Trabalho infantil cresce em Santa Catarina e atinge 60 mil crianças e adolescentes

21/12/2023 12:35

Vicente Loeblein Heinen*

A última edição temática da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), do IBGE, traz dados alarmantes sobre a evolução do trabalho infantil no Brasil e em Santa Catarina. De acordo com o levantamento, referente a 2022, o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, ou seja, trabalhando em atividades perigosas ou que comprometem o processo de escolarização, chegou a 1,9 milhão no país e a 60 mil no estado catarinense. Em comparação com 2019, o trabalho infantil cresceu 7% e 7,7%, respectivamente.

O objetivo deste texto é discutir a problemática do trabalho infantil e apresentar seus principais números para Santa Catarina. Embora o IBGE ainda não tenha divulgado os resultados oficiais do suplemento de trabalho infantil da PNADC para as unidades da federação (provavelmente devido à baixa representatividade da amostra em algumas regiões), seus microdados já estão públicos, o que permite estimar alguns indicadores em âmbito estadual.

Sobre o conceito de trabalho infantil

O conceito de “trabalho infantil” foi forjado pela OIT, designando as atividades laborais que privam a criança da sua infância, ameaçando sua dignidade e prejudicando seu desenvolvimento humano[1]. Em síntese, o conceito designa crianças e adolescentes que realizam trabalhos perigosos do ponto de vista mental, físico, social ou moral, bem como os que interferem no processo de escolarização, restringindo o acesso à rede de ensino, promovendo o abandono escolar prematuro ou forçando a combinação de estudos com trabalhos pesados/degradantes.

No Brasil, o IBGE define as “pessoas em situação de trabalho infantil” a partir de grupos etários, conforme os seguintes critérios[2]:

  • 5 a 13 anos de idade: todos que trabalham, seja para obter renda ou para autoconsumo[3];
  • 14 e 15 anos de idade: a) trabalham em ocupações informais, com jornadas superiores a 30 horas semanais (ou acima de 40 horas, caso tenham ensino fundamental completo); b) trabalham em empregos formais, mas não frequentam a escola; c) trabalham para o autoconsumo; ou d) trabalham em ocupações previstas na “Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil” (Lista TIP[4]);
  • 16 e 17 anos de idade: a) trabalham mais de 44 horas semanais; b) trabalham em ocupações da Lista TIP; c) trabalham para o autoconsumo; ou d) trabalham em situação de informalidade.

Esses critérios são tipificados nos questionários suplementares da PNAD Contínua anual, produzindo estatísticas experimentais sobre o trabalho infantil no Brasil[5].

Perfil do trabalho infantil em Santa Catarina

Os dados da PNADC revelam que, em 2022, 4,6% de todos os catarinenses com idades entre 5 e 17 anos estavam submetidos a condições de trabalho infantil. Esse percentual se aproxima da média nacional, que ficou em 4,9%.

Dos 60 mil trabalhadores infantis catarinenses, mais de 80% possuem de 14 a 17 anos. Nessa faixa etária, a proporção das pessoas em situação de trabalho infantil (vale lembrar, em atividades degradantes e/ou que comprometem a escolarização), chega a 14%. Embora as estatísticas não sejam tão precisas quanto a isto, é seguro afirmar que, nesta faixa etária, mais da metade de todos aqueles que estão trabalhando estão submetidos a condições de trabalho infantil.

Demograficamente, o destaque é para a elevada participação de meninos (55% dos trabalhadores infantis, contra 49% de participação na população total da faixa etária) e residentes em zonas rurais (29%, contra 16% da população em geral). Como era de se esperar, a taxa de escolarização das crianças e adolescentes submetidos ao trabalho infantil é muito menor que a média, sendo de apenas 86%.

Quanto ao perfil das atividades realizadas, nota-se que 88% dos trabalhadores infantis estão ocupados em alguma atividade econômica, isto é, trabalham para obter renda para si ou para o seu domicílio, enquanto os 12% restantes realizam apenas atividades para consumo próprio (vide nota 3). Do total de ocupados, 49% estão em atividades prejudiciais à saúde, presentes na Lista TIP (vide nota 4).

Na maioria dos casos, o trabalho infantil é realizado para um “empregador”, seja ele um membro da família ou contratante sem registro. Outro caso bastante comum é a do “trabalho familiar auxiliar”, que ocorre quando a criança ou adolescente trabalha de ajudante a um membro de seu domicílio, sem ser diretamente remunerado por isso. Em função disso, a informalidade é a regra dessas ocupações, abrangendo mais de 80% do total.

A lista das atividades econômicas mais associadas ao trabalho infantil é liderada pela confecção doméstica de artigos de vestuário, seguida pela construção civil e pela agropecuária, com destaque para a criação de gado, o cultivo de banana e até de fumo. Outras atividades com elevada presença de trabalho infantil são as de comércio ambulante de alimentos, serviços de alimentação, serviços domésticos e pequenos estabelecimentos comerciais, como minimercados, quitandas e oficinas mecânicas.

Embora os microdados da PNADC ainda não tragam informações relativas à jornada de trabalho, os dados nacionais revelam que ⅕ dos trabalhadores infantis tinham jornadas superiores a 40 horas, sendo que essa proporção sobe para ⅓ quando se fala dos adolescentes entre 16 e 17 anos. Já o rendimento médio das pessoas de 5 a 17 anos que realizavam atividade econômica em situação de trabalho infantil foi estimado em R$ 716, ou seja, pouco mais que meio salário-mínimo.

Considerações finais

Os dados experimentais da PNADC de 2022 revelam a persistência de uma grande chaga para a sociedade brasileira, que se manifesta quase que em igual proporção em Santa Catarina. O trabalho infantil, concebido como as atividades laborais degradantes e/ou que comprometem a escolarização, ainda atinge 1,9 milhão de pessoas no país e 60 mil no estado catarinense, cerca de 5% do total de jovens e adolescentes com idades entre 5 a 17 anos.

O crescimento do trabalho infantil nos últimos anos está associado à deterioração das condições de vida das famílias, cuja renda per capita real recuou 5% entre 2019 e 2022, tanto no Brasil, quanto em Santa Catarina. A baixa geração de empregos formais de qualidade e a redução do acesso à rede de proteção social observada em ambas as regiões, particularmente desde 2017, forçaram a entrada prematura de jovens no mercado de trabalho, como forma de complementar a renda das famílias ou garantir sua própria subsistência.

Em função disso, o problema do trabalho infantil em Santa Catarina se manifesta de forma mais aguda entre os adolescentes de 14 a 17 anos, representando mais da metade das pessoas dessa faixa etária que já estão ativas no mercado de trabalho. Isso revela que, ao contrário da ideia que se tem do jovem trabalhador como um aprendiz formalizado ou um estagiário em trabalho parcial, o cenário mais comum no estado (assim como no país) é o do subemprego, majoritariamente em atividades degradantes ou com elevadas jornadas de trabalho. A dificuldade de conciliar tais atividades com os estudos regulares, por sinal, ajuda a explicar o aumento da evasão no ensino médio, refletida na taxa de escolarização dos catarinenses de 14 a 17 anos, que caiu de 93,6% para 93,1% entre 2019 e 2022[6].

Os dados da PNADC também ajudam a evidenciar o perfil sociodemográfico e econômico do trabalho infantil no estado. Nesse sentido, destaque para a elevada participação de jovens do sexo masculino e de moradores de zonas rurais. Entre as atividades econômicas, chama a atenção o uso indevido de força de trabalho infantil nas atividades domésticas de confecção (não raramente integradas a cadeias produtivas maiores), na construção civil, na agropecuária, no comércio de rua e em restaurantes.


* Economista pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[1] Para mais detalhes, ver a seção What is child labour, no site da OIT.

[2] O detalhamento completo dos critérios de trabalho infantil no Brasil podem ser conferidos na Nota Técnica 01/2020 do IBGE.

[3] O trabalho na produção para o autoconsumo é aquele realizado para o uso exclusivo da família/  moradores do domicílio. Tratam-se de atividades como as de pesca, criação de animais, corte ou coleta de lenha, costura, produção de alimentos ou atividades de construção doméstica.

[4] A Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), prevista no Decreto nº 6481 de 2008, tipifica atividades proibidas para pessoas menores de 18 anos, por serem muito perigosas ou degradantes. Entre as ocupações mais comuns da lista, encontram-se atividades pesadas na agricultura (pulverização, cultivo de fumo, cana-de-açúcar, abacaxi, etc) e na construção civil (pedreiros, serventes, carregadores, etc), além da operação de veículos, máquinas cortantes ou outras atividades perigosas.

[5] Os principais resultados para o Brasil podem ser conferidos no site da Agência de Notícias do IBGE. Já os dados agregados podem ser consultados na plataforma Sidra.

[6] De acordo com dados da PNADC anual, a renda domiciliar per capita média das famílias brasileiras, considerando todas as fontes de renda, foi de R$ 1.586 em 2022, enquanto a das catarinenses foi de R$ 1.958. Em 2019, essas cifras, em termos reais, eram de R$ 1.668 e R$ 2.057, respectivamente.

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