O financiamento da educação pública catarinense diante do Novo FUNDEB (Emenda Constitucional nº 108, de 2020)

25/08/2021 11:46

Por: Juliano Giassi Goularti[1] e Luciane Carminatti[2]

A Emenda Constitucional (EC) nº 108 de 2020, que completará seu primeiro ano de vigência no próximo dia 26 de agosto, redefiniu a política de financiamento da educação pública nos seguintes pontos: 1) Aumento da complementação de recursos da União; 2) Retirou nos estados os inativos da educação no computo do mínimo constitucional; e, 3) Estabeleceu uma nova sistemática de partilha na distribuição de receita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS). Para tanto, neste artigo iremos explorar os pontos 2 e 3.

Popularmente denominada de Emenda do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), a EC do novo Fundeb, acrescentou o § 7º ao art. 211 da Constituição Federal (CF/88) determinando que o padrão mínimo de qualidade do ensino terá como referência o Custo Aluno Qualidade (CAQ), que, para ser consolidado, ainda depende de lei complementar. O FUNDEB tornou-se permanente, conforme previsto na CF/88 e na nova legislação infraconstitucional regulamentadora, devido à grande mobilização social e também institucional, com destaque para a Carta de Florianópolis. Este documento é fruto do primeiro encontro Nacional dos Presidentes e Vice-presidentes das Comissões de Educação das Assembleias Legislativas, coordenado pela deputada presidenta da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa, Luciane Carminatti, que trouxe a relatora do Fundeb, na qual foram incorporada propostas importantes para o avanço da educação pública.[3]

No tocante à educação, o art. 212 da CF/88 prevê como fonte de financiamento para Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE) os recursos oriundos de impostos e transferências. Entretanto, muitos entes federados, inclusive Santa Catarina, descumprem os percentuais mínimos com a inclusão dos servidores inativos no cômputo do mínimo constitucional.[4] Assim, parte significativa dos recursos públicos da MDE deixa de ser aplicada nas redes de ensino no estado, como mostra a Tabela 1.

Tabela 1: Aplicação na manutenção e desenvolvimento do ensino

T1

Fonte: Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina – Elaboração dos autores.

Como visto na Tabela 1, é possível constatar manobras contábeis que permitem ao governo do estado de Santa Catarina incluir na MDE ou mesmo na educação a despesa com inativos. Para compreender os efeitos dos gastos com inativos da educação, a Tabela 1 mostra que, em 2020, R$ 210,5 milhões deixaram se ser aplicados. No acumulado 2015/2020 temos a cifra de R$ 1,8 bilhão com pagamento dos inativos e entre 2010/2020 R$ 7,05 bilhões, conforme relatório técnico sobre as contas do governo do estado, exercício de 2020 do Tribunal de Contas.[5] O efeito reverso desses valores é que, na mesma proporção, eles deixam de ser canalizados para a melhoria das redes de ensino público.

Em relação aos gastos com inativos para efeitos do cômputo do mínimo constitucional, alerta-se que com a promulgação da EC nº 108, a qual passou a produzir efeitos a partir de 1º de janeiro de 2021, ficou vedado que para o pagamento de aposentadorias e pensões sejam utilizados os recursos do salário educação. Em suma, “é vedado o uso dos recursos referidos no caput e nos §§ 5º e 6º deste artigo para pagamento de aposentadorias e de pensões” conforme § 7º do art. 212 da CF/88.

Com a exclusão dos inativos no cômputo dos recursos vinculados à educação, em Santa Catarina, abriu a possibilidade da promulgação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 007.5/2021, que estabeleceu a remuneração mínima de R$ 5.000,00 mil aos integrantes da carreira do magistério público estadual, para quem tem graduação plena, especialização, mestrado ou doutorado com carga horária de 40 horas semanais.

Porém é preciso avançar na elaboração do Plano de Cargos e Carreira do Magistério Público Estadual que restabeleça a recomposição salarial da tabela de vencimento que estão defasadas ao logo dos anos, e crie estímulo de formação e aperfeiçoamento profissional continuado com a devida valorização profissional, sendo esta a principal reivindicação da categoria dos profissionais da educação: valorização incluindo a carreira, salário e remuneração.

Em relação à carreira do magistério, destacamos o Requerimento Capeado (RQC) nº 0016.6/2021,[6] de autoria da deputada Luciane Carminatti, por meio do qual se iniciou o processo legislativo relativo à criação de Comissão Mista, formada por membros da Comissão de Educação, Cultura e Desporto; Comissão de Finanças e Tributação; e Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, com a finalidade de propor ao Poder Executivo alterações e melhorias no Plano de Cargos e Carreira do Magistério Público Estadual.

Destarte a isso, a EC nº 108 modificou o texto do parágrafo único do art. 158, que trata da distribuição da quota parte do ICMS arrecadado para os municípios. Conforme a nova redação, o Valor Adicionado Fiscal, que tinha um peso de 75% no critério de distribuição, tem uma redução para 65%. Esse espaço é ocupado pela educação, mas, segundo o texto constitucional, será realizada a distribuição (para os municípios) de, no mínimo, 10 (dez) pontos percentuais com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos.

Pensando nisso, o governo do estado protocolou a PEC nº 004.2, de 2021,[7] reduzindo de 75% para 65% a repartição do valor mínimo a ser repassado ao município, em relação ao Valor Adicionado do ICMS e aumentando de 25% para 35% o valor máximo a ser compartilhado entre os municípios, de acordo com lei estadual. O financiamento da política educacional deve ser inclusivo e eficiente, mas para que isso seja possível, deve-se evitar o desenho de uma política utópica e inexequível na qual a nova partilha de ICMS educacional não segue a lógica da guerra fiscal, ou mesmo da máxima machadiana de “ao vencedor, as batatas”.

O projeto a ser elaborado pelo governo do estado de Santa Catarina, que tem o Grupo de Trabalho (GT) designado pela Portaria P/1587 – SED, de 28/06/2021,[8] inclui como critério de repartição do ICMS e deverá estabelecer indicadores que irá ponderar tanto o tamanho da população, o número de alunos matriculados da rede municipal, a condição socioeconômica dos alunos, à qualidade da educação medida pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), o combate à evasão escolar e outros indicadores a serem construídos.

A educação pública como direito social, com garantia de acesso universal, com permanência e aprendizado, inclusive para aqueles que não tiveram acesso à escola na idade própria, deve ter prioridade na política pública de financiamento. Logo, a EC nº 108 definiu que indicadores devem ter como base a “melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos” de forma a assegurar o atendimento às necessidades de manutenção e expansão, com padrão de qualidade e equidade da educação.

Para a construção destes indicadores que irão formar o “Sistema Estadual de Partilha do ICMS Educacional em Santa Catarina/SEPESC” (nome que provisoriamente estamos chamando), a EC definiu que os estados terão prazo de dois anos para aprovar lei estadual prevista no inciso II do parágrafo único do art. 158 da CF/88. Assim, sobre a construção de indicadores que irão formar o SEPESC, considerando que é um Sistema em evolução e existe a dificuldade inicial de estabelecer fórmulas de cálculos na distribuição de receita. Estabelecemos aqui como proposta indicadores “pontos de partida” e indicadores “ponto de chegada” para a formação do SEPESC enquanto um Sistema contínuo de avaliação e monitoramento dos resultados educacionais para compor a partilha dos 10 (dez) pontos percentuais do ICMS, que hoje totalizam aproximadamente de R$ 600 milhões.

Quanto aos indicadores ponto de partida, defendemos que eles devam ser: 1) Custo Aluno Qualidade inicial (CACi)[9] – (CACi, peso = 0,35%); 2) Número de Alunos Pobres (NAP) na rede municipal de ensino (CadÚnico)/atribui maiores recursos a municípios com mais alunos pobres na rede municipal – (NAP, peso = 0,30%); 3) Condições das Instalações Física das Escolas/CIFE (infraestrutura básica e acessibilidade/espaços para a prática esportiva e recreativa/itens tecnológicos e laboratoriais) – (CIFE, peso = 0,30%); e, 4) Nota de Português e Matemática (NPM) – as provas serão realizadas em Língua Portuguesa (leitura, interpretação e produção de textos) e Matemática (resolução de problemas) – (NPM, peso = 0,5%). No ponto de partida também precisamos levar em consideração o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), realizado periodicamente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).[10]

Já os indicadores ponto de chegada (transição de até três anos), defendemos que eles devam ser: 1) Menor taxa de abandono escolar/prevê incentivos para reduzir o abandono (número de matrículas); 2) Disponibilidade de bibliotecas; 3) Maior porcentagem de alunos em tempo integral; 4) Plano de carreira dos profissionais; 5) Projeto político pedagógico (por exemplo: cumprimento das Metas do Plano Municipal de Educação, relatórios permanente de avaliação e gestão democrática e participativa); 6) Formação continuada dos profissionais da educação; 7) Espaços para prática esportiva e recreativa; e, 8) Alimentação escolar adquirida direta do agricultor familiar.

É importante registrarmos e reconhecermos a iniciativa do estado do Ceará e a respectiva melhoria dos seus indicadores educacionais que são apresentados como documento referência para o debate. Porém, em contraponto, salientamos que as realidades (cultural, social, econômica, etc.) de Santa Catarina são muito diferentes, tanto do ponto de vista do contexto de desenvolvimento quanto da organização das redes públicas de educação. Ademais, para formação de um bom indicador em Santa Catarina, se faz necessário incluir as especificidades de cada município, tais como educação especial, do campo, quilombola, indígena, as classes multisseriadas, entre outros, como também a ampliação do investimento no atendimento da educação infantil, bem como do atendimento em tempo integral por parte dos entes municipais.

Por ora, considerando que é inegável que a PEC estadual nº 004.2, de 2021, irá gerar conflito distributivo entre os 295 municípios catarinense, é importante que o governo do estado atue como mediador estabelecendo garantias de contrapartidas como ônibus escolares, reforma de escolas, disponibilização de materiais didáticos, repasses de verbas para modernização e instalação de laboratórios, dentre outras para aqueles municípios que se sentirem prejudicados. Contudo, ressalvamos novamente: não tem por objetivo a PEC estadual nº 004.2, de 2021, em hipótese alguma, gerar conflito e disputa federativa entre municípios nos moldes da guerra fiscal. Mas sim contribuir para melhorar os indicadores educacionais do estado como fator preponderante do desenvolvimento socioeconômico dos educandos.

Por fim, o Sistema deve ser construído em parceria com os governos municipais, em todas as escolas públicas e os resultados devem ser usados para compor diagnósticos que orientem a definição das metas de aprendizado e as ações de formação para professores. Para que tais mudanças pudessem ser levadas a cabo, a educação teve de ser definida como uma condição necessária para o desenvolvimento socioeconômico do estado.[11]


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do NECAT/UFSC.

[2] Professora, deputada estadual e presidenta da Comissão de Educação da ALESC.

[3] Cf: http://agenciaal.alesc.sc.gov.br/index.php/noticia_single/parlamentares-lancam-carta-de-florianopolis-em-defesa-do-fundeb-e-do-pne

[4] Cf: SOUZA, Fábio Araujo de. Inativos da educação: despesa da educação? Revista Brasileira de Política e Administração da Educação – Periódico científico editado pela ANPAE, [S.l.], v. 35, n. 3, p. 1018, dez. 2019.

[5] Disponível em: https://www.tcesc.tc.br/sites/default/files/RELAT%C3%93RIO%20T%C3%89CNICO%20CONTAS%20DO%20GOVERNO%202020.pdf

[6] Disponível em: http://www.alesc.sc.gov.br/legislativo/tramitacao-de-materia/RQC/0016.6/2021

[7] Disponível em: http://visualizador.alesc.sc.gov.br/VisualizadorDocumentos/paginas/visualizadorDocumentos.jsf?token=194d1d524d645caa4fc32111a275c51157f3d5ced29daadf4b4a0b64e8fde7fb422e20fe4ebd139117334e861cc2751d

[8] Membros indicados: Ministério Público de Santa Catarina (MP/SC): João Luiz de Carvalho Botega (Titular) e Volmir Zolet da Silva Júnior (Suplente); Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (ALESC): Luciane Carminatti (Titular) e Juliano Giassi Goulart (Suplente); Federação Catarinense de Municípios (FECAM): Eliziane Vezintana (Titular); União dos Dirigentes Municipais de Educação de Santa Catarina (UNDIME): Sadi Baron (Titular); Tribunal de Contas de Santa Catarina (TCE/SC): Silvio Bhering Sallum (Titular) e Paulo Tefili Filho (Suplente); Conselho Estadual de Educação de Santa Catarina (CEE/SC): Celso Lopes de Albuquerque Junior (Titular) e Antônio Carlos Nunes (Suplente); Controladoria Geral do Estado (CGE): Magali Geovana R. Campelli (Titular) e Maurício Martins Arjona (Suplente); Procuradoria Geral do Estado (PGE/SC): Rafael do Nascimento (Titular) e Zany Estael Leite Junior (Suplente); Secretaria de Estado da Fazenda (SEF): Paulo Soto (Titular) e Ari Pritsch (Suplente); e, Secretaria de Estado da Educação (SED): Marcos Roberto Rosa (Coordenador), Maria Tereza Paulo Hermes Cobra (Titular) e Maristelee Barbosa de Oliveira (Suplente).

[9] O CAQi será o valor por aluno necessário para manter as condições básicas de oferta e permanência, abaixo das quais o ensino não poderá se dar em qualquer etapa e modalidade da Educação Básica. Já o CAQ será o valor por aluno necessário para manter, em cada sistema de ensino, as condições adequadas de oferta e permanência, para todas as etapas e modalidades da Educação Básica Pública.

[10] Todos estes indicadores devem ser calculados e reajustados ao final de cada ano com validade para o ano subsequente, e publicados e amplamente divulgados pela Secretaria de Estado da Educação.

[11] Para melhor entendimento, recomendamos a leitura do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 235, de 2019, do Sistema Nacional de Educação (SNE), de autoria do senador Flávio Arns (Rede/PR), que está sendo relatado por Dário Berger (MDB-SC). Também sugerimos a leitura do PLP nº 216, de 2019, de autoria da professora Rosa Neide (PT/MT) que também trata de matéria correlata.