A desconfiguração do financiamento da educação pública de Santa Catarina: descumprimento dos preceitos constitucionais, renúncias fiscais e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 13/2021

03/09/2021 10:11

Por: Juliano Giassi Goularti[1] e Luciane Carminatti[2]

O direito à educação pública, gratuita, de qualidade e universal em todas as três etapas (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) é um dos primeiros que foi listado pelo legislador constituinte de 1988. Com recursos garantidos pela Constituição Federal (CF-88), a educação pública (nos três entes federativos) não está sujeita à aprovação de políticas econômicas e fiscais que impactam negativamente no seu financiamento. A motivação de políticas de ajustes fiscais e teto dos gastos é uma violação às garantias constitucionais e uma afronta aos direitos da criança e do adolescente.

Nos termos estabelecidos pela CF-88, os estados e municípios devem aplicar anualmente na Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), não menos de 25% da receita resultante de impostos. A Constituição ainda estabelece que o patamar de recursos previstos no Plano Nacional de Educação (PNE), para vigorar no decênio 2015 a 2024, é de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) no quinto ano de vigência do Plano e, no mínimo, o equivalente a 10% ao final do decênio. Logo, em cumprimento ao art. 214 da CF-88 e ao art. 166 da Constituição Estadual de 1989, o Plano Estadual de Educação (PEE) de Santa Catarina, alinhado com o PNE, busca materializar propostas educacionais para a melhoria da qualidade da educação que contribua para a construção de uma sociedade menos assimétrica.

Não obstante, o art. 212, § 3º, da CF-88, já prevê que “a distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do PNE”. Para tanto, no financiamento da educação está a garantia de condições de ensino e aprendizagem, a gestão democrática e a valorização dos trabalhadores e, principalmente, a desnaturalização da escola pública como reservada para pobres.

Nesta linha, a Emenda Constitucional nº 108/2020, que completou seu primeiro ano de vigência no dia 26 de agosto, redefiniu a política de financiamento da educação pública elevando a complementação de recursos da União, retirando os inativos da educação no cômputo do mínimo constitucional e redefinindo a partilha na distribuição de receita do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS).[3] A exclusão dos inativos no cômputo dos recursos vinculados à educação abriu a possibilidade para a remuneração mínima de R$ 5.000,00 mil[4] aos integrantes da carreira do magistério público estadual, para quem tem graduação plena, especialização, mestrado ou doutorado com carga horária de 40 horas semanais.

Relativo à aplicação do mínimo constitucional, em 2020, o governo do estado de Santa Catarina deixou de aplicar R$ 210,5 milhões na MDE. No acumulado 2015/2020, temos a cifra de R$ 1,8 bilhão. Relativo à aplicação mínima exigida dos municípios catarinense, considerando que 2019 é a última informação disponível, apenas Balneário Arroio do Silva (24,83%) e Passos de Torres (20,93%) não cumpriram o que determina a CF-88. Porém, quando comparada à situação salarial dos docentes dos municípios do estado, a remuneração mínima é o piso nacional do magistério (R$ 2.886,24 mil, que não terá reajuste em 2021),[5] A implementação do piso foi questionada na justiça, em 2008, pelos governadores do Paraná, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Ceará e Rio Grande do Sul. Todavia, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou constitucional a lei nº 11.738/2008.

Relativo ao percentual de 60% dos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), aplicados em gastos com profissionais do magistério, a maioria cumpriu o que determina a lei. Os municípios de São Joaquim (94,98%), Campo Erê (94,70%), Itajaí (94,70%), Timbó (92,78%), Taió (92,61%), Ilhota (90,95%) e Pescaria Brava (89,14%) não aplicaram o mínimo de 95% de recurso do Fundeb para MDE em 2019.

Por ora, a questão preocupante é o cumprimento da Meta 19 do PEE, que define que o investimento em educação pública no decênio deva ser ampliado para atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB no quinto ano de vigência do Plano e, no mínimo, o equivalente a 10% ao final do decênio. Em Santa Catarina, a aplicação do governo estadual (R$ 5.044 bilhões) foi de apenas 1,62% do PIB, em 2018. Já a aplicação dos 295 municípios (R$ 6.234 bilhões), totalizou 2,09% do PIB. Somando a isso, o dispêndio federal (R$ 2.373 bilhões) no estado (educação superior) totalizou 0,80% do PIB estadual. A verdade é que padrões mínimos de gasto público não podem ser programados para padrões ínfimos que prejudiquem a qualidade da educação, descumprindo as obrigações legais contidas tanto na CF-88 quanto no PNE.

O gasto público em educação dos três entes federativos foi de 4,58% do PIB em 2018, faltando 2,42% para chegar a 7% e 5,42% para alcançar 10% do PIB.[6] Mesmo com solidariedade compartilhada, estamos longe de cumprir a Meta 19 do PEE.[7] Em âmbito nacional, os resultados observados são de relativa estagnação dos gastos em torno de 5% e 5,5% do PIB. Assim, tanto no nível estadual quanto no nacional, os resultados observados dos gastos do PIB são estáveis e indicam grande desafio para se atingir as metas intermediária e final até 2024.

Relativo ao gasto público per capita apresentado na tabela abaixo das Instituições Federais de Ensino Superior (IFSC, UFFS e UFSC), das escolas estaduais e das municipais, temos em Santa Catarina um gasto per capita médio por aluno matriculado (total de 1.317.027 mil alunos) de R$ 9.972,37 mil, com destaque para a UFSC de R$ 36.848,24 mil, o IFSC de R$ 30.013,65 mil e a UFFS, de R$ 28.812,98 mil. O maior gasto público em Santa Catarina com MDE é dos municípios. Porém, com um gasto de R$ 6,2 bilhões e 766.218 mil alunos, apresentam o menor gasto per capita, de R$ 8.136,07 mil (ano base 2018).

Para tanto, é inconstitucional a omissão do governo federal, estadual e municipal em não ampliar o custeio da educação básica para cumprir a Meta de elevar o gasto na MDE, onde decorrem, por exemplo, a falta de política pública de valorização atraente da carreira do magistério que incentive os docentes e a reversão da tendência de desigualdade de oportunidade de acesso às populações do campo, das regiões periféricas, de cor negra e dos grupos sociais de baixa renda.[8]

A educação sempre foi considerada uma variável importante na mensuração do grau de desenvolvimento de países e regiões. Portanto, o gasto per capita tem relação umbilical com a quantidade da MDE, isto é, o maior ou menor gasto per capita interfere diretamente na qualificação do aluno e na formação/valorização dos professores, além de contribuir para o crescimento econômico e sustentável, impactando na melhoria e distribuição de renda.

Desta forma, no âmbito do financiamento socialmente necessário e adequado do direito fundamental à educação, o art. 10 do PNE estabelece que o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentaria Anual (LOA) da União, dos 26 estados, do Distrito Federal e dos 5.568 mil municípios deverão ser formulados de maneira a assegurar a consignação de dotações orçamentárias socialmente necessárias e compatíveis com os objetivos, metas e estratégias definidas no Plano, de modo a viabilizar sua plena execução. Se, porventura, o gestor público for omisso ou estiver descumprindo as diretrizes, está incorrendo em improbidade administrativa, cabendo aos órgãos competente (TCE, MP, ALESC e TJ) aplicar sanções prevista em lei.

Por outro lado, o governo de Santa Catarina concede R$ 14,01 bilhões em renúncia de receita de ICMS, sem qualquer lastro com o desenvolvimento econômico, com a distribuição de renda, com a geração de emprego, com a mudança qualitativa da estrutura produtiva e com a exigência de medida compensatória, em face das premissas estabelecidas pelo art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) – o caso da Ford no Rio Grande do Sul é o maior exemplo – que reduz drasticamente a base de financiamento da educação. Entre 2010 e 2020, foram desvinculados R$ 13,8 bilhões da MDE e, desde a aprovação do PEE, em 2015, cerca de R$ 7,1 bilhões. Isso sem levar em consideração a dívida ativa tributária e não tributária do estado que hoje está avaliada em R$ 21 bilhões.[9]

Pode-se dizer que as “regalias fiscais”, que representam 78,14% da receita de ICMS (R$ 17,8 bilhões) e beneficiam não mais do que 2% do empresário com inscrição estadual em Santa Catarina, não alcançam o conjunto da coletividade da população catarinense de maneira igualitária.[10] Este procedimento faz com que uma parcela expressiva da população fique desprotegida de condições mínimas e necessárias para uma educação pública, gratuita e de qualidade, conforme o PEE aprovado pela Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc).

O governo financia os seus gastos predominantemente pela cobrança de tributos. Nesta linha, torna-se imprescindível que o gestor público exija contrapartida na concessão de benefícios fiscais e promova a transparência das contas públicas. Os programas de incentivos se sobrepõem, muitas vezes, aos interesses públicos. Colocados de forma simples, os incentivos fiscais, que são uma receita potencial, são também a extração de recursos públicos regressivamente da sociedade para assegurar o lucro empresarial. A questão é que a expansão quantitativa dos incentivos fiscais de R$ 3 bilhões, em 2010, para R$ 5,17 bilhões, em 2015, para R$ 5,53 bilhões, em 2020, e R$ 14,01 bilhões, em 2022, desvincula recursos constitucionais da educação contribuindo para a fragilização do PEE.

Com a possível aprovação da PEC nº 13/2021, que contém apenas dois artigos, é um retrocesso na política de custeio mínimo do direito à educação, garantidos pela vinculação de receita mínima de impostos à MDE. A proposta da PEC nº 13/2021 é que “em decorrência do estado de calamidade pública provocado pela pandemia de covid-19, os entes federados e os agentes públicos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios não poderão ser responsabilizados administrativa, civil ou criminalmente pelo descumprimento, no exercício financeiro de 2020, do previsto no caput do art. 212 da CF-88”.

No entanto, o relatório da PEC nº 13/2021 apresentado pela Senadora Soraya Thronicke, do PSL do estado do Mato Grosso do Sul, estendeu o prazo para até 2021. Muito embora seu parecer diga que “os recursos não investidos serão realocados ao longo de cinco anos” sendo que os valores devem ser “calculados com base na arrecadação do exercício em que deixou de ser investido”, os agentes públicos não poderão ser responsabilizados pelo descumprimento do mínimo constitucional em educação nos exercícios de 2020 e 2021.

A CR-88, que assegurou como direito fundamental a aplicação mínima em educação, e o PNE nortearam os gestores educacionais em todas as esferas de governo. É preciso que o Congresso Nacional deixe de ser motriz de retrocessos e tome sua responsabilidade assumida rejeitando a PEC nº 13/2021, prezando pela garantia dos preceitos constitucionais garantindo estabilidade jurídica e progressividade financeira-orçamentária de custeio ao PNE.

No ano em que a CF-88 completa 33 anos, deve-se exigir que os recursos públicos sejam adequados, suficientes e em prol da emancipação das crianças e dos jovens por meio do direito à educação. Todavia esta foi uma articulação da Confederação Nacional de Municípios (CNM) que, segundo dados do Sistema de Orçamentos Públicos em Educação (Siope), até o quinto bimestre de 2020, 1.351 municípios não conseguiram cumprir o investimento de 25% em educação.[11]

A consequência da aprovação dessa PEC nº 13/2021 para a educação pública abre um precedente histórico para novas investidas do Legislativo, ou até mesmo do Poder Executivo, sobretudo em tempos de crise fiscal, que se tornou recorrente no Brasil. O país já regrediu muito nos últimos anos, tanto em termos econômicos quantos sociais. Esta PEC contribui para que haja uma regressão e desidratação constitucional da base de financiamento da educação pública, mesmo que seja somente relativa ao exercício de 2020 e agora para 2021, conforme parecer da Senadora Soraya Thronicke, do PSL. Isso quer dizer que aqueles municípios catarinenses que não cumpriram o mínimo constitucional estão isentos da aplicação de sanções, que podem ir desde a suspensão de transferências voluntárias, improbidade administrativa e eleitoral.

Os graves impactos econômicos e sociais produzidos pela pandemia do novo coronavírus e pela conduta mais do que irresponsável do presidente da República exigirão do estado brasileiro volumes extraordinários de investimento estatal para que possa haver a recuperação plena dos milhares de educandos que foram vítimas da interrupção dos estudos presenciais, por falta de acesso aos meios e recursos tecnológicos requeridos pela educação híbrida. Portanto, tudo indica que, com a aprovação desta PEC, ainda mais com o substitutivo da Senadora Soraya, o abismo entre alunos ricos e alunos pobres será maior. Isso sem mencionar que o orçamento do Fundeb será prejudicado com a reforma tributária aprovada no Congresso Nacional que concedeu isenção de pessoa jurídica de lucro presumido até R$ 4,8 milhões.[12]

Por fim, se, por um lado, o novo Fundeb permanente foi uma conquista para a educação brasileira, pois foi desenhado com ênfase na redução das múltiplas desigualdades, adotando como parâmetro o custo aluno qualidade (CAQ), a ser detalhado na Lei do Sistema Nacional de Educação, por outro, a PEC nº 13/2021 é justamente o contrário, pois representa a negação do financiamento público.


[1] Doutor pelo Instituto de Economia da UNICAMP e pesquisador do NECAT/UFSC

[2] Professora, deputada estadual e presidenta da Comissão de Educação da ALESC

[3] Cf: https://necat.ufsc.br/o-financiamento-da-educacao-publica-catarinense-diante-do-novo-fundeb-emenda-constitucional-no-108-de-2020/

[4] Cf: PEC nº 007.5/2021 que altera a Constituição do estado para estabelecer a remuneração mínima garantida devida aos integrantes da carreira do magistério público estadual e estabelece outras providências.

[5] O Piso do Magistério, em 2022, está estimado em R$ 3.236,05 mil, reajuste de 12,12%.

[6] Em Santa Catarina 13 municípios aplicam mais de 7% do PIB: Frei Rogério (8,33%), Mirim Doce (8,23%), Celso Ramos (8,22%), Pescaria Brava (8,03%), Santa Rosa de Lima (7,99%), Balneário Gaivota (7,88%), Zortéa (7,82%), Calmon (7,65%), Bocaina do Sul (7,64%), Barra Bonita (7,19%), Rio Rufino (7,17%), Bandeirante (7,12%) e Tigrinhos (7,09%). Tigrinhos, Barra Bonita, Rio Rufino, Santa Rosa de Lima e Mirim Doce, municípios que estão entre os 20 “mais pobres” do estado não produzindo bens e mercadorias complexas, mas que aplicam mais de 7% do seu PIB em educação. Destes municípios nominados, Barra Bonita é a 2ª cidade “mais pobre” de Santa Catarina, Tigrinhos a 9ª, Rio Rufino a 13ª, Santa Rosa de Lima a 18ª e Mirim Doce a 25ª.

[7] Cf: https://drive.google.com/file/d/16advsYFrOn7PDkWmr-KL8o5LoX7g8DUw/view

[8] Cf: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/40417

[9] Cf: https://necat.ufsc.br/consideracoes-sobre-a-divida-ativa-tributaria-de-santa-catarina/

[10] Nem todos os contribuintes, empresas e indivíduos, são privilegiados com benefícios tributários, nem todas as empresas, grupos ou setores econômicos recebem benefícios na mesma proporção; nem todas as empresas fazem uso do recurso administrativo e judicial para postergar ou inviabilizar a realização pública do tributo; assim como nem todas as empresas se financiam com a disponibilidade de recursos não recolhidos ao erário público. Ademais, os grandes capitais, em detrimento dos pequenos, praticam dumping ao se credenciar junto a uma das múltiplas estruturas fiscais de renúncia de receita, haja vista, que a possibilidade de uma grande empresa se capacitar burocraticamente e técnico-financeiro em relação à pequena empresa é muito superior. Uma vez apropriado do incentivo pela prática de dumping, o movimento do grande capital trata de aleijar os pequenos capitais como peixes pequenos são devorados por tubarões, e as lebres pelas raposas.

[11] Cf: https://aprece.org.br/blog/noticia/pec-que-impede-penalizar-gestores-por-minimo-de-25-da-educacao-em-2020-comeca-a-tramitar-no-senado/

[12] A reforma do Imposto de Renda aprovada na Câmara encolhe arrecadação da União, Estados e municípios em R$ 53,6 bilhões. Cf: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,reforma-do-imposto-de-renda-encolhe-arrecadacao-em-r-53-6-bilhoes-aponta-estudo,70003829930