Santa Catarina possui um dos maiores diferenciais de renda entre homens e mulheres do país

11/03/2021 11:36

Lauro Mattei[1]

Recentemente Thomas Piketty, professor da Escola de Altos Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris e um dos maiores especialistas no mundo na temática da desigualdade, publicou um novo livro denominado de “Capital e Ideologia”[2]. Nesta obra, o autor discute profundamente o tema das desigualdades investigando o que ele definiu como a história dos “regimes de desigualdades”, chamando atenção para as justificativas normalmente apresentadas para os diferentes níveis de desigualdades. Ao longo de sua obra, o autor destacou que não existe sociedade na história em que os ricos simplesmente digam “somos ricos, vocês são pobres e fim de papo”. Obviamente que se fosse assim as sociedades entrariam em colapso. Para evitar isso, o autor observou que os grupos dominantes (mais ricos) sempre inventam narrativas mais sofisticadas para contornar e até mesmo esconder o problema: “somos mais ricos que vocês, mas isso é bom para a sociedade como um todo porque nós trazemos ordem e estabilidade”. Certamente esses argumentos não são convincentes e claramente eles representam os interesses das classes dominantes, por isso o autor os qualifica de hipócritas.

A pandemia provocada pelo novo coronavírus atingiu um mundo que já era extremamente desigual, onde quase metade da população sobrevivia com até US$ 5,50 ao dia, enquanto os 1% mais ricos tinham o dobro da renda de 50% da população classificada como pobre, exacerbando o fosse histórico da desigualdade, inclusive aprofundando as históricas desigualdades de gênero e de raça. Com isso, estimativas recentes do Banco Mundial mostram que mais 500 milhões de pessoas ingressarão nesse contingente de excluídos, deixando claro que a pandemia afetou as sociedades de forma bastante desigual, uma vez que as pessoas que vivem em estado de pobreza são  aquelas mais prejudicadas, especialmente as mulheres, os afrodescendentes e os povos indígenas. Em síntese, pode-se afirmar que a pandemia aprofundou e está alimentando as desigualdades já existentes.

O Brasil continua sendo um dos países com as maiores desigualdades de renda no mundo. Tal situação, que havia sofrido uma ligeira tendência de queda entre o período 2002-2013, voltou a se agravar, especialmente após a crise econômica enfrentada pelo país entre 2014-2016, não tendo retornado ao patamar verificado no início do século XXI, antes mesmo do início da pandemia.

Estudo recente da FGV sobre os efeitos da pandemia no Brasil[3] a partir dos dados da PNAD Continua relativa ao primeiro semestre de 2020 constatou que a renda média do trabalho individual do brasileiro sofreu uma queda de 20,1%, enquanto a desigualdade aumentou 2,82%. Essas quedas ocorreram em todo o país, porém foram diferenciadas socialmente, uma vez que a renda de metade dos mais pobres caiu 27,9%, enquanto os 10% mais ricos sofreram queda de 17,5%. Isso fez com alguns grupos sociais fossem mais prejudicados, com destaque para os indígenas (-28,6%), os analfabetos (-27,4%) e os jovens entre 20 e 24 anos (-26%). Essa queda da renda acima mencionada teve como principal fator impulsionador a redução da jornada de trabalho com correspondente redução dos salários. Neste caso particular, novamente as mulheres foram as mais prejudicadas.

Com relação ao terceiro semestre de 2020, a PNAD Continua revelou que o diferencial de renda entre homens e mulheres aumentou em todas as unidades da federação, destacando-se neste caso os estados com os maiores diferenciais: MS (34,6%); RS (29,2%); SC (24,7%); PR (23,1%) e SP (20,9%). Apenas dois estados mantém um diferencial bastante baixo: Amapá (0,4%) e Ceará (4,9%). Neste caso, ressalta-se que Santa Catarina possuía o terceiro maior diferencial de renda entre homens e mulheres no país.

Ao analisar o terceiro trimestre de 2020 em comparação com mesmo período do ano anterior, o DIEESE[4] observou que houve uma grande redução das mulheres na força de trabalho, sendo que mais de 500 mil passaram para a fila do desemprego no período considerado. Além disso, notou-se que alguns segmentos foram mais afetados, destacando-se que a taxa de desemprego das mulheres negras atingiu o patamar de 19,8%. Esse contexto acabou interferindo negativamente no diferencial de renda no conjunto do país que passou a ter a seguinte conformação: homens com renda média de R$ 4.910,00 e mulheres com R$ 3.910,00. Isso significa que a renda das mulheres no conjunto do país atingia apenas 79,6% do montante recebido pelos homens, ainda que exercendo as mesmas atividades.

Algumas informações adicionais sobre Santa Catarina

Esse cenário geral mostrado anteriormente no país também se explicitou, em grande parte, no estado catarinense. De um lado, observa-se que a taxa de desocupação no estado, que no terceiro trimestre de 2019 era 6,8%, passou para 8,4% no mesmo período do ano de 2020. Embora essas taxas coloquem Santa Catarina em uma posição mais privilegiada neste quesito comparativamente aos demais estados, nota-se que no quesito diferencial de renda entre homens e mulheres ocorre exatamente o oposto, ou seja, Santa Catarina está no topo da lista dentre os estados com as maiores diferenças de renda segundo o sexo.

Deve-se registrar, todavia, que esse problema já vem ocorrendo há muito tempo, sendo que em momentos de crises, geralmente tal situação se agrava, como é o que está acontecendo no presente. Por exemplo, analisando-se o mercado formal de trabalho no estado no período entre 2001-2013, portanto no período anterior à crise de 2014-2016, observa-se que a evolução das remunerações das distintas faixas salariais por sexo acabou acentuando o diferencial de rendimento, uma vez que no ano de 2001 aproximadamente 45% das mulheres percebiam até três salários mínimos, percentual que ao final de 2013 atingiu 62%. Esses percentuais para os homens eram de 31% e 41%, respectivamente.

Durante o período de incidência da crise econômica (2014-2016), ocorreu uma concentração mais intensa dos postos formais de trabalho nas menores faixas salariais, sendo que a faixa de 0 a 2 salários mínimos respondia por quase 50% de todo trabalho formal no estado, indicando claramente que, do ponto de vista salarial, durante a crise houve um agravamento da precarização do mercado de trabalho formal no estado.

Assim, ao se estabelecer uma correlação entre as desigualdades entre os sexos e a conjuntura econômica, notou-se que a redução das atividades econômicas entre 2014 e 2016 provocou a desaceleração do crescimento da participação das mulheres no mercado formal de trabalho catarinense. Com isso, ao final de 2016 observou-se que 60% dos trabalhadores que recebiam até 1,5 SM eram pessoas do sexo feminino, indicando que o diferencial de renda por gênero era de 21%. Esses dados são reveladores do intenso processo discriminatório de renda em Santa Catarina, uma vez que as mulheres, mesmo exercendo as mesmas funções que os homens, recebem salários significativamente inferiores.

Com dados disponíveis até 2019, verifica-se que no período posterior à crise (2017-2019) esse diferencial de renda entre homens e mulheres no mercado formal de trabalho catarinense sofreu uma pequena redução, estabilizando-se no patamar de 17% no último ano considerado. Ainda assim, pode ser considerado um percentual elevado quando comparado àquele apresentado por outras unidades da federação.

Por fim, quando se analisam as últimas informações disponíveis para o ano de 2020, verificam-se os efeitos da pandemia sobre o conjunto do mercado de trabalho catarinense, destacando-se que as informações relativas ao terceiro trimestre do referido ano revelaram que a discriminação de rendimento aumentou fortemente, sendo que as mulheres passaram a receber, em média, 75% do rendimento dos homens, mesmo que no exercício das mesmas funções.

Nesta semana que contempla o Dia Internacional da Mulher ocorreu a divulgação, por parte do IBGE, dos dados de emprego relativos ao mês de janeiro de 2021. Imediatamente autoridades do governo catarinense passaram a enaltecer o fato de que o estado possui uma das menores taxas de desemprego do país, o que não deixa de ser verdade. Todavia, nunca se ouviu qualquer manifestação das mesmas sobre essa outra marca que se discutiu neste artigo, ou seja, Santa Catarina continua sendo uma das unidades da federação com as maiores taxas de discriminação de renda entre homens e mulheres no exercício das mesmas atividades econômicas no âmbito do país.


[1] Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e do Programa de PósGraduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br Artigo escrito em 10.03.2021

[2] PIKETTY, T. Capital e Ideologia. Rio de Janeiro (RJ): Ed. Intrínseca, 2020.

[3] Efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho brasileiro: desigualdades, ingredientes trabalhistas e o papel da jornada. FGV Social, coordenação de Marcelo Neri. Documento disponível em WWW.fgv.br/spc/Covid&Trabalho. Acessado em 10.03.2021

[4] Brasil: a inserção das mulheres no mercado de trabalho. São Paulo: DIEESE, 2021. www.dieese.org.br