Desigualdade de renda em Santa Catarina atingiu maior patamar da série histórica no 2º trimestre de 2021

05/11/2021 19:02

Por: Vicente Loeblein Heinen[1] e Lauro Mattei[2]

A pandemia provocou efeitos expressivos na renda no Brasil. Segundo Neri (2021)[3], a renda média individual do brasileiro se encontra atualmente num patamar 9,4% inferior ao nível verificado no final de 2019. Todavia, o autor alerta para a desigualdade existente entre a base e o topo da pirâmide de renda, uma vez que a metade mais pobre sofreu uma perda de 21,5%, enquanto os 10% mais ricos tiveram uma queda de apenas 7,16%, ou seja, uma perda três vezes menor. Para o autor, grande parte da perda de renda dos mais pobres está vinculada à expansão do desemprego, além da redução do rendimento por hora trabalhada e redução da própria jornada de trabalho. Esse movimento já foi captado pelo índice de Gini[4], que passou de 0,628, no 4º trimestre de 2019, para 0,646, no 2º trimestre de 2021. Por fim, o autor mostra que os moradores da região Nordeste (-11,4%), as mulheres que tiveram dupla jornada durante a pandemia (-10,35%) e os idosos acima de 60 anos (-14,2%), por terem de se retirar do mercado em função das medidas relativas ao controle da pandemia, foram os mais prejudicados.

A pandemia da Covid-19 também explicitou uma série de problemas presentes no mercado de trabalho catarinense, os quais tendem a permanecer mesmo com a melhora do quadro sanitário e a retomada do nível de atividade econômica. Em textos anteriores, identificamos o atual estágio do processo de recuperação do emprego em Santa Catarina[5], bem como suas principais características setoriais e ocupacionais[6]. O objetivo deste texto é analisar esse processo do ponto de vista dos rendimentos do trabalho, tendo como base a divulgação mais recente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), que se estende até o 2º trimestre de 2021. Para tanto, este texto está dividido em três partes, sendo a primeira dedicada à análise dos rendimentos individuais, a segunda à renda domiciliar e a terceira ao comportamento da desigualdade de renda no estado.

A renda do trabalho em tempos de retomada do emprego e aceleração inflacionária

Um dos principais impactos da pandemia da Covid-19 sobre a economia catarinense foi a redução da massa salarial, isto é, da soma de todas as rendas provenientes do trabalho recebidas no estado. De acordo com o Gráfico 1, a massa de rendimentos reais habitualmente recebida em Santa Catarina foi de aproximadamente R$ 9,84 bilhões no 2º trimestre de 2021, representando um nível semelhante ao registrado no mesmo trimestre de 2020. Em outras palavras, somente em meados de 2021 a massa de salários circulando na economia estadual retornou ao nível registrado no período mais crítico da crise da Covid-19 (1º semestre de 2020). Esse processo representa uma expressiva perda de poder de compra da população, tendo em vista que o nível de renda atual se encontra 6% abaixo daquele que seria esperado caso as tendências pré-pandemia fossem mantidas[7].

Gráfico 1 – Massa de rendimentos reais habitualmente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina (2016-2021, R$ milhões a preços de 2021/2T)

G1

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração própria.

O Gráfico 2 apresenta a decomposição do crescimento da massa salarial em seus dois determinantes: a população ocupada com renda do trabalho; e o rendimento médio recebido por essa mesma população. Inicialmente, nota-se que a intensa perda de ocupações ocorrida em 2020 se refletiu em uma queda na massa de rendimentos, todavia não na mesma proporção. Esse processo foi mais intenso no início da pandemia, perdeu força no limiar de 2020 e entrou em fase de reversão no 2º trimestre de 2021, quando o crescimento do emprego praticamente não se refletiu em ampliação da massa salarial recebida.

Gráfico 2 – Decomposição do crescimento interanual da massa de rendimentos reais habitualmente recebidos em todos os trabalhos em Santa Catarina (2018-2021, % com relação ao mesmo trimestre do ano anterior)

G2

Fonte: PNADC/T – Microdados (2021); Elaboração própria.

A variável de ajuste dessa relação é o rendimento médio do trabalho, cujo comportamento é detalhado no Gráfico 3. Conforme destacamos em textos anteriores, esse indicador registrou um forte e atípico crescimento no início da pandemia, devido ao fato de que as ocupações perdidas no período se concentraram nas menores faixas de renda[8]. Nos períodos seguintes, esse processo foi sendo gradualmente revertido, à medida que os trabalhadores informais foram retornando ao mercado de trabalho[9].

Gráfico 3 – Rendimento médio real habitualmente recebido em todos os trabalhos em Santa Catarina (2018-2021, R$ a preços de 2021/2T)

G3

Fonte: PNADC/T – Microdados (2021); Elaboração própria.

Já no período mais recente, nota-se um cenário distinto. Embora a conjuntura ainda seja marcada por um crescimento expressivo de segmentos mal remunerados (principalmente de trabalhadores por conta própria sem CNPJ e de empregados no comércio e nos serviços de alimentação), esse fator é compensado pela retomada do emprego formal em setores com remunerações mais elevadas, com destaque para a indústria de transformação. Assim, a queda na renda média de 2% registrada entre o 1º trimestre (R$2.882,34) e o 2º trimestre de 2021 (R$2.841,20)[10] se deve fundamentalmente à desvalorização salarial dos trabalhadores que já se encontravam ocupados. Tal desvalorização, por sua vez, teve como principal determinante o avanço da inflação, que teve alta de 2,2% no último trimestre[11].

Em termos relativos, esse resultado representa uma queda de 1,4% em relação ao trimestre anterior, mas uma alta de 4% na comparação com o 2º trimestre de 2019, isto é, antes da pandemia. Em grande medida, tal discrepância ainda reflete a lenta retomada do emprego nas faixas de renda média-baixa (com destaque para os serviços prestados às famílias e à indústria), bem como a contínua expansão do topo da pirâmide de renda (puxada pelos serviços especializados prestados às empresas e pela administração pública).

Impactos sobre a renda domiciliar

A despeito de sua importância para o acompanhamento da conjuntura, os indicadores de remuneração individual são insuficientes para analisar a situação da renda no conjunto do estado, uma vez que consideram apenas a população ocupada. Nesse sentido, o Gráfico 4 apresenta o comportamento do rendimento domiciliar per capita do trabalho (RDPCT) em Santa Catarina, que – precisamente por considerar também desempregados e inativos[12] – possui uma dinâmica muito distinta daquela observada no caso da renda média individual. Em compasso com a perda de ocupações provocada pela pandemia, esse indicador apresentou fortes quedas ao longo do ano de 2020. Tais quedas passaram a ser revertidas de forma mais consistente somente no 2º trimestre de 2021, quando o RDPCT estadual ficou em R$ 1.345,00 registrando alta de 1,7% no trimestre. Apesar da recuperação recente, vale notar que esse indicador ainda permanece 0,8% abaixo do nível registrado no mesmo período de 2020 (R$ 1.365,50).

Gráfico 4 – Rendimento domiciliar per capita real habitualmente recebido em todos os trabalhos em Santa Catarina (2018-2021, R$ a preços de 2021/2T)

G4

Fonte: PNADC/T (2021); Elaboração própria.

A situação é mais grave quando se considera os estratos de renda domiciliar. De acordo com os dados contidos na Tabela 1, as menores faixas de RDPCT foram as que mais cresceram no último trimestre, sendo de 32,1% a alta dos domicílios que recebem até ¼ salário mínimo; de 5,5% a daqueles que recebem entre ¼ e meio salário mínimo; e de 7,3% dos domicílios da faixa entre meio e 1 salário mínimo. Em termos absolutos, esta última faixa foi a que mais se expandiu desde o início da pandemia, incorporando 215 mil pessoas.

A expansão da base da pirâmide de rendimentos se deve à absorção das famílias que possuíam rendas intermediárias e, principalmente, à retomada do grau de participação no mercado de trabalho[13]. Quanto ao primeiro desses fatores, nota-se que os domicílios com renda entre 1 e 3 salários mínimos por morador foram as que mais encolheram na comparação com 2019, acumulando um saldo negativo de 470 mil pessoas. Seja por afastamentos voluntários ou pelo fechamento de vagas em setores melhor remunerados (destacadamente a indústria de transformação), essa população ainda não conseguiu recuperar seu patamar de rendimentos habituais, situando-se em faixas de renda menores.

Tabela 1 – Distribuição da população residente por faixa de rendimento domiciliar per capita real habitualmente recebido em todos os trabalhos em Santa Catarina (mil pessoas por faixa salário mínimo)

T1

Fonte: PNADC/T (2021) – Microdados; Elaboração própria.

Já o segundo fator se manifesta na redução expressiva da faixa dos domicílios sem renda do trabalho, que diminuiu em 166 mil pessoas. Em que pese essa redução recente, é importante destacar que o número de catarinenses vivendo em domicílios sem quaisquer rendimentos do trabalho segue bastante elevado, abrangendo ainda 1,2 milhão de pessoas, ou 16,1% do total da população (2,2 pontos percentuais a mais do que antes da pandemia).

Evidentemente que nem todos os domicílios que deixaram de receber renda do trabalho estão passando por grandes necessidades, uma vez que parte considerável deles possuem rendimentos de outras fontes ou níveis suficientes de poupança, por exemplo. Em função disso, adotamos o procedimento de distinguir esse grupo de domicílios dentre aqueles cujo responsável encontra-se desempregado (desocupado ou na força de trabalho potencial[14]) ou inativo (fora da força de trabalho potencial). Esse procedimento se justifica pela elevada correlação existente entre pobreza domiciliar e desemprego do chefe do domicílio no mercado de trabalho catarinense[15].

Esse corte revela que os domicílios com responsáveis inativos representam a maior parte do resultado do trimestre (com baixa de 138 mil pessoas), mas que os chefiados por desempregados apresentaram maior queda relativa (da ordem de 20,4%). Apesar disso, ambos os grupos permanecem em patamares muito superiores aos que poderiam ser considerados “normais”, ainda abrangendo 14,6% e 1,5% da população total, respectivamente. No caso dos inativos, esse cenário reflete a persistência de certo temor quanto ao quadro sanitário, que ainda se encontrava extremamente adverso no trimestre considerado. Já no caso dos domicílios chefiados por desempregados, essa situação pode estar refletindo dificuldades de reinserção no mercado de trabalho, cenário que pode estar indicando um aumento dos índices de pobreza no estado. Nesse sentido, vale destacar que Santa Catarina conta atualmente com 109 mil pessoas que residem em domicílios cujos responsáveis necessitariam trabalhar para auferir renda, mas não conseguem fazê-lo. Em 2019, esse número era 25% menor, abrangendo 87 mil pessoas.

Em contraste com o empobrecimento desses segmentos populacionais, chama a atenção que a faixa de renda entre 3 e 5 salários mínimos per capita seguiu em expansão no 2º trimestre de 2021, com saldo de 23 mil pessoas, o que corresponde a um aumento de 5,9%. Dessa forma, tal faixa apresenta a maior variação relativa na comparação com o período pré-pandemia, registrando crescimento de 30,7%. Esse aumento da renda apropriada pelos mais ricos só não é maior devido ao encolhimento da faixa dos que recebem mais de 5 salários mínimos por morador, a qual pode ser atribuída a saídas voluntárias do mercado de trabalho.

Aumento histórico da desigualdade de renda

Os impactos da pandemia da Covid-19 em Santa Catarina foram muito heterogêneos entre as classes de renda. Inicialmente, os trabalhadores da base da pirâmide de rendimentos foram os mais prejudicados, o que os obrigou a retornar rapidamente ao mercado de trabalho. Entre as camadas médias, essa retomada tem sido mais lenta, processo que se reflete na maior dificuldade de retornar ao patamar de rendimentos prévio à pandemia. Já as famílias melhor posicionadas monetariamente foram aquelas menos prejudicadas pela crise, pelo menos quando se considera os segmentos que permaneceram no mercado de trabalho.

Como consequência, Santa Catarina também corrobora o cenário nacional ao apresentar um aumento histórico da desigualdade na distribuição dos rendimentos do trabalho. Essa tendência pode ser observada a partir do comportamento do índice de Gini estadual (Gráfico 5), que no 2º trimestre de 2021 atingiu seu maior nível da série histórica iniciada em 2012.

Gráfico 5 – Índice de Gini dos rendimentos habitualmente recebidos em todos os trabalhos e do rendimento domiciliar per capita em Santa Catarina (2012-2021)

G5

Fonte: PNADC/T – Microdados (2021); Elaboração própria.

Esse recorde foi registrado tanto do ponto de vista dos rendimentos individuais (0,413), quanto da renda domiciliar per capita (0,450). A maior alta, entretanto, diz respeito a este último indicador que, mesmo desconsiderando as famílias sem renda (que não entram no cálculo do índice), acumula uma alta de aproximadamente 5% na comparação com o período pré-pandemia. Esse resultado se deve principalmente ao achatamento das camadas médias, que sofreram com arrochos salariais e/ou permanecem com membros familiares fora do mercado de trabalho.


[1] Economista pela UFSC e pesquisador do Necat. E-mail: vicenteheinen@gmail.com.

[2] Professor titular do curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do Necat/UFSC e pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. E-mail: l.mattei@ufsc.br.

[3] NERI, M. Desigualdade de impactos trabalhistas na pandemia. Rio de Janeiro: FGV Social, 2021.

[4] O índice de Gini é um indicador de desigualdade que varia entre 0 e 1, sendo que 0 representa a perfeita igualdade distributiva, enquanto 1 a máxima desigualdade.

[5] HEINEN; MATTEI. O cenário do mercado de trabalho catarinense no 2º trimestre de 2021, Blog do Necat, 2021.

[6] HEINEN; MATTEI. Quais segmentos do mercado de trabalho catarinense já se recuperaram dos impactos da pandemia?, Blog do Necat, 2021.

[7] Sobre o cenário da renda em Santa Catarina no período anterior à pandemia, ver HEINEN, V. L. O mercado de trabalho catarinense diante da crise da Covid-19. Revista Necat, n.17, 2020.

[8] HEINEN; MATTEI. Renda da metade mais pobre das famílias catarinenses ainda é 27% inferior ao nível pré-pandemia, Blog do Necat, 2021.

[9] HEINEN; MATTEI. Domicílios sem renda do trabalho cresceram cerca de 30% em Santa Catarina no ano de 2020. Blog do Necat, 2021.

[10] Esse resultado foi obtido a partir do acompanhamento longitudinal da renda média dos catarinenses que permaneceram na amostra da PNADC entre o 1º e o 2º trimestre de 2021 e responderam estar ocupados em ambos períodos.

[11] Variação referente ao IPCA médio da Região Sul, que é o índice utilizado pelo IBGE para o cálculo dos rendimentos reais em Santa Catarina.

[12] O RDPCT é a divisão da massa de rendimentos do trabalho recebido em um dado domicílio, pelo total de moradores desse domicílio. Vale notar que esse não é o indicador mais preciso para a renda disponível das famílias, uma vez que desconsidera os rendimentos de outras fontes (aposentadorias, pensões, seguros, auxílios, etc), os quais não são divulgados trimestralmente pelo IBGE.

[13] O processo de saída do mercado de trabalho em meio à pandemia foi discutido em HEINEN; MATTEI, Mesmo com baixo desemprego, Santa Catarina perdeu 220 mil postos de trabalho em 2020: como isso foi possível? Blog do Necat, 2021.

[14] O IBGE considera como desocupadas as pessoas que realizam busca efetiva por trabalho e estariam disponíveis para assumir uma vaga. A força de trabalho potencial pode ser interpretada como uma medida de desemprego oculto, abrangendo as pessoas que não procuraram trabalho, mas desejariam trabalhar; ou que procuraram emprego e necessitariam trabalhar, mas não estavam disponíveis para assumir no momento.

[15] A julgar pelos microdados da PNADC anual de 2019 (que apresenta dados para rendimentos de toda as fontes), cerca de ⅔ dos domicílios catarinenses sem renda do trabalho cujo responsável estava desempregado (desocupado ou na força de trabalho potencial), também se encontravam em situação de pobreza (vivendo com até ½ salário mínimo per capita). No caso dos domicílios sem renda com responsáveis inativos, esse percentual foi de apenas 15%.