A política de renúncia de receita de Santa Catarina: desvinculação constitucional de recursos nas ações e serviços de saúde e na manutenção e desenvolvimento do ensino público

22/02/2022 11:15

Por: Juliano Giassi Goularti[1]

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO

A vinculação de receitas tributária consiste na previsão constitucional de que determinado percentual de receita orçamentária seja aplicado em áreas eleitas como prioritárias pelo gestor público. As mais conhecidas foram concebidas para garantir investimentos mínimos em saúde (12%) e em educação (25%) da receita líquida de impostos.

A receita vinculada tributária de impostos é o instrumento da política financeira que á concede uma garantia mínima de recursos na Lei Orçamentária Anual (LOA) à execução das metas e objetivos de planejamento e à prestação de serviços públicos prioritários com maior abrangência e qualidade. Todavia, há argumento contrário, segundo o qual o aumento da vinculação de receita leva a um quadro de maior rigidez na programação orçamentária e de dificuldades no remanejamento de recursos.

Nesta visão, não se pode vincular o orçamento à determinada política pública, pois assim se provocam distorções na alocação de recursos, comprometendo a despesa pública. Julgam, ainda, que as amarras da vinculação orçamentária desafiam o princípio legal e constitucional. De todo modo, as demandas por efetividade de direitos sociais e garantias fundamentais não podem ser tratadas como fatores de perturbação social.

É digno de nota que, em 1994, foi aprovada a Desvinculação de Receitas da União (DRU), cujo objetivo era ampliar a flexibilidade orçamentária, ao anular o efeito das vinculações estabelecidas pelos legisladores constituintes, em especial, em relação aos impostos e contribuições. Para aqueles que insistem na narrativa da necessidade da desvinculação, a DRU se tornou necessária para enfrentar o exagerado grau de vinculações de receitas dentro do orçamento da União. A principal finalidade da DRU é ampliar o volume de recursos livres para que os gestores públicos possam direcionar livremente os gastos públicos.

Nesse debate, podemos entender que a renúncia de receita[2] concedida pelo Poder Executivo ou pelo Legislativo catarinense, particularmente o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS), diminui o montante de receita constitucional vinculada nas ações e serviços de saúde, enfraquecendo o Sistema Único de Saúde (SUS), e no desenvolvimento e manutenção do ensino, fragilizando o Plano Estadual de Educação (PEE).[3]

DESVINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DE RECURSOS DESTINADOS A AÇÕES E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE EM SANTA CATARINA

A política de renúncia de receita tributária implica na desvinculação do orçamento público de programas, planos e ações interferindo diretamente na busca da melhoria da eficiência e na qualidade do gasto estadual e municipal. É importante destacar que os gastos com saúde nas diferentes modalidades (saúde da família, saúde básica, serviços de alta e média complexidade) podem estar comprometidos pela renúncia tributária. Isso é, as metas, os objetivos e as estratégias de desenvolvimento podem estar sendo precarizadas pela redução de recursos provocada pelos incentivos fiscais.

A desvinculação de receitas destinadas à execução das políticas essenciais para o desenvolvimento social de ações e serviços públicos, gratuitos e de qualidade da saúde da população catarinense apresenta grave risco de fragilizar o financiamento destes segmentos, ainda mais necessários em tempos de crise sanitária provocada pela Covid-19. Como consequência, o governo do estado de Santa Catarina pode enfraquecer-se como agente promotor e garantidor do desenvolvimento estadual e redutor das desigualdades sociais e regionais em suas múltiplas escalas.

No tocante à destinação de recursos para atender o financiamento constitucional da saúde dos catarinenses, a desvinculação provocada pela renúncia de ICMS deve ser analisada com muito cuidado, posto que qualquer redução de base de cálculo, imunidade, crédito presumido, dentre outras modalidades fiscais, pode significar menos recursos destinados à execução de ações e serviços básicos e de alta complexidade para a promoção, proteção e recuperação da saúde.

A vinculação orçamentária destinada à saúde deu-se pela Constituição Federal de 1988, a qual destinou 30% dos recursos do orçamento federal da seguridade social para as ações e serviços públicos de saúde. No tocante aos entes federados, a Emenda Constitucional nº 29, de 2000, estipulou que o mínimo a ser aplicado pelos estados em ações e serviços públicos de saúde é 12% dos seus recursos próprios, originários do produto de arrecadação dos impostos, bem como das transferências constitucionais e legais, deduzidas as parcelas transferidas aos respectivos municípios. Para os municípios, o mínimo a ser aplicado ficou estipulado em 15%.

Na tabela 1, no acumulado entre 2010/2022, a política de renúncia de receita resultou numa desvinculação constitucional de R$ 7,39 bilhões. Para 2022, considerando o crescimento extraordinário de 120%, entre 2021 e 2022, da renúncia tributária, estima-se que a desvinculação será de R$ 1,68 bilhão. Todavia, chama a atenção que a participação no recurso desvinculado no orçamento das pastas saltou de 21,67%, em 2021, para 37,05%, em 2022, crescimento de 70,97%.

Tabela 1: Desvinculação constitucional de receita tributária (ICMS, IPVA, ITCMD) da saúde dos catarinenses

T1

Fonte: LDO, vários anos. Elaboração: Juliano Giassi Goularti

Considerando a limitação orçamentária, ainda mais pelo significativo estoque da dívida ativa tributária,[4] essa desvinculação faz falta para ações de universalização do SUS preconizadas no art. 196 da Constituição Federal de 1988. Em tempos de pandemia, quando existe insuficiência de acesso da população aos serviços médico-hospitalares prestados pela rede pública estadual, a desvinculação corrobora com a precarização dos serviços da pasta.

De todo modo, essa política tende a prejudicar o acesso universal, gratuito e igualitário nas ações de saúde, segundo art. 196 da Constituição Federal de 1988, bem como planejar e realizar ações para que, até 2030, o governo do estado cumpra a meta estabelecida nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentáveis (ODS).[5]

DESVINCULAÇÃO CONSTITUCIONAL DE RECURSOS DESTINADOS À MANUTENÇÃO E AO DESENVOLVIMENTO DO ENSINO EM SANTA CATARINA

O acesso à educação gera obrigações orçamentárias e financeiras do poder público. Dessa forma, o estado de Santa Catarina desenvolve planos, programas e ações com o objetivo de ofertar serviços educacionais à sociedade catarinense, o que implica na previsão e realização de gastos. De maneira similar, o legislador constituinte catarinense criou vinculações constitucionais com o objetivo de garantir o financiamento de gastos necessários ao acesso à educação pública. As vinculações orçamentárias são mecanismos que reservam uma parcela da receita pública para finalidades específicas e direcionam a atuação estatal.

O direito à educação pública, gratuita, de qualidade e universal, em todas as etapas (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) é princípio assegurado pela Carta de 1988 que, inclusive, garantiu recursos para fazê-lo valer. A educação pública é direito de todos e, por isso, o acesso aos diferentes níveis precisa estar inserido dentro das políticas formuladas pelo governo nacional e pelos governos estaduais. Importa observar que as metas do Plano Estadual de Educação (PEE), que vão desde a universalização da Educação Infantil (Meta 1) até a ampliação do investimento público em educação pública (Meta 20), as quais devem ser atingidas no âmbito educacional para a melhoria da educação básica. Logo, a motivação de políticas de ajustes fiscais e teto de gastos traduz-se na violação às garantias constitucionais e afronta aos direitos da criança e do adolescente.

Para tanto, esse objetivo está sendo ameaçado pela política de renúncia de receita, pois a renúncia implica na redução do financiamento público para a educação catarinense.[6] Quanto a isso, a tabela 2 mostra que entre 2010/2021 a renúncia de receita resultou numa desvinculação constitucional de R$ 14,41 bilhões da educação. Para 2022, estima-se que a desvinculação será de R$ 3,50 bilhões.[7] Contudo, chama a atenção que a participação no recurso desvinculado no orçamento da pasta saltou de 25,05%, em 2021, para 46,01%, em 2022, crescimento de 83,67%, superior o crescimento da desvinculação em saúde.

Tabela 2: Desvinculação constitucional de receita tributária (ICMS, IPVA, ITCMD) da educação dos catarinenses

T2

Fonte: LDO, vários anos. Elaboração: Juliano Giassi Goularti

Considerando as condições físicas das escolas, essa desvinculação faz falta para a programação de uma educação pública, gratuita e de qualidade. Ademais, essa subtração de recursos pode comprometer diversas ações estratégicas do PEE, com destaque para o atendimento das necessidades educacionais das populações do campo e das comunidades indígenas e quilombolas; a garantia do atendimento das necessidades específicas na educação especial, assegurado o sistema educacional inclusivo em todos os níveis, etapas e modalidades; e a promoção da articulação interfederativa na implementação das políticas educacionais.

A verdade é que padrões mínimos de gasto público não podem ser programados como padrões ínfimos que prejudiquem a qualidade da educação, descumprindo as obrigações legais contidas no PEE. O acesso à educação no ensino escolar público no estado de Santa Catarina, embora expandido nas últimas décadas, ainda tem muito que melhorar. A qualidade do ensino possui notável apelo popular, sendo utilizado frequentemente como tema de debates políticos e eleitorais. Logo, torna-se importante rever a política tributária de renúncia de receita, de modo que os recursos que a Constituição Federal de 1988 destinados à educação sejam preservados.

CONSIDERAÇÕES

O objetivo desse artigo foi problematizar as desvinculações de receita constitucional, via renúncia tributária, em relação à manutenção e desenvolvimento da educação e às ações e serviços de saúde dos catarinenses. Partindo desta premissa, subtende-se que a política de renúncia de receita contribui para a precarização dos serviços básicos de atenção à saúde e contribui para que o estado não atinja as metas e estratégias definidas no PEE.

Para efeitos de cálculos, a desvinculação de receita tributária oriunda da política de renúncia de impostos adotada no estado de Santa Catarina passou de R$ 5,17 bilhões, em 2015, para R$ 6,34 bilhões, em 2021, e R$ 14,01 bilhões em 2022. A previsão é de que em 2022 cerca de R$ 1,68 bilhão serão desvinculados da saúde e R$ 3,50 bilhões da educação, totalizando R$ 5,18 bilhões. Estima-se que entre 2010 e 2022 foram desvinculados R$ 18,92 bilhões da educação e R$ 9,08 bilhões da saúde, totalizando numa desvinculação estimada de R$ 28 bilhões.

Além de problematizar essa política tributária que resulta em desvinculação, na saúde, cumpre também questionar quantos tratamentos de radioterapia ou de quimioterapia poderiam ser custeados? Quantas cirurgias eletivas poderiam ser realizadas com este valor? Quantos equipamentos hospitalares poderiam ser adquiridos para equipar hospitais públicos? Quantos médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos e demais profissionais da área da saúde poderiam ser contratados? Na educação, quantas escolas poderiam ser construídas ou reformadas? Quantos equipamentos de informática poderiam ser adquiridos? Quantas bibliotecas públicas poderiam ser equipadas?

Pode-se dizer que há um “abuso fiscal corporativo” em desonerar o tributo sem induzir o processo de desenvolvimento econômico, regional e social.[8] Além disso, a renúncia de receita prejudica os potenciais ganhos de qualidade da educação e da saúde, pois os recursos dessas áreas teriam que ser, no mínimo, preservados. Dito de outro modo, os recursos gerados pela renúncia de receita não devem ser alvos da desvinculação de receita, considerando a situação atual de insuficiência de serviço público gratuito e de qualidade.

Por fim, o que se percebe, também, é que embora na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) haja avaliação anual dos incentivos, tal controle ainda carece de maior substância e efetividade, tanto em números econômicos quanto no cumprimento das contrapartidas assumidas pelo beneficiário. Além disso, a renúncia de receita do ICMS tende a elevar a regressividade do sistema tributário nacional, a aumentar a ineficiência na alocação dos recursos públicos e a exigir maior esforço fiscal dos grupos sociais não beneficiados.

[1] Doutor pelo Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do NECAT/UFSC.

[2] “A renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção em caráter não geral, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado”- § 1º do art. 14 da LRF, de 2000.

[3] A renúncia de receita tributária também deixa de cumprir as obrigações/vinculações constitucionais de receita as atividades da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI), art. 193 da Constituição Estadual de Santa Catarina e na distribuição do ICMS aos municípios, IV do art. 158 da Constituição Federal de 1988. Além disso, diminuem a base de cálculo para transferência do duodécimo os Poderes (ALESC e TJ), ao TCE, ao MP e a UDESC.

[4] https://necat.ufsc.br/consideracoes-sobre-a-divida-ativa-tributaria-de-santa-catarina/

[5] Os ODS foram adotados em 2015, a partir da reunião de chefes de estado na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi uma decisão para unir forças em prol de uma agenda em prol do desenvolvimento sustentável, que deve ser cumprida até o ano de 2030.

[6] O pilar da educação brasileira é composto por um conjunto de indicadores aos quais se destacam: i) Avaliação da educação; ii) Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB); iii) Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM); iv) Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA); v) Índice de oportunidade da educação (IOEB); vi) Taxa de frequência líquida ao ensino fundamental; vii) Taxa de frequência líquida ao ensino médio; viii) Taxa de atendimento do ensino infantil, dentre outros. Segundo consta, o estado de Santa Catarina apresenta boas notas nestes indicadores. Todavia, o recurso constitucional desvinculado poderia contribuir para elevar essas notas, bem como equipara as escolas e melhor valorizara o professo que tem sua tabela de salários achatada.

[7] A dívida histórica para com a educação pública brasileira não pode ser contraposta à suposta restrição fiscal ou à ineficiência na alocação.

[8] https://necat.ufsc.br/consideracoes-sobre-a-politica-de-renuncia-de-receita-de-impostos-de-santa-catarina/

https://necat.ufsc.br/a-politica-de-incentivos-fiscais-do-governo-carlos-moises-ex-psl/

https://necat.ufsc.br/politica-de-incentivos-fiscais-em-santa-catarina-limites-e-insuficiencia-na-promocao-do-desenvolvimento-regional/