Novas irresponsabilidades do governo estadual no controle da Covid-19 em Santa Catarina

16/07/2021 08:49

Por: Lauro Mattei[1]

A política de controle da pandemia executada pelo governo de Santa Catarina apresenta diversas fases que se chocam com as recomendações básicas emitidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Com isso, desde o início da pandemia provocada pelo novo coronavírus no estado (março de 2020), observam-se comportamentos bastante distintos por parte das autoridades públicas estaduais.

Após adotar medidas rígidas para evitar o contágio da população catarinense no mês de março de 2020 – quando a pandemia ainda se encontrava em estágio inicial no país – tais medidas foram flexibilizadas rapidamente nos dois meses seguintes (abril e maio), procedimento que estimulou o primeiro grande surto da doença no período entre junho e agosto, momento em que a doença tomou conta de todo o território catarinense, ou seja, atingiu todos os 295 municípios do estado.

Já os novos regramentos adotados no início de setembro (edição de mais de uma dezena de portarias com regras específicas para uma variedade de atividades) fizeram com que, tanto os casos como as mortes, caíssem para números bastante confortáveis. Com isso, ao final de outubro de 2020 os novos casos diários se situaram abaixo de mil, enquanto os óbitos se reduziram para menos de 10 ocorrências diárias.

Tal situação se reverteu a partir do mês de dezembro de 2020 com a publicação do Decreto 1.027 (18.12.20)[2], o qual flexibilizou um conjunto de atividades visando atender interesses de setores preocupados com a temporada de verão que se avizinhava. De um modo geral, nota-se que naquele momento a pandemia já estava numa trajetória expansiva aguda, sendo que 91% dos leitos de UTI existentes no estado estavam ocupados e em 15 das 16 regiões pesquisadas a doença se encontrava em estado gravíssimo, indicando a necessidade de medidas efetivas de controle da transmissão da doença. Todavia, com esse decreto estimulou-se fortemente a propagação do vírus nos meses seguintes, chegando-se ao caos da estrutura de saúde no mês de março de 2021, quando mais de 136 mil pessoas foram infectadas em um único mês, sendo que 3.527 delas vieram a óbito. Com isso, março se constituiu no mês mais catastrófico da doença no estado até o momento.

Nos meses seguintes foram adotadas diversas medidas que procuravam conter a propagação da doença enquanto estavam sendo dados os primeiros passos relativos à imunização da população (processo que teve início ainda em 18.01.21, mas que vem enfrentando problemas até os dias atuais devido à falta de vacinas em doses expressivas que fossem capazes de promover uma vacinação massiva da população). Tais regramentos, mesmo que limitados no sentido de controlar a virose, foram suficientes para manter a pandemia sobre controle, embora com indicadores sempre se mantendo em patamares elevados.

A realidade da pandemia no estado no início de julho de 2021

Após acompanhar semanalmente a evolução da COVID-19 em Santa Catarina desde o mês de abril de 2020, apresentamos na sequência o comportamento de um conjunto de indicadores para embasar nossas críticas ao Decreto 1.371, de 14.07.2021, que flexibiliza praticamente todas as medidas de controle da pandemia, ao mesmo tempo em que afirma a nova estratégia do governo estadual no combate à Covid-19.

O gráfico 1 apresenta a evolução da média semanal móvel de casos[3] desde o início do ano de 2021, chamando atenção que o patamar verificado em 10.07.21 é ligeiramente inferior ao verificado no começo do mês de fevereiro. Registre-se que após o grande surto contaminatório que ocorreu entre meados de fevereiro até o final de março, o número de casos vem se mantendo em um nível estável, porém bastante elevado. Isso fez com Santa Catarina assumisse a segunda maior taxa de incidência da doença no país a cada 100 mil habitantes.

Por mais que nas últimas semanas tenha sido observada uma tendência de queda desse indicador, o patamar de 2.296 novos casos diários registrado em 09.07.2021 ainda pode ser considerado bastante grave, uma vez que o melhor comportamento dessa curva de contágio durante toda a pandemia foi verificado no mês de setembro de 2020, quando a média semanal móvel ficou ao redor de 900 casos diários. Diante daquele cenário foi possível observar uma melhor organização do sistema estadual de saúde, bem como um alívio para os diversos profissionais da área de saúde diretamente envolvidos com o controle da doença no estado.

Gráfico 1: Média semanal móvel do número de casos diários em SC em datas selecionadas do ano de 2021

G1

Fonte: Boletim NECAT-UFSC, diversos números.

O gráfico 2 apresenta a evolução da média semanal de óbitos diários no ano de 2021, destacando-se o grave problema enfrentado pelo estado nos meses de março e abril, período em que houve uma grande explosão do número de mortes. Essa situação colocou o estado catarinense em 10º lugar dentre as unidades da federação com o maior número absoluto de óbitos.

Desconsiderando-se esses meses de altas ocorrências, que na verdade refletem o grande processo de contaminação que ocorreu nos períodos imediatamente anteriores, observa-se que o patamar de óbitos registrado em 09.07.21 é superior aos números contabilizados em janeiro até meados de fevereiro. Isso revela que o indicador de 43 mortes diárias ainda é produto de um processo elevado de contágio existente no estado.

Portanto, mesmo que a média semanal móvel de óbitos tenha apresentado uma tendência de queda recentemente, é importante destacar que o atual patamar do indicador ainda é extremamente elevado, comparando-se que essas mesmas ocorrências em períodos anteriores atingiram valores abaixo de 10 mortes por dia.

Gráfico 2: Média semanal móvel do número de óbitos diários em SC em datas selecionadas do ano de 2021

G2

Fonte: Boletim NECAT-UFSC, diversos números.

O Gráfico 3 apresenta a evolução da taxa de transmissão da doença ao longo do ano de 2021. O número de reprodução é o indicador que mede a taxa de transmissão do vírus na população. Esse número muda caso algumas dessas características (vírus, ambiente e população) sejam modificadas. Considerando-se que o vírus permaneça estável (sem mutação significativa), mudanças no ambiente ou na população alteram o número de reprodução, (que passa a ser representado por “Rt” e denominado número reprodutivo efetivo). Quando esse número efetivo de reprodução (Rt) é igual ou maior que 1, significa que o agente infeccioso continua circulando fortemente e necessitando de medidas de controle[4].

De um modo geral, verifica-se que esse indicador, após sofrer fortes acelerações nos meses de fevereiro e março, acabou caindo para níveis mais baixos até o final de abril, quando a taxa de transmissibilidade da doença permaneceu próxima a 0.90. Todavia, desde então tal taxa sofreu uma reaceleração e praticamente se estabilizou no patamar de 1.0, ainda que apresentando diferenças importantes entre diversas mesorregiões do estado. Isso significa que cada 100 pessoas no momento ainda estão transmitindo a doença para outras 100 pessoas.

Em síntese, pode-se afirmar que o patamar atual está indicando que a transmissibilidade da doença no conjunto do estado ainda se encontra em situação muito grave, requerendo a adoção de medidas restritivas que sejam capazes de achatar a curva de contágio e estabelecer as condições para reduzir o coeficiente de incidência da doença, bem como o próprio coeficiente de mortalidade.

 Gráfico 3: Evolução da taxa de transmissão do vírus (Rt) no estado de SC em datas selecionadas de 2021

G3

Fonte: Boletim NECAT-UFSC, diversos números.

O Gráfico 4 apresenta a evolução dos casos ativos a partir do mês de maio de 2020 até os dias atuais. Considerando-se apenas o ano de 2021, nota-se que entre os meses de janeiro e fevereiro esse indicador se estabilizou ao redor de 16 mil pessoas contaminadas. A partir daí ocorreu uma verdadeira explosão dos casos ativos com taxas de crescimento que nunca tinham ocorrido ao longo de um ano da pandemia, sendo que ao final de abril esse indicador se estabilizou no patamar de 19 mil casos ativos, valor que sofreu ligeiros aumentos nos meses de maio e junho, sendo que ao final desse último mês o indicador se situou no patamar de 21 mil registros ativos. Com um pequeno recuo no início de julho, os casos ativos se encontram atualmente em torno de 18 mil, patamar ainda superior ao verificados nos dois meses iniciais do corrente ano.

Gráfico 4: Evolução dos casos ativos em Santa Catarina entre 21.05.2020 e 09.07.2021

G4

Fonte: Boletins NECAT-UFSC

Mesmo com as reduções registradas recentemente, o patamar de 18 mil casos ativos continua indicando a existência de uma elevada contaminação da população catarinense e a possibilidade concreta de novas sobrecargas no sistema estadual de saúde.

A mudança na estratégia de controle da doença em SC

No dia 14.07.2021 o Governo de Santa Catarina promulgou o Decreto 1.371, revogando os Decretos 562/2020 e 1.276/2021, os quais regravam diversas atividades visando o controle da pandemia no estado. Tomando como referência a “melhoria do cenário epidemiológico” e o “avanço da vacinação”, o governo estadual mudou sua política de enfrentamento da pandemia. Tal mudança está explícita no art. 5º do referido decreto, ao se afirmar explicitamente que a partir de agora “a vacinação da população catarinense passou a ser a medida principal de enfrentamento da pandemia de Covid-19”. Esse ponto será retomado nas considerações finais.

Além dessa mudança estratégica, houve uma liberação geral das atividades de diversos setores (cinemas, teatros, museus, congressos, palestras, bares, restaurantes, cafés, etc.), os quais não terão mais restrições de horários de funcionamento. No caso da administração pública (direta e indireta) foi determinado o retorno das atividades presenciais, o qual será regulamentado pela Secretaria de Estado da Administração (SEA). Por fim, foi mantida apenas a suspensão da presença de público em atividades esportivas (públicas e privadas), bem como mantida a recomendação de que eventos esportivos com mais de 500 participantes deverão ser autorizados à luz da matriz de risco.

Com isso, autoridades que fazem parte do governo estadual acreditam que a nova fase “está atrelada às práticas de convívio seguro que todos conhecem atualmente”.

Considerações Finais

O ponto principal a ser destacado em relação ao novo decreto governamental de combate à pandemia diz respeito à mudança de sua forma de atuação nesse combate, ou seja, todos os esforços a partir de agora recairão sobre a vacinação, com esgotamento quase completo de medidas restritivas relativas às atividades econômicas e sociais. Tal estratégia partiu de uma leitura que o quadro epidemiológico melhorou muito nos últimos períodos.

Sobre esse aspecto, conforme demonstramos anteriormente por meio de quatro indicadores centrais, esse quadro de fato apresentou ligeira melhora nas últimas semanas, mas não a tal ponto que as medidas que conduziram a esse cenário já pudessem ser completamente abandonadas. A nosso ver, esse é um equívoco que poderá cobrar seu preço mais adiante, como aconteceu com o famigerado decreto de dezembro de 2020.

A outra justificativa recaiu sobre a evolução da vacinação no estado, enfatizando-se que até o final de julho a cobertura vacinal completa deverá atingir 30% da população catarinense. Sobre este ponto deve-se destacar que, além de extremamente otimista, tal meta dificilmente será alcançada. Isto porque, após cinco meses de vacinação, apenas 15% da população catarinense está imunizada. Em grande medida, essa letargia está atrelada às faltas constantes de vacina que impedem um processo de imunização mais célere. Portanto, é possível afirmar que a “vacinação” poderá não ter o papel superestimado de controle da pandemia, como foi apostado pelo governo estadual.

O outro fator utilizado para justificar o decreto flexibilizador foi a existência, no momento, de 200 leitos de UTI disponíveis. Neste caso, deve-se mencionar que somente na última semana o sistema estadual de saúde conseguiu por fim a uma lista de espera por esse tipo de leito que existia desde o início de março. Ou seja, depois de quatro meses desse problema – inclusive levando à morte de inúmeras pessoas – quase que em um toque de mágico esse item virou justificativa para o novo decreto. Em grande medida, esse não parece ser um argumento adequado, pois na eminência de um novo surto decorrente da variante Delta, essa disponibilidade poderá sumir rapidamente.

Por fim, é importante destacar a percepção sobre o decreto por parte de alguns atores que representam interesses econômicos, que se manifestaram logo após a divulgação do mesmo. Neste caso, chama atenção as falas de representantes da área do turismo, os quais vêm no decreto uma boa oportunidade para a preparação da “próxima temporada de verão”, pouco se importando com a quantidade de vidas humanas que a pandemia continua ceifando diariamente. Isso pouco vem ao caso, afinal justificam seus posicionamentos afirmando que “até outubro a população acima de 18 anos estará toda vacinada”.

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, reafirmamos que ainda não era o momento para flexibilizar e abandonar medidas restritivas de atividades econômicas e sociais como instrumentos de controle da pandemia. Isto porque, diante de todos os problemas reais enfrentados pelo Plano de Imunização, fica evidente que apostar todo o controle da doença neste quesito poderá se revelar em mais um grande equívoco, como tantos outros que foram cometidos pelo governo estadual ao longo desses últimos 16 meses de convívio com a COVID-19.


[1] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br

[2] Deve-se registrar que este foi um período muito delicado do controle da pandemia no estado, uma vez que o assunto foi fortemente judicializado.

[3] O uso desse indicador é recomendável porque normaliza os dados semanais que podem ser afetados por situações operacionais de registros elaborados pelo sistema estadual de saúde.

[4] Na pandemia da Covid-19 as medidas mais recomendadas pela OMS foram a higienização das mãos, o uso de máscaras e não aglomeração social. Mesmo com o advento da vacina, tais cuidados foram mantidos pelas autoridades sanitárias até que, no mínimo, 70% de toda a população de um determinado país esteja totalmente imunizada.