Política de renúncia de receita tributária na desconfiguração do pacto federativo: o caso de Santa Catarina

24/03/2022 17:35

Juliano Giassi Goularti[*]

Introdução

O objetivo deste texto é problematizar a burla à sistemática constitucional de repasse dos 25% pertencentes aos municípios pelo governo de Santa Catarina através da política de renúncia de receita do ICMS. Muito embora a repartição de receitas tributárias prevista no art. 159 da Constituição Federal de 1988 (CRFB-88) não retira dos respectivos entes, no caso do estado, a prerrogativa de instituir e, por conseguinte, renunciar aos tributos de competência própria, pode-se dizer que essas renúncias, estimadas em R$ 14,01 bilhões,[1] para 2022, constituem uma das fissuras do pacto federativo garantidos pela CRFB-88.

Dividido em duas partes, primeiro o artigo faz uma discussão da descentralização da política de incentivos fiscais, em 1988, e crise do pacto federativo. Após isso e apresentado as consequências da política catarinense de renúncia de receita de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) na desconfiguração do federalismo, em particular, dos impactos financeiros que isso resulta para as contas municipais.

  1. Descentralização da política de incentivos fiscais do ICMS na crise do pacto federativo

Com a proclamação da CRFB-88, foi criado o ICMS, em substituição ao ICM. A diferença entre o primeiro e o segundo não se resumiu ao acréscimo do “S”. Além da inclusão dos serviços de transportes intermunicipais e interestaduais e dos serviços de comunicações, as bases dos antigos impostos únicos de competência do governo federal também foram incluídas: minerais, combustíveis-lubrificantes e energia elétrica. Além das mudanças promovidas pelo legislador constituinte trazer aumento de arrecadação para os estados, também foi concedido autonomia fiscal para que os estados fixassem as suas próprias alíquotas internas de ICMS. Enquanto no ICM as alíquotas internas máximas eram fixadas pelo Senado Federal, no ICMS, essa exigência foi extinta.

A CRFB-88 trouxe mudanças qualitativas no sistema federativo nacional, em particular ao estabelecer competências concorrentes na definição da competência tributária. Dentro de uma dupla organização territorial de poder, a CRFB-88 possibilitou que os governos estaduais adotassem agenda mais autônoma e independente da União. Somada a isso, a inserção da economia brasileira na globalização impôs um novo rumo aos estados na definição das políticas de incentivos fiscais. A fim de redesenhar a estrutura delineada no período militar, a proposta constitucional defendia a descentralização, com maior participação dos entes subnacionais na receita tributária e autonomia na gestão dos gastos.

A descentralização fiscal desencadeou uma “enxurrada” de programas, planos e projetos estaduais de incentivos às grandes empresas, típico do “federalismo competitivo”. Ampliando o campo de competência das esferas subnacionais, a revisão do federalismo não estabeleceu instrumentos de cooperação intergovernamental. Ao contrário do que se ouve no Brasil, o que se tem observado é que, no lugar de prevalecer o federalismo cooperativo, prevalece um federalismo competitivo que privilegia determinados setores econômicos.

Dadas as exíguas políticas regionais nos anos 1990, restava aos governos estaduais utilizar seu sistema tributário para promover o desenvolvimento regional. Buscando soluções isoladas para alavancar suas economias, as políticas estaduais de atração de investimentos foram aumentando a “guerra dos lugares”, denominação geográfica para a “guerra fiscal”, de natureza econômica. Numa estrutura tributária que se demonstrava fragilizada, a capacidade de coordenação fiscal pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) se tornou insustentável.

Com a crise da Federação, a Assembleia Nacional Constituinte reorganizou o sistema tributário nacional em favor dos interesses regionais, que não deixavam de ser os interesses federativos do Brasil, prevalecendo a crença de que a descentralização levaria, por si só, à maior equidade na distribuição de bens e serviços e à maior eficiência na operação do aparato estatal. Antes de 1988, os conflitos federativos por recursos tinham dimensão vertical (relação direta da União com os estados e municípios). Com as mudanças, aqueles conflitos passaram a ter dimensão horizontal (relação direta entre estados).

Daí por diante, o movimento das políticas de incentivos fiscais deixa de ter apenas caráter vertical e passa a ser horizontais. Mesmo a centralização não sendo convincente, colocava freios no acirramento da disputa inter-regional por investimentos privados. Em que pese a descentralização vertical dos recursos, não se verificou qualquer redução das desigualdades horizontais. No revanchismo ao autoritarismo que prevaleceu durante o regime civil-militar, que subordinou estados e municípios à União, o legislador constituinte não teve a preocupação política de reordenar as bases do pacto federalismo.

Com isso cometeu grave erro, com sérias implicações para a economia do país, para o federalismo e para o sistema tributário regressivo e, portanto, tornou-se gerador ou repetidor de injustiça fiscal. O pacto federativo emerge da necessidade de assegurar a unidade nacional, a partir do equilíbrio entre as forças centralizadoras e descentralizadoras, extensão territorial e diversidade cultural, econômica, regional e social. A descentralização das políticas públicas ganhou destaque. Mas a federação brasileira, do ponto de vista das relações intergovernamentais, dificilmente pode ser definida com base na dicotomia centralização x descentralização, por ser um arranjo complexo, em que estão presentes essas duas tendências que interagem de formas distintas e produzem resultados variados.

Na globalização, a produção capitalista passou a requerer das regiões e dos lugares cada vez maior quantidade de fatores que favoreçam a reprodução da produção capitalista. Logo, como foco de tensão do federalismo, o endividamento público dos estados – que resultou na ampla renegociação das dívidas, na privatização dos bancos estaduais e na política de metas de desempenho fiscal dos estados – acirrou a guerra fiscal.

Por fim, em torno dessa competição, constroem-se narrativas que balizam a ação do estado na atração de investimentos, com custos elevados para o pacto federativo e para a sociedade. Em síntese, a disputa regional pelo investimento privado passa, assim, a desempenhar papel determinante na organização regional, ao redefinir a localização empresarial no território.

  1. Política catarinense de renúncia de receita de ICMS e desconfiguração do federalismo

A CRFB-88 permite aos governos estaduais exercer um controle substancial das políticas dos Entes municipais, importando em uma perda significativa da autonomia financeira concedida aos municípios pelo legislador constituinte. Através do sistema de partilha do ICMS, os estados detêm uma parcela expressiva do controle orçamentário e financeiro dos municípios, na medida em que expandem os gastos indiretos gerados por políticas de renúncia de tributos partilháveis[2], o que possibilita também um certo controle político do governador sobre os prefeitos, que se vêem obrigados a correr atrás de emendas parlamentares e convênios.

Na base do cálculo da quota parte dos 295 municípios catarinenses no ICMS, a que faz jus, não estão deduzidos os valores renunciados das múltiplas estruturas fiscais – anistia, isenção, redução de base de cálculo, crédito presumido, etc. Dito de outra forma, a concessão de incentivos que cabe ao estado de Santa Catarina não preserva a parcela do montante arrecadado que constitucionalmente pertence aos municípios. A propósito, os tributos estaduais, além de integrarem o sistema de repartição de receitas, garantem aos municípios recursos que não dependem de sua própria arrecadação. Logo, a autonomia financeira plena dos municípios é superficialmente relativa.

Conforme art. 158, IV, da CRFB-88, pertence de pleno direito aos municípios uma cota parte da parcela do ICMS. Logo, a ampliação da autonomia municipal veio ao encontro das ideias descentralizadoras que nortearam os constituintes e concretizaram-se com a inserção do município entre as entidades federadas. Levando-se em conta o sistema tributário nacional, a autonomia financeira reside na possibilidade de os municípios instituírem e arrecadarem tributos próprios, bem como, proceder na aplicação desses recursos sem a interferência das demais entidades federativas.

Quanto a isso, considerando que a renúncia tributária estadual não promove adequadamente a autonomia financeira das municipalidades, fazendo com que o equilíbrio fiscal do município também dependa de decisões tomadas pelo estado, Santa Catarina é prejudicada pela política de desoneração tributária de Imposto de Renda (IR) e Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) da União. Assim, a independência do Ente menor ao Ente maior pode implicar na ausência de recursos socialmente necessários para as atividades diárias à administração pública municipal e estadual, sobretudo quando não há solidariedade.

Para efeitos de cálculos, em 2020, dos R$ 5,53 bilhões renunciados em tributos estaduais estima-se que R$ 1,38 bilhão pertence aos 295 municípios catarinenses, sendo R$ 1,17 bilhão relativos ao Índice de Valor Adicionado (IVA) e R$ 207,57 milhões relativos à parte fixa.

Tabela 1: Estimativa da desvinculação constitucional de receita tributária de ICMS com base no Índice de Valor Adicionado dos 20 maiores municípios catarinenses

Tab1

Fonte: Portaria SEFA/SC nº 415 de 2019 – Elaboração do autor

Pelo princípio constitucional da partilha de receita, seja com base na movimentação econômica ou na parte fixa, a renúncia de ICMS está gerando impactos diretos no orçamento dos 295 municípios catarinenses. A tabela 1 ainda mostra que a desvinculação constitucional de receita partilhada de cinco municípios, com destaque para Joinville, Itajaí, Blumenau, Florianópolis e Jaraguá do Sul representa 26,56% do quantitativo desvinculado, de R$ 1,38 bilhão.

Ampliando para dez municípios, esse percentual sobe para 36,62% e para 20 se eleva para 47,41%. De maneira igual, como se vê, a renúncia tributária de impostos estaduais apresenta uma participação relativa quando confrontado com a receita (exceto intra-orçamentárias) dos municípios, com destaque para Araquari (8,20%), Campos Novos (7,94%), Guaramirim (7,53%), São Francisco do Sul (6,46%) e Itajaí (6,44%). A maior parcela de volume de receita constitucional desvinculada para os municípios nominados na tabela 1 refere-se ao índice de movimentação econômica, e não a parcela fixa. Enquanto na participação relativa a receita potencial desvinculada foi de R$ 641,94 milhões, na parte fixa foi de R$ 14,07 milhões.

A que indica, a política tributária de renúncia de receita parece não coexistir com a perfeita sistematização do pacto federativo nacional. Os 20 municípios nominados na tabela 2 somam uma perda de receita tributária de R$ 18,69 milhões, isto é, 1,35% do valor total dos benefícios. Grande parte dos municípios possui uma arrecadação irrisória de tributos próprios, ainda mais considerando que as principais bases de tributação municipal se resumem ao Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISS) e ao Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU). O que prevalece é a dependência financeira dos municípios aos recursos transferidos pelo estado e pela União, seja em decorrência da tutela constitucional, seja em transferências voluntárias, emendas parlamentares e celebração de convênios.

Tabela 2: Estimativa da desvinculação constitucional de receita tributária de ICMS com base no Índice de Valor Adicionado dos 20 menores municípios catarinenses

Tab2Fonte: Portaria SEFA/SC nº 415 de 2019 – Elaboração do autor

Na tabela 2, a participação da desvinculação constitucional de receita estadual partilhada aos pequenos municípios não pode ser desprezada. Confrontando a renúncia tributária de impostos estaduais com a receita (exceto intra-orçamentárias) dos municípios em destaque, por exemplo, a desvinculação representa 5,83% de Barra Bonita, 5,69% de Painel, 5,52% de São Miguel da Boa Vista, 5,49% de Santa Rosa de Lima e 5,45% de Tigrinho.

Para que a autonomia financeira concedida pelo constituinte aos municípios seja real, e não fictícia, é importante que não permita o Ente maior desvincular receitas tributárias do ICMS mencionada no art. 158, IV, da Carta Magna. Embora a receita de ICMS seja arrecadada pelo estado, o tributo integra o patrimônio do município, não podendo o estado dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo.

Em se tratando de a autonomia financeira, como capacidade de autofinanciamento das atividades estatais e da competência e capacidade tributária, a política de renúncia tributária são, a rigor, o “avesso do tributo”. De todo modo, a repartição de receitas tributárias previstas no art. 159 da CRFB-88 não retira do estado a prerrogativa de instituir e, por conseguinte, renunciar os tributos de competência própria.

Considerações finais

A política de renúncia de receita tributária do ICMS burla o sistema constitucional da partilha dos 25% pertencente aos municípios, embora seja constitucional a concessão regular renúncia de receita. Todavia, as tabelas 1 e 2 mostram que as estimativas de perda de receita são consideráveis e, no comparativo das tabelas, ao contrário dos grandes municípios, para os pequenos a estimativa da parcela fixa (15%) desvinculada representa ser maior do que a participação relativa (85%).

Além disso, como já mostrado em trabalho passado,[3] essa renúncia está concentrada em municípios com alta complexidade econômica. Considerando as assimetrias econômicas e regionais, o poder público catarinense não foi capaz de alterar a desigualdade regional da desoneração tributária, pelo contrário, estão sendo elevadas. Logo, dentro do pacto federativo com autonomia de poder, a renúncia tributária não promove adequadamente a autonomia financeira das municipalidades, fazendo com que o seu equilíbrio fiscal, financeiro e orçamentário dependa, em larga medida, de decisões político-tributárias tomadas pelo estado.

O privilégio fiscal é tendência que impacta no Tesouro do Estado, provoca uma série de riscos fiscais e financeiros e distorções na economia local. Esses privilégios têm o objetivo de reduzir custos de produção e elevar as taxas de lucro do setor privado; mas não há garantias de que levem a maior geração de emprego e de renda para os trabalhadores. O capitalista, ao transformar o incentivo fiscal em investimento privado, está gerando a possibilidade de incrementar a produtividade, elevando o nível quantitativo e qualitativo do produto. Mas ao incrementar o lucro sem transformar o incentivo em política de investimento, a renúncia mostra-se ineficiente para promover melhorias no mercado de trabalho, acentuando as desigualdades sociais.

Mesmo que possa haver indícios de efeitos positivos na economia em decorrência desses benefícios, tais efeitos são passivos de questionamentos, uma vez que não há evidências de que a renúncia de receita tributária gere desenvolvimento econômico, social, regional e ambiental. Embora a receita de ICMS seja arrecadada pelo estado, o tributo integra o patrimônio do município, não podendo o estado dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao pacto federativo.


[*] Doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NECAT/UFSC.

[1] https://necat.ufsc.br/a-politica-de-incentivos-fiscais-do-governo-carlos-moises-ex-psl/

[2] Renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

[3] https://necat.ufsc.br/politica-de-incentivos-fiscais-em-santa-catarina-limites-e-insuficiencia-na-promocao-do-desenvolvimento-regional/