ano anterior, quando o índice inflacionário praticamente se igualou ao verificado em 2015. Além disso, como todas as pesquisas do movimento de preços dos últimos meses revelaram um expansão generalizada em todos os grupos considerados, é bastante plausível também que o país ainda não tenha atingido o “fundo do poço”. Em parte, essa intuição acabou de ser corroborada com as taxas de inflação dos países do G20 divulgadas pela OCDE em 18.05.2022. Neste caso, o Brasil figura como a quarta maior taxa inflacionária dentre todos os membros desse clube.

É importante destacar que esse processo inflacionário provoca impactos muito distintos, em termos sociais. Com base na Carta de Conjuntura nº55 do IPEA relativa ao mês de março de 2022, que analisa a inflação por faixa de renda, é possível mensurar essa diferenciação. Tal documento mostrou que para as famílias de renda mensal domiciliar mais alta (maior que R$ 17.764,49) a variação da inflação foi de 1,24%, enquanto para as famílias de renda mensal domiciliar muito baixa (menor que R$ 1.808,79) essa variação atingiu 1,74%, ou seja, o impacto da inflação nas famílias de baixa renda é muito maior.

Em grande medida, isso decorre da contribuição de cada grupo pesquisado, sendo que no mês em tela as maiores contribuições para a elevação da inflação vieram dos grupos “alimentação e bebidas” e “transportes”. Aqui nota-se novamente que os efeitos são diferenciados por classes de renda. Para as famílias de renda muito baixa a pressão reflete o aumento generalizado dos preços de todos os 16 subgrupos que compõem a cesta de bens alimentar, enquanto a variação do grupo “transportes” reflete os aumentos das tarifas de ônibus, além dos aumentos do gás e energia elétrica. Já para as famílias de renda alta a variação advém do grupo transportes devido ao aumento da gasolina e óleo diesel, além dos elevados preços das passagens aéreas.

Todavia, essa realidade parece não fazer parte da visão do governo atual. Participando em meados de maio/22 da 10ª edição da feira da bananicultura realizada no interior de São Paulo, o Presidente da República afirmou que a inflação atual é consequência das políticas erradas de restrição da circulação das pessoas adotadas para conter a expansão da Covid-19. Para ele, mesmo nestas condições, o Brasil é o país “que menos está sofrendo a questão da inflação”.

Novamente voltou ao assunto dia 27.05.2022, ao participar da convenção dos pastores da Assembleia de Deus em Goiânia (GO). Durante o evento, Bolsonaro assim se manifestou: “Aqui não tem desabastecimento, temos apenas dificuldades. Mas qual a solução para isso aí, a inflação e a crise econômica? É a resiliência, ter fé, ter coragem e acreditar”. Após admitir que não tem um plano para conter a inflação, além de outras dificuldades econômicas, o presidente falou que iria “deixar na mão de Deus “ os problemas econômicos” porque, segundo ele, são impossíveis de serem resolvidos.

Já o Ministro da Economia, participando de um evento promovido pela Arko Advice Traders Club em 19.05.2022, afirmou que o Brasil “já saiu do inferno da inflação” e está numa situação muito boa, ao mesmo tempo em que alguns países, como Holanda e Inglaterra, apenas agora estão “ingressando no inferno também com inflação em 2 dígitos”. Para esse senhor, “o Brasil já sabe o caminho para sair rápido do fundo poço, por isso já está no caminho da prosperidade”. Isto porque, segundo a mesma autoridade econômica, “o Brasil tem o melhor desempenho fiscal de todos os países lá fora”.

Nesta direção, sinalizou que a coalizão de centro-direita do atual governo representa o verdadeiro caminho da prosperidade, uma vez que Brasil está seguindo a Alemanha do pós-guerra e o Japão com os liberais. Para ele, isso “é uma questão de atitude”. Além disso, afirmou que se essa coalizão for vencedora das eleições deste ano, ele deverá continuar comandando a economia do país, mesmo com o “fantasma do socialismo bolivariano do século XXI continuando a assombrar a América Latina”.

Aqueles que acompanham as manifestações públicas desse senhor desde o início do Governo Bolsonaro, especialmente aquelas proferidas durante os dois primeiros anos da pandemia, não devem ficar preocupados com mais esse conjunto estapafúrdio de comentários, tamanha é a distância que suas crenças mantêm em relação ao mundo real. Convenhamos, para um sujeito cujo conhecimento econômico sempre esteve restrito ao funcionamento dos mercados financeiros, não se poderia esperar nada diferente.

É como se retornássemos ao filme de Federico Fellini “E La nave va”, gravado em 1983. Esse é um gênero de filme que apresenta os fatos como sendo supostamente reais, mas que na verdade são falsos.


[*] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT-UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email:l.mattei@ufsc.br

[1] O IPCA é composto por nove grupo de produtos e bens que são pesquisados: alimentação e bebidas; artigos de residência; comunicação; despesas pessoais; educação; habitação; saúde e cuidados pessoais; transportes; vestuário.