O que se esconde na redução recente do desemprego em Santa Catarina

05/04/2023 11:08

Lauro Mattei*

Ao longo dos últimos três anos (2020-2022) o NECAT fez um acompanhamento detalhado e sistemático dos impactos da COVID-19 sobre o mercado de trabalho em Santa Catarina, enfatizando tanto os setores mais afetados como aqueles que melhor reagiram diante do cenário pandêmico. Recentemente (final de fevereiro/23) o IBGE divulgou a PNAD Contínua com os resultados do quarto trimestre de 2022 encerrado no mês de dezembro do referido ano. No caso particular de Santa Catarina (SC), destaca-se um conjunto de indicadores bastante positivos, os quais foram muito celebrados por autoridades governamentais, entidades empresariais e também por muitos analistas do setor, todos enaltecendo o fato de SC apresentar a menor taxa de desemprego do país. Todavia, para que vem analisando o comportamento do mercado de trabalho catarinense há mais tempo e não apenas de forma meramente pontual, torna-se relevante ir mais além e destinar um olhar mais profundo sobre o comportamento de outros indicadores que revelam a continuidade da precarização do mundo do trabalho no estado, ponto central que se buscará aprofundar neste artigo.

Antes, porém, será feita uma breve resenha com base em publicações do NECAT sobre o assunto, realçando a situação do mercado de trabalho catarinense durante a pandemia até o último trimestre de 2022. Registre-se que, contrariamente a outras crises econômicas e políticas, a queda brusca na produção a partir de março de 2020 provocou efeitos imediatos sobre o nível de emprego em todas as unidades da federação, destacando-se que o ritmo de desaceleração do mercado de trabalho não tinha se manifestado de tal magnitude na história recente do país. Tal cenário requer que análises particulares do tema sejam coadunadas com o desenrolar da pandemia no âmbito do país, uma vez que a Covid-19 provocou algumas distorções em indicadores mais usuais, como níveis de ocupação e desocupação, em função de possíveis efeitos de medidas macroeconômicas para conter os impactos da pandemia.

Assim, no artigo “Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível?”, de autoria de Vicente L. Heinen e Lauro Mattei e publicado no blog do NECAT em abril de 2021 (www.necat.ufsc.br/blog), os autores mostraram que a metodologia utilizada pela PNAD Contínua para mensurar a taxa de desemprego – devidamente explicada no referido artigo – revela que os trabalhadores desocupados no momento da pesquisa precisavam cumprir dois requisitos para serem enquadrados como tal: a) ter realizado busca efetiva por trabalho no mês de referência da pesquisa; e b) estar disponível para assumir um emprego, caso o mesmo fosse encontrado. A pandemia dificultou o cumprimento desses dois requisitos, especialmente em função dos seguintes fatores: medidas de distanciamento social adotadas para controlar a virose; a própria queda do nível de atividade econômica; a manutenção de um nível mínimo de renda por programas como o Auxílio Emergencial; e o afastamento provisório impulsionado pelo programa emergencial de manutenção do emprego. Com isso, os autores concluíram que se as pessoas tivessem voltados imediatamente a procurar emprego – o que era impraticável diante das condições impostas pela pandemia – o nível de desemprego no estado poderia ter batido recordes históricos.

Em termos setoriais, durante o primeiro ano da pandemia o setor de serviços foi o mais afetado, uma vez que sua dinamização depende da presença física das pessoas, fato impraticável diante das medidas de isolamento social necessárias para conter a expansão da pandemia. Neste caso, nota-se que a recuperação do emprego no referido período, ainda que fraca, diz respeito à recuperação das atividades industriais e comerciais. Todavia, é importante registrar que essa expansão setorial foi incapaz de recuperar os níveis de emprego pré-pandemia devido ao grande peso do setor de serviços. No caso particular da indústria, observa-se que ao final de 2021 o nível agregado de emprego gerado por esse setor era praticamente idêntico ao registrado no final de 2019 (908 mil pessoas). Já o comércio apresentava um déficit de 16 mil ocupações no mesmo período.

No ano de 2021 houve um agravamento da pandemia, especialmente no primeiro semestre. Mesmo com a expansão da vacinação da população, o cenário geral ainda era marcado por muita incerteza. Ainda assim, o processo de recuperação do número de pessoas ocupadas a partir do quarto trimestre de 2020 teve continuidade no primeiro semestre de 2021, mesmo que ao final desse período o número de ocupados era inferior a 60 mil pessoas, comparativamente ao verificado no mesmo período de 2019. No segundo semestre de 2021, ao mesmo tempo em que o nível das ocupações cresceu de 59,7% (2020) para 64,2%, a taxa de desocupação caiu de 5,4% (2020) para 4,3% no último trimestre do referido ano, destacando-se que em meados de 2021 tal indicador se encontrava no patamar de 6,4%. Isso mostra que depois de sofrer expressiva perda de postos de trabalho no primeiro ano da pandemia, houve uma recuperação lenta no primeiro semestre do ano seguinte da pandemia, sendo que tal tendência foi bem mais expressiva no segundo semestre do mesmo ano. O resultado foi que no terceiro trimestre do referido ano o estado já se encontrava no mesmo patamar anterior ao início da pandemia, sendo que ao final de 2021 as pessoas ocupadas tinham passado de 3.585 mil (2020) para 3.815 mil (2021), enquanto as pessoas desocupadas – que no primeiro trimestre de 2021 tinham atingido o teto de 241 mil – foram reduzidas para 172 mil ao final do referido ano.

Isso foi possível porque a maioria expressiva das ocupações foi gerada pelo setor de serviços, uma vez que o avanço da vacinação possibilitou maior flexibilização no controle da pandemia. Com isso, as pessoas voltaram a consumir mais serviços, ainda que sob um processo de expansão inflacionária registrada ao longo de todo ano de 2021. Mas é importante registrar, ainda, que nesse processo de recuperação do emprego durante o período mencionado, características marcadamente negativas também se fizeram presentes. Por um lado, a taxa de informalidade subiu para 27%, a segunda menor do país. Em termos absolutos, significou que o número de pessoas na informalidade atingiu aproximadamente 990 mil ao final de 2021, aumento bem expressivo em relação ao ano anterior. Por outro, a renda média – que caiu em todo o país – também ingressou em uma trajetória descendente. Em grande medida, a redução dos valores do Auxílio Emergencial, bem como o menor tempo de manutenção do programa, foram fatores determinantes para que ocorresse essa queda. Tais fatos, como veremos mais adiante, tenderam a se agravar ainda mais no ano seguinte.

No terceiro ano da pandemia (2022) houve a consolidação efetiva da recuperação do mercado de trabalho catarinense. Neste caso, destacam-se alguns indicadores relevantes disponibilizados pela PNAD Contínua relativos ao quarto trimestre do referido ano. Do ponto de vista das pessoas ocupadas, nota-se que passaram de 3.585 mil (2020) para 3.983 mil (2022), sendo que foram geradas, após as grandes perdas de postos de trabalho no ano de 2020, aproximadamente 400 mil vagas. Todavia, esse número precisa levar em consideração o patamar do emprego total ao final de 2019, uma vez que naquele ano já existiam cerca de 3.700 mil pessoas empregadas no estado. Assim, ao longo dos três anos da pandemia foram geradas aproximadamente 200 mil vagas, quantitativo que foi decisivo para que o estado se mantivesse com uma das menores taxas de desemprego do país ao final do período considerado.

Do ponto de vista locacional, nota-se a existência de expressiva diferença entre os setores público e privado. No primeiro caso, verifica-se que o patamar é praticamente idêntico nos três anos da pandemia, ou seja, das 384 mil pessoas empregadas no setor público no início de 2020, cerca de 380 mil permaneciam empregadas em 2022. Já o emprego no setor privado passou de 1.916 mil (2020) para 2.215 mil (2022). Esses resultados fizeram com que o nível de ocupação – que é a relação percentual entre as pessoas ocupadas e as pessoas que estão em idade de trabalhar – da mão de obra em SC subisse de 59,7%, em 2020, para 66,1%, em 2022, destacando-se que o grande crescimento desse indicador ocorreu entre os anos de 2021 e 2022. Esse percentual de 66,1% indica que a cada três pessoas em idade de trabalhar, duas delas estavam ocupadas ao final do ano de 2022.

Obviamente que esse comportamento afetou positivamente outros indicadores do mercado de trabalho. Por um lado, a taxa de desocupação – que mede o número de pessoas ocupadas em relação às pessoas que estão na força de trabalho – saiu de 5,4% (ao final de 2020) para 6,4% ao final do primeiro trimestre de 2021 e fechou esse ano em 4,3%, enquanto que ao final de 2022 caiu para o patamar de 3,2%, a menor taxa do país. Em termos absolutos significa que o número de desempregados caiu de 204 mil (2020) para 172 mil em 2021 e se reduziu para 133 mil pessoas ao final de 2022. Por outro, o número de pessoas subutilizadas na força de trabalho ampliada caiu de 421 mil (2020) para 247 mil ao final de 2022. Isso fez com que a taxa composta de subutilização caísse de 10,7% (2020) para 5,9% (2022). No conjunto do país essa taxa fechou o ano de 2022 em 18,5%.

O que se esconde nesse conjunto de indicadores positivos

Logo após a divulgação dos dados da PNAD Contínua ao final de fevereiro de 2023 vimos muitas falas exageradas por parte de analistas de alguns setores, chegando a se afirmar que SC está em situação de pleno emprego. Outros apresentaram análises bastante equivocadas sobre o papel dos setores de atividades na geração de emprego durante a pandemia. Por fim, viu-se, ainda, algumas análises comparativas indevidas de diversos indicadores com outros espaços geográficos. Assim, nesta seção discutiremos alguns desses aspectos para, posteriormente, elencar os elementos poucos contemplados no debate atual sobre o mercado de trabalho catarinense, os quais são essenciais para se entender a tendência de precarização do mesmo.

O primeiro aspecto a ser mencionado diz respeito ao comportamento dos principais setores de atividade durante a pandemia. Diferentemente do afirmado por alguns analistas, o setor industrial “não criou empregos elevados” entre 2020 e 2021. Ao contrário, quando se analisa o total de 3.815 mil de empregos existentes ao final de 2021, se observa que esse setor contribuía com 908 mil, o que correspondia a 23,8%. Todavia, o cenário anterior mostra que ao final de 2019 esse setor detinha 902 mil empregos, o que correspondia a exatamente 23,9% do total de empregos daquele ano. Ou seja, a participação percentual desse setor no conjunto do emprego estadual praticamente se manteve inalterada ao longo dos três anos considerados (2019 a 2021), destacando-se que especificamente no ano de 2020 esse setor manteve 837 mil empregos, o que correspondia a 23% do total estadual. Além disso, destaca-se que no ano de 2022 o estado gerou 90.355 postos formais de trabalho, sendo que apenas 6% deles (5.291 empregos) foram criados pelo setor industrial. Com isso, o estoque do mercado formal de trabalho industrial sofreu pequenas alterações nos dois últimos anos. A título de registro, destaca-se que somente o setor de serviços respondeu por 62,5% do total (56.396 PFT) no ano de 2022.

O segundo ponto a ser enfatizado revelado por essas informações indica que a situação confortável do mercado de trabalho catarinense ao final de 2022 decorre da grande capacidade do setor de serviços, o qual se recuperou inteiramente do tombo sofrido no primeiro ano da pandemia. E, em menor grau, do setor do comércio, que se recuperou dos efeitos da pandemia ainda no segundo semestre de 2020, muito embora esse setor encerrasse o ano de 2021 com um volume de emprego inferior ao existente ao final de 2019.

Por fim, parte-se agora para as explicações sobre os elementos ausentes nas diversas análises que surgiram após a divulgação da PNAD Contínua do último trimestre de 2022, os quais caracterizam aquilo que é conhecido na literatura especializada como indicador de “precarização do mercado de trabalho”. Em primeiro lugar, destaca-se o tema da informalidade, uma vez que as pessoas que se encontram sob esta condição laboral não possuem qualquer proteção social, a qual acaba influenciando negativamente nas condições sociais de vida dos cidadãos. Nunca é demais repetir que essa situação ficou bastante evidente durante a pandemia quando milhões de pessoas voltaram à condição social de fome e pobreza. Assim, quando se analisa a evolução dessa condição no conjunto do emprego catarinense, nota-se que as pessoas ocupadas informalmente no estado passaram de 974 mil (2020) para 1.032 mil ao final do ano de 2022. Isso significa que parte importante da recuperação do mercado de trabalho catarinense que ocorreu durante os três anos da pandemia aconteceu nessa condição de ocupação, o que caracteriza um processo claro de precarização do emprego. Com isso, esse montante atualmente representa aproximadamente 26% de toda a mão de obra ocupada no estado. Se a esse contingente somarmos os ocupados por conta própria (25%), chega-se à situação de que aproximadamente 50% das pessoas ocupadas no estado se encontram nessa situação de precarização. Especificamente em relação à última posição na ocupação, nota-se um grande crescimento no ano de 2022, certamente estimulado pela “pejotização”. Registre-se que somente no último trimestre de 2022 aproximadamente 31 mil pessoas passaram a integrar o grupo dos trabalhadores por conta própria com CNPJ. Por fim, registre-se que o trabalho doméstico sem carteira assinada é outra marca do processo de precarização do mercado de trabalho catarinense, uma vez que do total de pessoas nesta condição de ocupação ao final de 2022 (151 mil) apenas 38 mil pessoas tinham a carteira de trabalho assinada. Esses dados estão indicando uma inversão da tendência para essa categoria de emprego, comparativamente ao período pré-pandemia.

Em segundo lugar, é evidente a corrosão do poder de compra também por parte dos trabalhadores catarinense. E isto pode ser observado por meio do comportamento do nível de renda das pessoas ocupadas. Registre-se que o rendimento médio mensal de todas as fontes de renda durante os anos de 2020 e 2021 apresentou quedas importantes em todo o país, mesmo sob a vigência do programa Auxílio Emergencial implementado pelo Governo Federal. Essa tendência também se manifestou em Santa Catarina, ainda que durante esses dois anos tenham sido transferidos à população catarinense pelo referido programa aproximadamente R$ 8.5 bilhões. Assim, ao final do ano de 2022 o cenário foi de queda do rendimento médio em relação aos trimestres anteriores, indicando uma tendência em curso no âmbito geral. Tal tendência fica bastante evidente quando se cruza o número de postos formais de trabalho gerados durante a pandemia com o nível de renda. Neste caso, observou-se que a grande maioria das vagas criadas se concentrou nas faixas de renda inferiores, ou seja, aquelas faixas que não ultrapassam a dois salários mínimos mensais.

Considerações finais

Em síntese, é importante observar que há de fato um bom desempenho de um conjunto de indicadores do mercado de trabalho catarinense, comparativamente às demais Unidades da Federação (UFs) e ao agregado do próprio país. Todavia, isso não significa ficar de olhos vendados sobre alguns temas que são de natureza estrutural do mercado de trabalho do país e que também estão presentes em SC, os quais atuam exatamente no campo oposto à narrativa que se busca solidificar, ou seja, que SC é um exemplo de estado de excelência num mar de problemas que caracteriza o mercado de trabalho do país.

Referência

PAINEL INTERATIVO – PNAD CONTÍNUA. www.painel.ibge.gov.br/pnadc


* Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT/UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br. Artigo escrito em março de 2023.