O círculo virtuoso da recuperação econômica

04/12/2023 18:20

Fernando Nogueira Da Costa*

Michal Kalecki (1899-1970), economista polonês, vanguardista na sua Macroeconomia dinâmica no ensaio Mecanismo de Recuperação Econômica, publicado em 1935, analisa a seguinte sequência. “Os empresários, ao se engajarem em investimento adicional, impelem para os bolsos de outros capitalistas os lucros iguais aos seus investimentos – e tornam-se devedores desses capitalistas em igual montante através dos bancos”.

Antes, o problema era se os lucros resultantes da redução de custos salariais seriam investidos. Agora, paradoxalmente, os lucros são investidos antes mesmo de existirem! Ocorre através da antecipação propiciada pelo crédito (de confiança) aos empresários. Caso os lucros não sejam investidos, não podem ser mantidos, porque são eliminados pela subsequente queda da produção e dos preços. A criação de poder de compra para financiar o investimento adicional eleva a produção do baixo nível atingido durante a depressão e, assim, cria lucros iguais a esse investimento.

O aumento da produção causará um acréscimo na demanda por dinheiro em circulação e requererá uma tolerância por parte do Banco Central. Pior será este reagir, automaticamente, pensando em “expectativas desancoradas” (avant la lettre), quanto ao alcance da meta de inflação, e elevar a taxa de juro básica para um nível exagerado. Provocará o declínio do investimento total em um montante igual ao investimento adicional, causado, por exemplo, por inovação tecnológica. Em consequência, não haverá subsequente acréscimo do investimento e melhoria da situação econômica.

Portanto, a condição para a recuperação econômica, inclusive durante uma longa estagflação, como a vivenciada na economia brasileira desde os anos 1980s, é a taxa de juro básica de referência, sobre a qual há um acréscimo de spread para determinar as taxas de juro de empréstimos, não ser elevada automaticamente em resposta a uma demanda maior por dinheiro. O Banco Central do Brasil faz isto independentemente de ser demanda por crédito aos consumidores ou crédito aos investidores.

Quando a inovação tecnológica se difundir e dissipar o estímulo ao investimento, a depressão não será inevitável. Nesse meio tempo, a maior rentabilidade vigente na economia como um todo terá dado como resultado uma elevação sustentada do investimento. Este, em função da expectativa de maior rentabilidade, entrará em cena, enquanto sairá de cena o efeito da nova invenção ou inovação disruptiva.

Caso a economia se estabilizar no fundo da depressão, em um nível muito baixo de atividade econômica, o investimento pode ter caído de forma a nem mesmo propiciar a reposição do antigo equipamento de capital. Só depois da destruição por obsoletismo de muito equipamento, em um longo prazo, iniciar-se-á o movimento de recuperação. Devido à eliminação do equipamento obsoleto, a mesma demanda passará a ser atendida por menos estabelecimentos, elevando o grau de utilização da capacidade produtiva disponível. Aumentará, assim, a rentabilidade do restante equipamento de capital e com esse estímulo o nível de investimento também se elevará.

Os recursos financeiros para isso serão fornecidos, seja pela criação de poder de compra adicional em circulação, seja por depósitos nas contas correntes dos devedores, por parte dos bancos credores. A expectativa da demanda por bens de consumo dos trabalhadores recém-empregados causará um maior emprego nas indústrias de bens de consumo populares em um círculo virtuoso. Esse processo cumulativo causará uma firme recuperação sustentada em longo prazo. Caso o investimento começar a exceder aquele nível da necessária reposição de capital fixo, então, aparecerão novamente os freios da expansão econômica.

Durante a depressão, a retirada de equipamento de capital depreciado ou obsoleto foi o começo da recuperação. No caso de ampliação excessiva do equipamento, a ociosidade acaba por provocar a interromper a expansão econômica e dar início à fase descendente. “O processo de parada da expansão é o reverso do processo iniciador da recuperação a partir do fundo da depressão”, afirmou Michal Kalecki. Quando a demanda for atendida por um número crescente de estabelecimentos, como resultado, o grau de utilização dos menos competitivos diminuirá, será acompanhada por um declínio no investimento e resultará em menor rentabilidade geral.

Tal como o acréscimo de investimento, no fundo da depressão, significou o começo da recuperação da produção e do emprego, no caso contrário, haverá uma queda da produção e um aumento do desemprego. Esse movimento “para baixo” (círculo vicioso) se acelerará do mesmo modo como no período da recuperação as tendências ascendentes eram cumulativas. Michal Kalecki salientou: “o objetivo deste ensaio [em 1935] não é o de apresentar uma teoria completa das flutuações econômicas. Procura-se aqui dar uma ideia geral do mecanismo de uma recuperação natural e, particularmente, esclarecer um de seus aspectos”.

O investimento tem um efeito favorável sobre a situação econômica somente no tempo de sua efetivação quando provê uma saída para o poder de compra adicional. O caráter produtivo do investimento contribui para o enfraquecimento e recuperação e, finalmente, estanca, porque a ampliação do equipamento de capital causa o colapso da expansão econômica.

Um paradoxo notável do sistema capitalista é: “a ampliação do equipamento de capital, isto é, o aumento da riqueza nacional, contém a semente de uma depressão no curso do qual a riqueza adicional se comprova ser apenas potencial. Como uma parte considerável do capital permanece ociosa, ela somente torna-se útil na próxima recuperação”. Daí Michal Kalecki trata do problema da intervenção governamental antidepressiva por meio do investimento público.

Depois de estudar o mecanismo do ciclo econômico, faz analogia com o caso no qual a recuperação se inicia com uma nova inovação tecnológica estimulante de alguns empresários embarcar em investimentos para atualização técnica. Com esse objetivo, após fazer uso de poder de compra adicional, via crédito, eles põem em movimento o mecanismo de recuperação.

Esse caso é muito parecido com o da intervenção governamental antidepressiva. Para trocar os estudos de casos, basta substituir os empresários estimulados a investir por causa da inovação pelo governo realizador de investimentos de infraestrutura, por exemplo. Ele é igualmente é financiado por meio de criação do poder de compra adicional, via endividamento público, com o objetivo anticíclico.

Tal como ocorre no setor privado, também no caso do setor público acontece aquilo denominado depois por Richard Kahn (discípulo de Keynes) de efeito multiplicador de empregos e renda. Este novo dinheiro, da mesma forma, quando não está em circulação industrial, é depositada nos bancos para a circulação financeira.

Do lado dos ativos bancários, o débito governamental cresce em forma de carteira de títulos de dívida pública. Do lado dos passivos, há um aumento de depósitos igual aos lucros adicionais surgidos no sistema econômico. Assim, o governo se torna devedor dos capitalistas, através dos bancos, em montante igual ao valor do investimento público efetuado. Existe uma completa analogia entre o caso de intervenção governamental e o caso da recuperação resultante de uma inovação disruptiva.

“Em ambos os casos, a maior rentabilidade da indústria como um todo estimulará o investimento e assim sustentará a recuperação mesmo se o governo, depois, reduzir gradualmente sua atividade de investimento produtivo. Do mesmo modo, uma recuperação iniciada por uma inovação continua apesar do impacto inicial se diluir”.

O padrão adotado de investimento público ser em gasto produtivo ou em gasto social não é essencial para o efeito da intervenção governamental. O importante é esse investimento ser financiado por um poder de compra adicional. A criação de poder de compra para financiamento do déficit orçamentário, independentemente da causa, provoca um efeito similar. A diferença consiste apenas no mecanismo de transmissão desse poder de compra adicional fluir inicialmente para outras indústrias – e daí para outras pelo efeito multiplicador de renda.

A maior atividade de investimento, financiada pela criação de poder de compra pelo sistema financeiro, sustentará a recuperação econômica – e ela continuará mesmo depois de desaparecerem os déficits orçamentários. Isto ocorre graças ao aumento das receitas tributárias resultantes da elevação das rendas e das vendas.

“Depois de algum tempo, o investimento privado encampa o investimento público. A prosperidade ‘artificial’ é substituída por uma ‘natural’. Cedo ou tarde terminará em decorrência da ampliação do equipamento de capital”. Este o ciclo oscilatório em torno de, espera-se, uma tendência de crescimento em longo prazo, segundo Michal Kalecki.

Artigo publicado originalmente no site A Terra é Redonda, em 03.1


*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Brasil dos bancos (EDUSP).

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